Numa entrevista à CNN, que será divulgada na integra hoje à noite, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que as “escusas de responsabilidade não valem nada juridicamente”, defendendo que é preciso as pessoas olharem para o direito e que “há casos em que a lei permite [invocar escusa de responsabilidade], mas, em regra, não permite”.
“Sob pena de, em diversas atividades públicas (…) sem encontrar maneira de a pessoa poder invocar realidades objetivas, como a falta de dinheiro, a falta de orgânicas, de estruturas, para não cumprir a sua missão. Eu tive que explicar numa ou noutra situação em que apareceram com essa invocação e eu digo “olhe que isso não vale nada juridicamente”. As pessoas estão a assinar isso, não vale nada juridicamente”.
Os pedidos de escusa visam excluir a responsabilidade individual em sede disciplinar por falhas de diagnóstico e/ou terapêutica condicionada por mau funcionamento dos serviços e que afetem o cumprimento da boa prática médica.
Para a dirigente sindical representante dos enfermeiros, Guadalupe Simões, as declarações do Presidente da República são “uma apreciação jurídica da escusa de responsabilidade”.
“Enquanto constitucionalista não poderia ter outro tipo de declarações, mas também o que se espera é que o senhor Presidente da República exerça a sua magistratura de influência no sentido de afirmar as condições que os enfermeiros estão a trabalhar e que essas condições precisam de ser rapidamente alteradas, correndo nós o risco de todos os dias estarmos a perder enfermeiros em todas as instituições do país”, disse em declarações à Lusa.
Guadalupe Simões sublinhou que quando os enfermeiros invocam escusa de responsabilidade têm como objetivo “alertar o ministério da Saúde, o Governo e os portugueses” para as condições de trabalho.
“Os enfermeiros sabem que, de acordo com o código deontológico, as suas intervenções são autónomas e decidem o que fazer e, por isso, podem ser responsabilizados e são responsáveis pelas decisões que tomam”, sublinhou a ex-presidente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses.
No entanto, Guadalupe Simões salienta que existem duas situações distintas: “No momento em que decidem cuidados dos doentes são responsáveis pelas intervenções que desenvolvem, outra coisa são as faltas de condições de trabalho com que estão confrontados na generalidade das instituições do Serviço Nacional de Saúde e dos alertas sucessivos que tem vindo a fazer”.
Por isso, acrescentou, quando os enfermeiros invocam escusa de responsabilidade estão a chamar a atenção e a alertar “para a necessidade de serem tomadas medidas para a contratação de mais enfermeiros” e para a retenção dos profissionais que já estão no SNS.
Também estas declarações geraram críticas por parte do secretário-geral do Sindicato dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, e do presidente da Federação Nacional do Médicos (FNAM), defendendo que a preocupação deve centrar-se no problema que leva os médicos a apresentar este documento.
“O senhor Presidente da República, que é uma pessoa que, ao longo da minha da minha vida, aprendi a respeitar e muitas vezes a apoiar, ultimamente tem falado de assuntos onde parece evidente [que] não os estuda, porque quando fala sobre minutas de isenção de responsabilidade esquece que essas minutas são emitidas para defender os doentes, não é para defender os médicos”, disse à Lusa Roque da Cunha.
Esclareceu que o efeito das minutas não é isentar os médicos da responsabilidade criminal, porque essa será identificada pelos tribunais, mas visam defender os médicos das questões éticas e deontológicas a que estão obrigados por parte da Ordem dos Médicos.
Visam também a defesa dos médicos em termos de processos disciplinares: “Quando a entidade empregadora entende emitir ou abrir um processo disciplinar esta isenção permite, naturalmente, alertar que não estavam criadas as condições”.
São “um alerta” que os médicos fazem para exigir condições de segurança ao Governo, disse Roque da Cunha, que gostaria que o Presidente da República se juntasse aos médicos no sentido de “exigir mais investimento no Serviço Nacional de Saúde”.
Para o líder sindical, as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa “não são um incentivo” para os médicos que exercem, “muitas vezes, abaixo dos mínimos e sem condições”.
“Eu acho que o senhor Presidente da República, com este tipo de atitude, está a tentar interferir na separação de poderes (…). Custa-me muito afirmar isso, mas da forma como aparece esta notícia é claramente, do nosso ponto de vista, uma tentativa de interferência no sistema judicial, para além de tentar condicionar a atividade dos médicos defesa dos seus utentes”.
Ressalvando que ainda não ouviu a entrevista, o presidente da FNAM, defendeu, por seu turno, que a principal preocupação que deve existir relativamente há “imensa quantidade” de médicos que colocam a escusa de responsabilidade “não deve ser da sua validade jurídica ou não”, mas o problema que subjaz a essa decisão dos médicos.
“Os médicos não estão a querer dirimir responsabilidades, estão a querer colocar a tónica da responsabilidade em quem a tem não oferecendo as condições mínimas necessárias para que o trabalho se possa desenvolver com os mínimos de qualidade”, salientou.
Para o presidente da FNAM, a falta de condições é que devia suscitar “um grande nível de preocupação e não propriamente uma avaliação jurídica”.
“Acrescendo que sendo legítimas, não me parece que seja o mais importante neste momento por quem tem esse nível de responsabilidade”, afirmou, considerando as declarações são “um desalento”, uma vez que médicos estão a usar “as suas últimas armas de contestação, de denúncia”, antes de deixar o SNS.
Noel Carrilho apelou ao responsáveis pelas políticas governativas e a “quem tem o dever constitucional de defender a saúde dos portugueses”, para que percebam “a real dimensão do problema”.
A Lusa contactou também a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros que se escusou a comentar as declarações do Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa adianta que há casos em que pode ser invocado [escusa de responsabilidade], mas sublinha que “é muito importante, em política, quando se tem razão, saber explicar aos portugueses a razão que se tem. Porque, muitas vezes, tem-se razão, mas a não explicação da razão, ou o mau uso da razão, faz perder a razão”.
As declarações do Presidente da República surgem numa altura em que muitos médicos têm apresentado escusas de responsabilidade por considerarem que não estão reunidas as condições necessárias para desempenharem as funções cumprido as regras da boa prática médica, por falta de profissionais.
O último caso foi conhecido na quarta-feira, quando o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) revelou que todos os 14 médicos do serviço de urgência geral do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, no distrito de Lisboa, apresentaram escusas de responsabilidade devido à “escassez permanente de recursos humanos”.
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