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O que é a Síria?

A Síria é hoje um país conhecido só pelas piores razões: guerra civil, sectarismo vicioso, mortes, destruição sem freios, um êxodo de refugiados em massa, terrorismo, e por aí adiante. É um mosaico fracturado. Mas como chegou até aqui? Houve, claro, causas imediatas da guerra civil em curso que estão relacionadas com a chamada Primavera Árabe, que deflagrou um pouco por todo o Médio Oriente em 2010–2011. Além disso, houve condições inerentes à Síria que deram origem à insurreição inicial. No entanto, há também causas de longa duração e forças históricas que têm estado em acção no país há décadas, e que remontam aos tempos do Império Otomano, no século XIX. Mas a Síria moderna deve mais as suas raízes basilares aos períodos da Primeira Guerra Mundial, do mandato e da independência, no século XX. Este livro traçará esse percurso histórico da Síria, desde a sua combinação histórica rica e multicultural até à artificialidade imposta pelos Europeus, e desde as lutas políticas e geoestratégicas do período da independência até à ditadura militar de partido único, ao meio político e socioeconómico do qual emergiu uma guerra civil trágica.

A diversidade neste país, hoje, nasce de séculos de influências vindas de perto e de longe. A região tradicionalmente conhecida como Síria tem correspondido, ao longo do tempo, a uma entidade amorfa geralmente localizada na área geográfica que conhecemos agora como a República Árabe Síria. O académico Christopher Phillips, especialista na Síria, conduziu um inquérito informal no país, com umas centenas de inquiridos, sobre a questão da identidade poucos anos antes do início da guerra civil, em 2011. A questão era a seguinte: Vê-se, em primeiro lugar, como sírio, árabe ou muçulmano? Curiosamente, as respostas dividiram-se de forma bastante equilibrada entre as três. O que é mais interessante, no entanto, é que ninguém listou a identidade síria abaixo do segundo lugar. Portanto, se este inquérito informal sugere que ainda há múltiplas identidades primárias na Síria, o conceito de um Estado sírio e de uma nacionalidade síria tem vindo a ganhar terreno no país desde a independência, em 1946. Como veremos, isto deve-se, em parte, à pressão autoritária do regime (trata-se, afinal, da República Árabe Síria), mas pode ser instrutivo para a reconstituição futura do Estado agora arruinado, quando a guerra acabar e a reconstrução começar a sério.

Tudo isto é ilustrativo de como a identidade (ou a falta dela) tem desempenhado um papel tão importante na História da Síria — e esta é, claramente, uma história inacabada. Assim, a História moderna da Síria será inserida no contexto destas (e algumas outras) identidades, tendo em conta o modo como elas se foram desenvolvendo, ora concertadas, ora em confronto umas com as outras ao longo dos anos, no seio de uma matriz complexa e multidimensional de políticas domésticas, regionais e internacionais.

O PANORAMA HISTÓRICO E FÍSICO

Geograficamente, a Síria mede 71 504 milhas quadradas (185 170 quilómetros quadrados), incluindo os montes Golã (Jawlan), ocupados por Israel, que ficam a cerca de trinta e cinco quilómetros de Damasco no seu ponto mais próximo — feitas as contas, tem a Síria aproximadamente as dimensões do Dakota do Norte. Trata-se aqui, no entanto, do moderno Estado-nação da Síria, cujo nome deriva, provavelmente, do grande reino do Médio Oriente anterior à Era Comum, a Assíria. Os Romanos chamavam a esta área do Crescente Fértil, uma área de agricultura rica que se estendia a norte do deserto da Arábia, arqueando-se desde os actuais Israel/Palestina e Líbano até à área do Tigre-Eufrates, «Suri», do antigo babilónio. Muitos sírios consideram as novas fronteiras do seu país apenas um resto do todo, uma porção arbitrariamente desenhada pelos Europeus daquilo que, globalmente, se designa de Síria maior (Bilad al-Sham), que consiste também nos actuais Líbano, Jordânia, Israel, incluindo os territórios ocupados, e partes do Sul da Turquia. No Ocidente, esta área do Médio Oriente tornou-se conhecida como Levante, termo italiano usado por comerciantes para designar «o ponto em que o Sol se levanta». Considera-se que estas áreas foram artificialmente separadas da Síria como consequência do sistema de mandatos de cunho europeu, após a Primeira Guerra Mundial.

A Síria de hoje é fundamentalmente um planalto desértico semiárido, com uma estreita planície costeira ao longo do mar Mediterrâneo. O deserto sírio, que cobre essencialmente a extensão nordeste do deserto da Arábia, confina subitamente com esta parte do país. Como tal, perto de oitenta por cento de toda a população síria vive em meros vinte por cento do território, na sua parte ocidental, que é aquilo a que as autoridades do mandato francês inicialmente chamaram — e com alguma ironia — «a Síria útil». O grosso desta concentração populacional vive numa linha norte-sul de cidades (Alepo, Hama, Homs, Damasco) que separa geralmente as áreas mais férteis do país da planície semiárida e desértica. As fronteiras que definem a Síria moderna isolam muitas partes do país das suas ligações mercantis e culturais tradicionais. Por exemplo, Damasco, por tradição, encarava o Mediterrâneo através de Beirute e Haifa (Israel), assim como Bagdade através do deserto; ao passo que Alepo, muito influenciada pela proximidade com as áreas turcas, arménias e curdas, tendia também para o Mediterrâneo, mas inclinava-se igualmente para leste, sendo um ponto de passagem crucial na Rota da Seda para a Ásia Central. Pouco admira, assim, que haja múltiplos laços e afinidades multiculturais. Estas identidades culturais cruza- das sempre tiveram, ao longo dos anos, implicações políticas — e produziram reivindicações irredentistas — que por vezes complicaram as relações da Síria com os seus vizinhos.

Pedro Mexia junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 19 de outubro, pelas 21h00.

Poeta e crítico literário, escolheu para a conversa no clube de leitura o livro "A Terra Devastada", de T. S. Eliot.

Para se inscrever no encontro basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro receberá um e-mail com todas as instruções para se juntar à conversa.

Pedro Mexia, da poesia às traduções

Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972, e licenciou‑se em Direito pela Universidade Católica. Escreveu crítica literária e crónicas para os jornais Diário de Notícias e Público e também faz traduções; atualmente colabora com o semanário Expresso. Além disso, é um dos membros do "Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer" (SIC Notícias) e mantém, com Inês Meneses, o programa PBX. Foi subdiretor e diretor interino da Cinemateca.

T.S. Eliot e "A Terra Devastada"

A estreia de T. S. Eliot na poesia deu-se em 1915, na revista Poetry, de Chicago, onde saiu um dos seus mais famosos poemas, The Love Song of J. Alfred Prufrock. Este e outros poemas constituíram, em 1917, o seu primeiro livro

Em 1922 surgiu o poema The Waste Land — "A Terra Devastada", na tradução em português —, considerado um dos mais belos e mais importantes poemas do Modernismo.  O tema de The Waste Land é a decadência e fragmentação da cultura ocidental, concebida imaginativamente por analogia com o fim de um ciclo de fertilidade natural. O poema divide-se em cinco partes, que não obedecem a uma sequência lógica, e estende-se por 433 versos. A justaposição de símbolos, imagens, ritmos, citações e sequências temporais, contribuem para a dimensão épica do poema e reforçam a sua coerência artística.

A terra arável perfaz cerca de um quarto do total. O sector agrícola produz grandes quantidades de algodão, trigo, cevada, beterraba e azeitona. Ainda que as chuvas alimentem oitenta por cento da agricultura na Síria, o governo da década anterior à insurreição de 2011 tinha investido intensamente no desenvolvimento de sistemas de irrigação, a fim de manter a produção de colheitas durante anos de seca. A chuva na Síria é sazonal, caindo sobretudo nos meses de Inverno e na maior parte das zonas do Norte e Oeste do país. A Síria — assim como outros territórios do Médio Oriente — tem sofrido há cerca de duas décadas de condições de seca que dizimaram em particular o sector agrário nas áreas rurais do país, e contribuíram de várias maneiras preponderantes para o crescente descontentamento que subjaz à natureza da própria insurreição.

É difícil estimar a população actual da Síria devido às oscilações causadas pela guerra. A população anterior à guerra ultrapassava ligeiramente os vinte e dois milhões, cerca de quarenta por cento dos quais tinham menos de catorze anos. Quase metade da população do país, à data em que escrevo, encontra-se deslocada, seja fora ou dentro do país, com uma estimativa de que perto de quinhentas mil possam ter sido mortos. Antes da guerra, a capital e maior cidade na Síria, Damasco, tinha uma população aproximada de cinco milhões; Alepo tinha 4,5 milhões; Homs (Hims), 1,8 milhões; Hama, 1,6 milhões e Lataquia, um milhão. No entanto, devido aos níveis e à intensidade de destruição do conflito em várias cidades sírias, particularmente em Alepo e Homs, estes números têm mudado drasticamente. As populações de Damasco, propriamente dita, a par de outras cidades, como Lataquia e Tartus, que têm permanecido, na sua maioria, sob o controlo do governo sírio durante a guerra, aumentaram substancialmente com o influxo de pessoas deslocadas procurando refúgio do conflito. Tal é a dificuldade em aplicar números à Síria de hoje que as Nações Unidas, essencialmente, desistiram do trabalho das estimativas poucos anos depois do início do conflito, devido à escassez de investigações independentes e à falta de acesso por questões de segurança.

Aproximadamente noventa por cento da população é árabe, incluindo uns quatrocentos mil refugiados palestinianos. O árabe é, portanto, a língua oficial e a mais falada no país. Os curdos perfazem cerca de cinco a dez por cento da população, dependendo das fontes. Muitos curdos ainda falam curdo, e a maioria vive na região Nordeste do país, ainda que uma parte considerável resida nas maiores cidades. Os arménios (concentrados sobretudo em Alepo e nos arredores), e uma série de outros grupos, como os turcomanos, os circassianos e os judeus, perfazem o restante da pequena percentagem da população.

Os muçulmanos sunitas correspondem a quase setenta e cinco por cento da população (constituindo os muçulmanos árabes sunitas sessenta e cinco por cento), e são a maioria em todas as províncias da Síria, excepto em Lataquia e em Sueida. Os alauitas contabilizam aproximadamente doze por cento da população, e formam a maioria (cerca de sessenta e dois por cento) na província de Lataquia; com efeito, setenta e cinco por cento deste grupo tem aqui residência. Os cristãos de várias seitas, sendo a ortodoxa grega a maior delas, formam perto de dez por cento, e os drusos constituem cerca de três por cento, instalados, na sua maioria, no Sudoeste da Síria, na província de Sueida (aproximadamente oitenta e sete por cento da província também é referida como Jabal al-Druze, ou Jabal Alárabe). Há também, como ficou registado acima, uma pequeníssima população judaica, que, conjuntamente com outras pequenas seitas islâmicas, como os ismaelitas, representa um a três por cento. A quantificação das populações minoritárias oscilou durante e depois dos anos 1960, quando o Partido Baath, ele próprio desproporcionalmente constituído por grupos minoritários em cargos de influência, como os alauitas e os drusos, chegou ao poder, em 1963. Com o advento deste ambiente político e económico mais favorável, muitos começaram a migrar das áreas rurais, às quais tinham estado confinados durante séculos, para as cidades.

Mais uma vez, todos estes números devem ter mudado de algum modo à conta do conflito, com tantos sírios, cerca de 4,5 milhões, a residirem agora como refugiados fora do país e muitas outras pessoas deslocadas internamente, mudando-se para diferentes cidades dentro do país para escaparem à destruição. Será necessário fazer um censo rigoroso e independente na Síria quando a guerra terminar, o que passará por determinar quantos dos actuais refugiados terão decidido voltar ao país.

Os alauitas são uma derivação obscura do xiismo duodecimano, ainda que várias figuras religiosas alauitas se oponham a esta perspectiva, dizendo, ao invés, que os alaui- tas constituem um ramo distinto dentro do islão, e não um cisma do xiismo convencional. Os alauitas veneram Ali Ibn Abi Talib como «o portador da essência divina», o segundo profeta mais importante, logo a seguir ao próprio Maomé. Ali era genro e primo de Maomé, quarto califa, ou sucessor do Profeta como líder da comunidade muçulmana, e uma das figuras seminais da História islâmica. O nome «alauita», ou «alaui», traduz-se como «aqueles que seguem Ali». Também conhecidos como nusairitas, nome derivado de um profeta muçulmano do século IX, Muhammad Ibn Nusayr al-Namiri, os alauitas integram na sua fé alguns ritos e dias sagrados do cristianismo, e até do zoroastrismo persa. Por esta razão, os muçulmanos sunitas, e até a maioria dos muçulmanos xiitas, consideraram o islão alauita uma facção herética. O grande estudioso sunita dos séculos XIII–XIV, Ibn Taymiyyah, emitiu uma fatwa (lei religiosa) que declarava os alauitas mais infiéis do que os cristãos, judeus ou idólatras, e autorizava uma jihad (luta, ou guerra santa) contra eles.

Até recentemente, portanto, os alauitas na Síria, instalados sobretudo nos confins do Noroeste do país, formavam uma minoria perseguida durante séculos. Por tradição, pensa-se que os alauitas — assim como outros grupos religiosos minoritários — tenham procurado refúgio nas regiões montanhosas do país para escapar à perseguição da maioria sunita. Um aspecto que ilustra o seu estatuto submisso, como notou Nikolaos van Dam, é o comportamento das famílias alauitas mais pobres, mesmo já no século XX, que «cediam as suas filhas como criadas às famílias mais ricas, sobretudo suni- tas da cidade, que normalmente encaravam os camponeses alauitas com desprezo». Isto pode ser parcialmente verdade, mas também é possível que, como Patrick Seale já observou, os alauitas, os drusos e os ismaelitas sejam «um vestígio da vaga xiita que varrera o Islão mil anos antes: foram ilhas deixadas a descoberto por uma maré que vazou». Seale refere-se ao chamado «século xiita», que durou sensivelmente de meados do século X até meados do século XI, quando o império xiita ismaelita (ou septimano) fatímida governava o Egipto e a Síria, e a confederação Buída (Buwayhid), sediada no Iraque e no Irão, sob cujo patrocínio se desenvolveu o xiismo duodecimano (Ithna ashari), imperava sobre o mundo islâmico. Geografia, religião e etnia tendiam a misturar-se e a produzir certas bolsas de sectarismo facilmente identificáveis e uma distinção étnica que produzia fortes laços comunitários.

A par destas identidades étnicas, regionais e religiosas, existem também laços e alianças tribais e familiares que têm desempenhado, historicamente, um papel importante. Com efeito, quando se trata da História da Síria anterior à sua formação como Estado-nação, a maioria da população identificar-se-ia antes de mais pela família ou afiliação tribal, especialmente fora das grandes cidades. Nas próprias cidades, a identificação tribal e familiar perdeu importância no período moderno, à medida que as novas relações socioeconómicas, identificação e ideologias políticas e uma maior mobilidade, inerentes à modernidade, obscureceram o terreno das ligações tradicionais, mas não deixaram de ser importantes, e continuam a sê-lo ainda hoje; com efeito, enquanto o poder político e económico se aglutinava em torno de um selecto grupo de clãs, no século XIX e já no século XX, as ligações familiares continuaram a servir como barómetros de influência. Alguém que viesse de uma das principais cidades da Síria era perfeita- mente capaz de se identificar como halabi (Halab ou Alepo), damasceno, homsi (de Homs), e por aí adiante. Com efeito, ainda persiste na Síria uma cisão entre o mundo urbano e o rural que tem tomado, frequentemente, dimensões sectárias, e tem desempenhado um papel muito importante na História moderna do país.

Na verdade, as identidades na Síria foram muitas vezes sobrepostas e entrecruzadas. A formação do Estado-nação, no século XX, e o surgimento do Islão politizado e das ideologias nacionalistas árabes apenas acrescentaram mais camadas à natureza da identidade síria.

O MOSAICO HISTÓRICO DA SÍRIA

A área que conhecemos hoje como Síria é rica em tradições culturais. Trata-se de uma verdadeira encruzilhada da História. Muitos impérios diferentes, povos e culturas cruzaram este território durante milénios, normalmente, rumo a grandes conquistas ou fugindo de pretensos conquistadores. Como tal, o país tornou-se um mosaico cultural, enriquecido pelo amálgama de diferentes sistemas de crenças, estruturas de governo e práticas culturais. Foi também, eventualmente, prejudicado por esta mesma diversidade, o que hoje está patente nesta que se tornou, de várias maneiras significativas, uma guerra civil baseada no sectarismo. Ser uma encruzilhada na História é muitas vezes óptimo para o turismo, e a Síria contém alguns dos marcos históricos e arqueológicos mais imponentes do mundo, mas isso não é necessariamente bom para um país jovem que procura há muito uma identidade nacional.

Antes da insurreição de 2011, quem partisse de viagem para a Síria acabaria provavelmente por ir visitar Palmira (Tadmur), no deserto sírio a nordeste de Damasco. É um lugar deslumbrante, tendo como ex-líbris, antes da destruição causada pelo Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS), em 2015, o Templo de Baal, consagrado a um poderoso deus pagão que emerge de diferentes tradições religiosas dos séculos anteriores à Era Comum. A cidade era um foco comercial romano na rota das caravanas do Leste para o Ocidente (a par de Petra, na Jordânia). Uma vez em Palmira — e em vários outros lugares do país —, um visitante podia observar uma série de coisas com o nome de «Zenóbia», em honra da rainha que, no século III d. C., conduziu o reino palmireno na rebelião contra o seu opressor, Roma, só para ser subjugado, mas com grande dificuldade, pelo imperador romano Aurélio, liderando pessoalmente as suas tropas.

Se viajarmos para oeste, quase em linha recta a partir de Palmira, através de Homs e em direcção à costa mediterrânica, vamos ter à Fortaleza dos Cavaleiros, o mais bem preservado castelo erigido no Médio Oriente pelos cruzados, e onde a ordem militar dos Cavaleiros Hospitalários tentou preservar a presença dos combatentes cristãos na Terra Santa. Tão extraordinária é a natureza desta construção que, mesmo durante a actual guerra civil, as forças militares a ela têm recorrido, anichando-se no interior das suas espessas mura- lhas para se protegerem do poder devastador da artilharia moderna. Na direcção sul, rumo a Damasco, podemos encontrar a Rua Direita, onde, segundo consta, S. Paulo se converteu ao cristianismo. A pouca distância, a noroeste de Damasco, e aninhada de forma espectacular numa ravina montanhosa, fica Maalula, uma pequena cidade maioritariamente cristã que é conhecida como o último lugar do mundo onde ainda se fala aramaico, a língua de Jesus. Em Alepo, na zona Norte, há igrejas em bairros cristãos que pertencem a ortodoxos sírios, sírios católicos, ortodoxos gregos, gregos católicos e ortodoxos arménios. A noroeste de Alepo fica o sítio de peregrinação de S. Simeão, o Estilita, um asceta cristão do século V que viveu no topo de um pilar durante décadas para mostrar a sua devoção a Cristo. Graças a esta herança cristã fundamental, o Ocidente cristão sempre demonstrou um fascínio particular em relação a este território, o que reforça o nível de interesse da Europa na região, independentemente de factores económicos ou geoestratégicos.

Livro: "Síria - Uma História Moderna"

Autor: David W. Lesch

Editora: Edições 70

Data de Lançamento: 19 de outubro de 2023

Preço: € 17,90

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O resto do país está repleto de sítios históricos e religiosos pertencentes à religião dominante na Síria, o islão, que chegou pouco depois da morte do Profeta Maomé, no século VII. O islão veio juntar-se a um ambiente essencialmente judaico-cristão que havia estado sob o domínio romano/bizantino. Foi a religião minoritária durante algum tempo depois das conquistas islâmicas, sobretudo tendo em conta que os conquistadores muçulmanos demonstravam uma grande tolerância para com as tradições judaico-cristãs existentes, cujos praticantes eram vistos como parentes ecuménicos. Mas pertencer à religião da elite política e social, e escapar assim a um imposto, era demasiado sedutor, o que levou a uma conversão em massa que tornou a Síria um dos primeiros bastiões do poder muçulmano durante o período medieval islâmico.

Damasco é conhecida como uma das cidades continua- mente habitadas mais antigas do mundo. A identificação moderna da Síria como um território árabe e muçulmano começou nos primeiros anos do islão, no século VII d. C. A Síria foi um destino comercial importante para os árabes da Arábia Ocidental (o Hejaz), incluindo os de Meca, durante vários séculos antes do advento do islão. O Profeta Maomé, ao que parece, antes de acorrer ao chamamento religioso, participou em caravanas comerciais até à Síria, enquanto membro do clã haxemita. O principal clã no seio da tribo coraixita, que dominava Meca, era conhecido como o Abd Shams, do qual emergiu a família Omíada.

As grandes conquistas islâmicas começaram dois anos depois do desaparecimento de Maomé. Mantendo as suas preferências, a primeira direcção que a conquista tomou foi a própria Síria, enfrentando o Império Bizantino. A família Omíada, que, aparentemente, detinha grandes propriedades em Damasco e nos arredores, desempenhou um papel central na conquista da Síria. Por volta de 638, já a resistência bizantina na Síria maior tinha sido esmagada pelos exércitos muçulmanos, e o segundo califa, ou sucessor do Profeta Maomé, Omar, nomeou um omíada como primeiro governador da Síria. O seu nome era Muawiya Ibn Abi Sufyan, que viria a ser, eventualmente, o principal responsável pela fundação do califado omíada, sediado em Damasco, em 661, na sequência do assassínio de Ali Ibn Abi Talib. No decurso dos seus noventa anos no poder, desenvolveu-se a oposição em diversas frentes contra a rápida expansão do mundo islâmico no Médio Oriente, Norte de África e Ásia Central, que passaram a estar sob o domínio de Damasco. A expansão do Islão foi um movimento dinâmico que, como acontece com frequência em impérios que crescem rapidamente, sofreu as dores de crescimento associadas ao processo.

Os Omíadas, no entanto, não conseguiram oferecer o tipo de liderança que a maioria dos muçulmanos queria. Tendia a ser um regime de e para árabes. Quando o mundo islâmico se foi tornando cada vez mais não-árabe, e começou a integrar uma certa quantidade de povos que praticavam outras religiões além do islão, isto foi visto como inapropriado. O derradeiro resultado foi a Revolução Abássida, em 750 d. C., que acabou com o Califado Omíada, mudando o centro do islão para leste, para Bagdade. Os próprios abássidas, des- cendentes directos da família do Profeta, prometiam uma liderança muito mais inspirada na religião e mais inclusiva. Ficando, de várias maneiras, aquém de ambas as promessas, à medida que os anos avançavam a Síria ia passando para segundo plano como mais uma das muitas províncias de um império em crescimento. Os sírios de hoje, no entanto, são muito orgulhosos do seu passado omíada. Muitas relíquias arquitectónicas de distinção deste período islâmico medieval ainda perduram, como a grande Mesquita Omíada, na cidade velha de Damasco, e, ainda mais sumptuosa, a Cúpula da Rocha, na cidade velha de Jerusalém. Ainda que tenha durado pouco, o Califado Omíada foi um período crucial, durante os anos formativos, e muitas vezes caóticos, dos primórdios do Islão.

À medida que o Império Abássida começava, também ele, a enfraquecer, outros grupos notáveis emergiam um pouco por todo o território islâmico, incluindo na Síria. Tinha-se tornado uma espécie de axioma, aceite desde os tempos faraónicos, que quem quer que governasse o Egipto faria melhor em controlar a Síria também, de maneira que esta pudesse funcionar como tampão contra potenciais invasores vindos do Leste, além de servir de celeiro alternativo durante a época das cheias do Nilo e os períodos de fome que se seguiam. Como tal, quando o poder abássida começou a dissipar-se, em finais do século IX, apareceu uma sucessão de dinastias no Egipto que estendeu, mais ou menos, o seu domínio à Síria. Primeiro foram os Tulúnidas e os Iquíxidas, os quais ainda professavam uma certa subserviência a Bagdade. Este não era, todavia, o caso dos Fatímidas, que chegaram ao Cairo em 969 d. C. O Império Fatímida tornou-se um equivalente muito próspero e poderoso dos Abássidas, durante dois séculos, na região mediterrânica. Os Aiúbidas, de Salah al-Din al-Ayyubi (Saladino, nas crónicas ocidentais), seguiram-se aos Fatímidas. A operar fora de Damasco, o feito mais notável de Salah al-Din consistiu em reconquistar Jerusalém aos cruzados, em 1187.

A SÍRIA SOB O DOMÍNIO OTOMANO

A muito curta dinastia Aiúbida foi substituída pelo Império Mameluco, fundado no Cairo na segunda metade do século XIII, tendo durado oficialmente até 1517. Os mamelucos foram uma dinastia turca/circassiana que governou a Síria, e cuja arquitectura é ainda bem visível no país, em particular na imponente cidadela mameluca situada no coração de Alepo. Foi em 1517 que outra força turca, os Otomanos, no segui- mento da sua vitória decisiva sobre os mamelucos, em 1516, em Marj Dabiq, na Síria (perto de Alepo), chegou ao Cairo, penetrando assim bem fundo no Médio Oriente. A Síria tornar-se-ia muito importante para o sultão otomano, com assento em Constantinopla (Istambul), e viria a ser um dos poucos territórios árabes a permanecer realmente sob o domínio otomano até à Primeira Guerra Mundial (1914–1918). Quando o Império Otomano se expandiu para sul, até à Síria, os seus líderes tiveram o bom senso de reconhecer a natureza diversa da área, baseada na etnia, religião, geografia e orientação económica ao nível das rotas comerciais. Dividiram-na, então, em províncias semiautónomas que reflectiam orientações prévias. Deste modo, o mosaico étnico e religioso que é a Síria continuou constante, apesar de alguns momentos isolados de conflito sectário.

O nível de autonomia da Síria maior subia e descia em função do poder do Estado otomano. A centralização otomana do poder recuou nos séculos XVII e XVIII, quando este se viu confrontado com o forte interesse de uma série de potências europeias no seu território, sobretudo a Rússia. Apesar de tudo, a Síria começou a desenvolver instituições políticas e socioeconómicas modernas que por vezes reflectiam aquilo que emergia do coração do Império Otomano, mas também evoluiu paralelamente a ele, e, por vezes, até contra os ditames de Constantinopla. A estrutura sociopolítica de Constantinopla estava dividida vertical e horizontalmente, a fim de aplicar de forma mais eficaz o domínio de um império multiétnico, multilinguístico e multirreligioso expansivo. Verticalmente, o governo otomano era liderado pelo sultão e o seu Conselho Imperial, e o império estava dividido em províncias (vilayet ou beylerbeyik), que eram por sua vez repartidas em distritos (sanjak). Aquilo que constitui a Síria de hoje foi formado, essencialmente, durante o período otomano pelas províncias da Síria do Sul, Alepo e Beirute. As províncias otomanas eram frequentemente conhecidas — por vezes num registo coloquial — pelo nome da maior cidade do território parcelado: por exemplo, a província oficialmente designada de «Síria do Sul» compreendia territórios que pertencem actualmente à Jordânia e a Israel, sempre para sul, até ao golfo de Aqaba, apesar de muita gente na própria região se referir a ela como «Damasco», sendo esta a capital da província.

Horizontalmente, o Império Otomano estava dividido naquilo a que se chamou o sistema de millet (nações). De acordo com este sistema, nas áreas em que a lei é religiosa, pessoal ou familiar, vários grupos religiosos só têm de seguir o juízo das suas autoridades religiosas. Inter alia, foram criados millets ortodoxos gregos, ortodoxos arménios e judaicos. Como o islão era oficialmente a religião de Estado, não era considerado um millet. Este era um tipo de regime muito tolerante, e era também bastante prudente, tendo em conta que uma larga percentagem de súbditos otomanos, porventura a maioria, era não-muçulmana. Ainda é possível, na Síria de hoje, identificar alguns vestígios destas divisões, vertical e horizontal, em particular na competição política e económica entre Damasco e Alepo, o que reflecte o facto de as duas maiores cidades da Síria terem sido, tradicionalmente, centros regionais concorrentes.

À medida que o Estado otomano continuava a lutar para se proteger, já em meados do século XIX, outros poderes regionais, além dos Europeus, começaram a alargar a sua influência até à Síria. Muhammad Ali, dinasta egípcio que só nominal- mente estava sob a soberania otomana, rebelou-se contra os seus suseranos putativos em 1830, ocupando a Síria durante quase uma década e preparando-se para avançar para o coração do território turco. Só com assistência europeia conseguiram os Otomanos expulsar as suas forças. No rescaldo do hiato otomano, no entanto, emergiu na Síria uma nova classe de ilustres citadinos servindo como autoridades que intermediavam com os oficiais otomanos. Estas personagens viriam a tornar-se importantes actores políticos na Síria até meados do século XX.

Além do mais, os Otomanos começaram a sofrer cada vez mais pressão por parte dos Europeus para reformarem o império de acordo com o modelo europeu, de maneira a não colapsar espontaneamente, o que, como se temia, daria origem a uma terra-de-ninguém livre para quem a apanhasse, o que poderia dar lugar (e, eventualmente, deu) a um conflito pan-europeu. Em resposta a esta pressão, os Otomanos iniciaram o período da reforma Tanzimat. O Tanzimat (regulamentação) começou oficialmente em 1839, mas o processo de modernização, ou aquilo a que alguns chamaram o desenvolvimentismo defensivo, já tinha começado, aos arrancos e recuos, uma geração antes. Ainda que o Tanzimat tenha falhado no fortalecimento do império contra os predadores europeus, a modernização — como as reacções a este processo — ocorreu a vários níveis sem deixar de se fazer sentir na Síria. No entanto, como aconteceu com outras partes do mundo durante o período do imperialismo europeu, a região síria apareceu no radar dos mercados europeus, em última análise, para seu prejuízo económico, sendo que as indústrias europeias eram capazes de criar produtos a preços mais baixos a meio mundo de distância graças às técnicas de produção em massa e às economias de escala da Revolução Industrial. Consequentemente, as pequenas indústrias artesanais por todo o Médio Oriente sofreram de forma imensurável, o que teve repercussões importantes em termos de deslocação económica, desenvolvimento de classe e normas socioculturais no momento em que a Síria entrava no século XX. Daqui resultou um ressentimento indígena contra os Europeus, claro, mas também contra aqueles que estavam em condições de garantir termos comerciais favoráveis e/ou aceder ao capital europeu, sobretudo a minoria cristã e grupos judaicos.

Houve respostas diferentes aos continuados avanços europeus e aos esforços de modernização do Médio Oriente. Através da proliferação de jornais e da publicação de livros, não só eram divulgadas novas ideias científicas, financeiras e até filosóficas a partir do Ocidente como também importantes ideologias sociopolíticas. Entre elas estavam o constitucionalismo liberal, o desenvolvimento de uma forma nascente de nacionalismo, ou protonacionalismo, árabe e a emergência do pan-islamismo. A Síria tornou-se um dos focos da reacção nacionalista árabe, gerada por uma combinação de factores, incluindo, inter alia: a redescoberta e a nova valorização da herança árabe e o papel que os Árabes desempenharam na fundação e no incremento do islão, que estava ligado de forma muito estreita à emergência do movimento pan-islâmico salafita do final do século XIX; o chamado «Despertar Árabe», alentado por um movimento literário árabe — e uma maior distribuição da imprensa escrita — concentrado no Levante, na segunda metade de oitocentos; e, enfim, o sempre apertado controlo dos Otomanos, sobretudo num momento em que a penetração europeia dos Balcãs e do Médio Oriente permanecia inabalável, enquanto a Síria continuava a ser uma das poucas áreas ainda sob o domínio otomano.

O que é interessante notar é que, apesar da política de centralização da parte de Constantinopla, os nacionalistas árabes na Síria tendiam a revoltar-se mais por uma maior autonomia do que pela independência plena em relação ao Império Otomano. Este sentimento geral durou até à Primeira Guerra Mundial. Para o melhor e para o pior, a estrutura otomana tinha-se tornado parte do statu quo que não podia ser facilmente abandonada. Na Síria, a maioria árabe muçulmana, já ressentida dos benefícios socioeconómicos que a minoria cristã naquela área recebia das potências europeias, apoiou avidamente o pan-islamismo preconizado pelo sultão otomano Abd al-Hamid II. Em troca desse apoio, os Otomanos continuaram a contribuir para o desenvolvimento dos sectores agrícola e comercial da Síria, reforçando mutuamente os laços há muito estabelecidos entre Constantinopla e as cidades sírias, estimulando assim o desenvolvimento de uma elite de terratenentes que se tornaram mediadores do poder local, e cuja influência continuou muito depois de os Otomanos abandonarem esta área. No entanto, as políticas autoritárias e repressivas, na Síria, do governo Jovem Turco, que chegou ao poder em 1908, combinadas com as espoliações resultantes da Primeira Guerra Mundial, incluindo o recrutamento militar, impostos mais elevados e a confiscação de gado e outros recursos, viraram mais sírios contra os Otomanos, e a ideia de uma separação do império começou a ganhar forma. Como noutras partes da região, a guerra foi um ponto de viragem significativo do que viria a ser o sistema moderno do Estado-nação no Médio Oriente.