Entende-se como sobrelotado um espaço de habitação com um número de divisões habitáveis – com quatro metros quadrados ou mais – insuficiente para a dimensão e perfil demográfico do agregado.

Segundo a definição do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, vive-se em condições de sobrelotação da habitação se esta não dispuser de um número mínimo de espaços que permita: uma divisão comum; uma divisão para cada casal; uma divisão para cada adulto; uma divisão para cada duas pessoas do mesmo sexo com idades entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada pessoa de sexo diferente entre os 12 e os 17 anos; uma divisão para cada duas pessoas com menos de 12 anos.

Porém, no que respeita à lei, a sobrelotação só tem as implicações pelas consequências que possa provocar, ou seja por situações que mereçam a intervenção de organismos públicos (por exemplo riscos para a segurança ou insalubridade).

“A questão está em saber se o problema social deve merecer a criação de normas jurídico-públicas com o objetivo de regular a locação para efeitos habitacionais”, considera, em declarações à Lusa, o advogado João Gaspar Simões, especialista em direito administrativo público.

No caso de se entender criar uma lei sobre sobrelotação, explicita, seria depois necessário identificar a quem caberia fiscalizá-la.

Segundo os Censos 2021, que não distinguia entre casas arrendadas ou próprias, 12,7% das habitações estavam em condições de sobrelotação.

Entretanto, em 15 de março, o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou os resultados do mais recente Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, segundo o qual a proporção de pessoas que viviam em condição de sobrelotação em 2023 aumentou para 12,9%, mais 3,5 pontos percentuais do que no ano anterior (9,4%).

Segundo o INE, em 2023, a taxa de sobrelotação da habitação era mais elevada para a população mais jovem (21,8% para o grupo etário até aos 17 anos), diminuindo com a idade (13,9% para os adultos e 4,4% para os idosos).

À semelhança dos anos anteriores, o risco de viver numa situação de insuficiência do espaço habitacional foi mais significativo para a população em risco de pobreza (27,7% no ano passado, o que compara com 9,8% na restante população).

Aquando da consulta pública, a versão do programa Mais Habitação, aprovado pelo Governo socialista em outubro do ano passado, transformando-se na Lei n.º 56/2023), chegou a ter a indicação de que os senhorios que promovessem arrendamento em condições de sobrelotação ficariam responsáveis por encontrar uma “alternativa habitacional” para os seus arrendatários, caso essa situação fosse detetada pelas câmaras municipais.

Sobrelotação preocupa proprietários, inquilinos e condomínios que pedem fiscalização

As associações de proprietários, inquilinos e condomínios estão preocupadas com o aumento de casos de sobrelotação habitacional e defendem o reforço da fiscalização.

A Lusa contactou três associações e, apesar de nenhuma ter dados concretos, são unânimes em assinalar que tem havido um aumento de referências à sobrelotação habitacional.

“Isso deve-se a duas situações, a falta de casas e o preço delas”, resume António Machado, secretário-geral da Associação dos Inquilinos Lisboneses (AIL).

A atual crise de habitação “obriga famílias a coabitarem”, diz, referindo também “a pressão dos imigrantes”.

Segundo os últimos dados do INE, a sobrelotação afeta mais os cidadãos de outras nacionalidades do que os de nacionalidade portuguesa (22,7 e 12,6%, respetivamente).

A Lusa perguntou se seria possível obter uma desagregação dessas outras origens, mas o INE respondeu que “não é viável obter resultados estatisticamente significativos por país de nacionalidade”.

Também à Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Administração de Condomínios (APEGAC) têm chegado “reclamações de sobrelotação em determinados apartamentos”, sobretudo nas zonas litorais e nos centros urbanos.

O problema “já se vem notando há um tempo”, mas, “recentemente, tem havido mais queixas”, nota Vítor Amaral, presidente da APEGAC.

“Era uma coisa que se levantava muito esporadicamente, agora já com alguma frequência essa questão é levantada”, reconhece, adiantando que tem sido um assunto discutido em assembleias de “alguns” condóminos.

“Eu próprio tenho conhecimento de algumas situações em que se coloca a questão da salubridade”, admite, sublinhando que “o que está a causar isto é o exorbitante preço a que chegou o mercado de arrendamento” e que o arrendamento “não tem, sem dúvida alguma, a fiscalização que deveria ter”.

Sem “dados específicos” e reconhecendo que é “muito difícil” apurar a sobrelotação, Vítor Amaral arrisca dizer que “ocorrerá muito mais na imigração”, entre trabalhadores que se juntam para dividir a despesa.

“Dormem aos 20 e aos 30, inclusivamente até no sistema cama quente"

“Dormem aos 20 e aos 30, inclusivamente até no sistema cama quente [termo que se aplica aos casos em que a cama está sempre ocupada, mas por pessoas distintas em horários diferentes] e isso verifica-se porque não têm dinheiro para mais e estão indocumentados, etc”, corrobora António Frias Marques, presidente da Associação Nacional de Proprietários (ANP), que também não tem estatísticas.

“Há determinadas zonas, principalmente Lisboa […], no casco histórico, em que há […] sobrelotação e essa sobrelotação verifica-se fundamentalmente em relação a cidadãos asiáticos, que dormem até em lojas, coisas que são não-habitacionais”, retrata, situando as zonas de Mouraria, Intendente e Anjos.

Frias Marques dá conta de relatos de subaluguer não autorizado e de proprietários que alugam lojas que depois são transformadas em dormitórios.

Arrendar lojas para dormitório é "uma bomba" em termos de segurança, alerta ANP

A ANP recomenda aos associados “não fazerem contratos de arrendamento nessas circunstâncias, sabendo que aquilo vai ser um dormitório, porque até, em termos de segurança […] é uma bomba”.

Frias Marques sublinha que “as pessoas têm de estar legais” para arrendar uma casa e não duvida de que, “se o senhorio tomar todas as providências", não haveria essas situações, ainda que os contratos sejam muitas vezes feitos por intermediários, porque “os senhorios já são pessoas de uma certa idade”.

A AIL também não tem registo de queixas, mas admite que “são situações conhecidas e que já foram denunciadas”, não só nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, como noutros locais, por exemplo Beja.

“As coisas estão cada vez piores. O que se está a verificar relativamente aos imigrantes é horrível”, considera António Machado, apontando o dedo ao poder político por “não intervir, nem atuar”.

Neste contexto, “é cada vez mais urgente regular e fiscalizar” o mercado do arrendamento, “o agravamento da situação determina-o”, desde logo porque, de acordo com o INE, a sobrelotação verifica-se mais com arrendatários (23,6%) do que com proprietários (9,4%).

“Esta é a única atividade económica que não tem registo prévio, como por exemplo existe no turismo”, aponta.

“A fiscalização, neste momento, não cabe a ninguém”, critica, sugerindo uma de duas coisas: o reforço de meios e competências da ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica) ou a criação de uma nova entidade.

Os proprietários concordam que a fiscalização não tem funcionado, mas discordam da solução apontada pelos inquilinos.

O arrendamento – diz Frias Marques – “é uma atividade super regulamentada”, fiscal e juridicamente. O que falta é fiscalizar a imigração irregular e assegurar que as câmaras municipais atuam.

A APEGAC reconhece que é raro receber retorno das autarquias sobre as situações reportadas.

Perante as queixas, a administração do condomínio só tem duas coisas a fazer: reclamar junto do proprietário, “que normalmente não vive no apartamento em causa”, e junto da autarquia, para que esta possa verificar as condições de habitabilidade e salubridade.

Autarquias confirmam reclamações pontuais, mas descartam cenário de sobrelotação

Nove autarquias das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto descartam um cenário de sobrelotação na habitação municipal, confirmando, por outro lado, que têm recebido reclamações pontuais.

O aumento da sobrelotação em relação a 2022 foi transversal a todo o território, mas mais significativo nas regiões autónomas, com subidas de 7,9 pontos percentuais nos Açores e 7,3 na Madeira. No Continente, a sobrelotação aumentou em 3,3 pontos percentuais.

Os dados indicam, porém, que a taxa de sobrelotação em 2023 era mais elevada para a população residente em áreas predominantemente urbanas (14,9%).

Nesse sentido, a Lusa pediu a algumas câmaras municipais das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, as mais pressionadas pela crise da habitação, dados sobre sobrelotação.

Contactadas as autarquias de Amadora, Cascais, Loures, Odivelas, Oeiras, Sintra e Vila Franca de Xira, no norte da Área Metropolitana de Lisboa, e Alcochete, Almada, Barreiro, Moita e Seixal, no sul, sete responderam no prazo definido, de duas semanas, mas nenhuma assinalou um aumento da sobrelotação.

O mesmo se verificou nas duas autarquias da Área Metropolitana do Porto que deram retorno à Lusa: Porto e Matosinhos (Vila Nova de Gaia não respondeu).

“O número de situações [de sobrelotação] mantém-se mais ou menos idêntico ao dos anos anteriores”, respondeu o município de Cascais, que forneceu números atuais: 297 das cerca de 2.500 famílias a residir em habitação municipal estão “identificadas com sobrelotação de um ou mais elementos”.

Na resposta, a autarquia salientou, porém, que “basta a câmara ter atribuído um T1 a um casal que, entretanto, teve um filho para passar a ser um fogo sobreocupado”.

Cascais registou este ano “34 pedidos de transferência relacionados com a adequação de tipologia” da habitação social, “que poderão ser entendidos como queixas”.

Também em Loures “não se regista um aumento da situação de sobrelotação dos fogos municipais” e “tem aumentado mais o número de agregados unitários, constituídos por indivíduos com 65 ou mais anos a viverem sós”.

Neste concelho, existem, neste momento, “cerca de 50 situações identificadas como tipologia desadequada por sobrelotação, correspondendo a cerca de 2% do total do parque habitacional municipal”.

A mesma percentagem verifica-se no concelho de Sintra, onde há registo de “30 agregados em sobrelotação”, correspondendo a 2%.

“Há uma tendência para se verificarem [situações de sobrelotação], sobretudo na população mais carenciada e imigrante”

As restantes quatro autarquias não forneceram dados tão concretos, mas duas delas, Oeiras e Vila Franca de Xira, partilham uma perceção de aumento.

“Há uma tendência para se verificarem [situações de sobrelotação], sobretudo na população mais carenciada e imigrante”, constatou Oeiras.

Vila Franca de Xira realçou que “este fenómeno começou a existir no concelho há alguns meses, era inexistente até então”, destacando que envolve “sobretudo a população imigrante, muitas vezes indocumentada”.

Sem um diagnóstico social, o município confirmou ainda que têm existido “denúncias sobre a sobrelotação de habitações, através das autoridades policiais ou rede de vizinhança/comunidade”.

Porém, os dados indicam que o município tem uma “sobrelotação residual”. À data dos Censos de 2011, 1.218 residências encontravam-se em situação de sobrelotação (2,3% do total).

As câmaras municipais de Odivelas e Barreiro não forneceram dados atuais.

Odivelas encaminhou para a Pordata, que regista 9.755 alojamentos sobrelotados no concelho em 2021, um aumento de 1.785 em relação a 2011.

O Barreiro, também sem “quaisquer queixas”, remeteu para os Censos, que assinalaram um aumento da sobrelotação no concelho durante a última década, de 11,4%, em 2011, para 12,7%, em 2021.

Também em Loures “não existem queixas/reclamações formais relacionadas com situações de sobrelotação”, ainda que surjam, “pontualmente, algumas manifestações de insatisfação de inquilinos que ainda não viram resolvida a situação de adequação de tipologia”.

A autarquia acrescentou que as situações de sobrelotação identificadas envolvem sobretudo netos dos titulares do contrato de arrendamento.

Situação idêntica à vivida em Sintra, onde a sobrelotação se verifica em “famílias alargadas/extensas” e a autarquia “não rececionou queixas relacionadas”.

Já na Área Metropolitana do Porto, a câmara de Matosinhos disse não ter recebido quaisquer queixas e que, “a existirem, serão casos pontuais”.

Por seu lado, a autarquia do Porto indicou que “chegam queixas pontuais de habitações sobrelotadas” ao Departamento Municipal de Fiscalização, geralmente via Administração Regional de Saúde.

As queixas, adiantou o município, são apresentadas por “proprietários/inquilinos de frações do mesmo prédio onde se situa a fração sobrelotada ou por moradores de prédios vizinhos”.

A autarquia referiu ainda que, nos últimos dois anos, o Serviço Municipal de Proteção Civil registou 13 ocorrências de habitações sobrelotadas, sublinhando que este organismo só é chamado ao local no caso de incêndios ou outras ocorrências que obriguem ao realojamento de moradores ou causem insalubridade.

A par destas, “há ainda outras situações em que são os próprios ‘arrendatários’ do prédio ou fração sobrelotada que apresentam queixa sobre as condições de habitabilidade ou das condições do arrendamento”.

Em 09 de fevereiro, a Câmara Municipal de Lisboa informou ter feito, no último ano, 323 vistorias e 76 fiscalizações a casas sobrelotadas, tendo registado 239 queixas e denúncias.

“As juntas de freguesia de Arroios, Misericórdia e Penha de França foram as que mais denúncias remeteram para os serviços do urbanismo no último ano. Uma parte significativa das denúncias recebidas diz respeito a situações de sobrelotação em arrendamentos de curta duração”, indicou, na altura.