Em 167 horas de audições na comissão de inquérito à TAP, mais 10 depoimentos por escrito, ficaram em falta os esclarecimentos dos advogados envolvidos na indemnização de Alexandra Reis, que alegaram dever de sigilo profissional.

Em 46 audições, que corresponderam a 167 horas entre 29 de março e 16 de junho, às quais acrescem 10 depoimentos por escrito, ficaram por ouvir as sociedades de advogados que estiveram no centro das negociações entre a TAP e Alexandra Reis – SRS e Morais Leitão, respetivamente – que culminaram na saída da ex-administradora com uma indemnização de meio milhão de euros, que esteve na origem desta comissão de inquérito.

O polémico pagamento, negociado à luz do código das sociedades comerciais, e não do estatuto do gestor público que abrange a TAP desde que voltou à esfera do Estado, em 2020, e que não permitiria aquela indemnização, marcou a atualidade desde 24 de dezembro de 2022, motivando as demissões de um ministro e dois secretários de Estado, bem como as exonerações por justa causa dos presidentes da companhia aérea.

Os envolvidos no acordo que prestaram esclarecimentos à comissão de inquérito apresentaram, por vezes, versões divergentes em algumas matérias, mas num ponto todos convergiram: não são juristas - uma das frases célebres desta comissão - e seguiram as orientações das reputadas sociedades de advogados.

Os advogados alegaram dever de sigilo profissional e, embora a comissão de inquérito tenha recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu manter essa posição, não tendo sido prestados esclarecimentos por aquelas entidades, nem presencialmente, nem por escrito.

Os segredos mais bem guardados desta comissão ficaram alojados numa sala apenas acessível a deputados e assessores credenciados, apelidada pelo deputado comunista Bruno Dias como “sala das coisas secretas”, que foi uma solução encontrada dada a quantidade de documentos classificados enviados pelas entidades, e que motivou algumas discussões, desde logo pelas preocupações de alguns deputados relativamente à disponibilidade da sala e o respetivo horário.

Adicionalmente, a comissão de inquérito notificou duas vezes o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, sobre fugas de informação de documentos, levando à nomeação da deputada do PS Alexandra Leitão, atualmente presidente da Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados, para fazer a investigação sumária às eventuais fugas.

O primeiro caso causou polémica após o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias, ter lançado suspeitas de a fuga ter sido cometida por membros do parlamento, o que o relatório de Alexandra Leitão descartou.

Entre um caso e outro, deu-se a substituição do presidente da comissão de inquérito, devido à renúncia do socialista Jorge Seguro Sanches, após o que o PS classificou de um “ataque de caráter perpetrado por um parlamentar do PPD/PSD", contra o então presidente, que foi substituído por António Lacerda Sales.

A comissão de inquérito ficou ainda marcada por mais mudanças, a primeira das quais praticamente no início das audições, já depois de a ex-presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener ter identificado o socialista Carlos Pereira como o deputado da comissão que tinha estado numa reunião preparatória para audição na comissão de Economia, meses antes.

Carlos Pereira acabou por ser substituído como coordenador do PS na comissão de inquérito por Bruno Aragão, na sequência de uma notícia do Correio da Manhã sobre um alegado perdão de dívida à Caixa Geral de Depósitos.

Pouco tempo antes de assumir a liderança do BE, a deputada Mariana Mortágua foi substituída por Pedro Filipe Soares, que era suplente, e deu-se ainda a troca do deputado suplente do Chega Pedro Pessanha pelo líder do partido, André Ventura, quando a comissão se desviou do tema e foi dominada pelos incidentes de 26 de abril que envolveram o ministro das Infraestruturas, João Galamba e o ex-adjunto Frederico Pinheiro.

Este foi, de resto, um momento de viragem nas audições da comissão de inquérito, com BE e PCP a manter o foco no âmbito da comissão - tutela política da gestão da TAP em particular entre 2020-2022 – PSD e Chega a passarem a concentrar-se mais nas polémicas e a IL alternando entre os casos controversos e as críticas à gestão pública e o auxílio de 3.200 milhões de euros.

Já o PS, a partir daquele momento passou a ‘chumbar’ todos os requerimentos para audições ou pedidos de documentos que considerava estar fora do âmbito da comissão, sendo acusado por alguns partidos da oposição de recorrer ao “rolo compressor” da maioria absoluta.

Após a aprovação da comissão de inquérito no parlamento, em 03 de fevereiro, com a abstenção do PS e do PCP, os socialistas e os sociais-democratas começaram a chamar entidades para esclarecimentos sobre a TAP na comissão de Economia, o que provocou a repetição de depoimentos, como, por exemplo, o do antigo ministro Pedro Marques, que teve de se deslocar ao parlamento em dois dias consecutivos.

Também o ex-ministro Pedro Nuno Santos teve de ir ao parlamento para duas audições, tendo a primeira, na comissão de Economia, durado quase três horas e meia e a segunda, apesar de ter prometido “umas 10 horas” de explicações, durado sete horas e meia, a mais longa de todas.

Várias audições rondaram entre as cinco e as seis horas de duração, como as das protagonistas da polémica indemnização, Christine Ourmières-Widener e Alexandra Reis, tendo a mais curta sido a do Sindicato dos Economistas, que demorou apenas 41 minutos.

O máximo de audições no mesmo dia registou-se em 02 de maio, quando foram ouvidos cinco sindicatos representativos de trabalhadores da TAP.

Principais temas discutidos na comissão de inquérito

As dezenas de audições da comissão de inquérito à TAP, constituída no seguimento da polémica indemnização de meio milhão de euros paga a Alexandra Reis, trouxeram a debate vários temas sobre a gestão da companhia aérea nos últimos anos.

Entre os mais discutidos estão os chamados fundos Airbus, que permitiram a capitalização da empresa na privatização de 2015, os 55 milhões de euros pagos ao ex-acionista David Neeleman para sair da companhia, ou a prestação de serviços do antigo presidente executivo d TAP Fernando Pinto no valor de 1,6 milhões de euros.

As conclusões vão constar do relatório da comissão de inquérito, elaborado pela deputada socialista Ana Paula Bernardo, cuja versão preliminar deverá ser entregue na terça-feira, seguindo-se o período de apresentação de propostas de alteração dos partidos, até dia 10, e a discussão e votação do documento, marcadas para 13 de julho.

O relatório final deverá ser apreciado no plenário em 19 de julho.

Eis alguns pontos essenciais sobre a comissão parlamentar de inquérito à tutela política da gestão da TAP, proposta pelo BE e aprovada em 03 de fevereiro:

Os argumentos de Alexandra Reis, Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja

Protagonista da polémica indemnização de 500.000 euros que motivou a constituição desta comissão de inquérito, Alexandra Reis disse que aceitou sair da empresa “com total boa-fé” e não ter dúvidas de que foi a vontade da então CEO que levou à sua saída, embora os motivos não tenham ficado para si claros.

A saída de Alexandra Reis foi negociada por duas reputadas sociedades de advogados – a SRS a representar a TAP e a Morais Leitão do lado da gestora – tendo sido inicialmente pedida uma indemnização de 1,4 milhões de euros, que, após negociação, se fixou em cerca de um terço.

“Nem por um instante pensei que alguma vez pudesse haver alguma dúvida sobre aquele valor”, enfatizou.

Alexandra Reis disse ainda que teria renunciado aos cargos na TAP, sem contrapartida, se o ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, ou o ex-secretário de Estado, Hugo Mendes, lhe tivessem dito que preferiam que renunciasse.

Já sobre o convite para secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis afirmou que não falou com o ministro das Finanças, Fernando Medina, sobre a saída da transportadora aérea, nem sobre a indemnização.

Já Christine Ourmières-Widener, exonerada por justa causa na sequência deste caso, afirmou ser “um mero bode expiatório” e acusou o Governo de fazer um despedimento “ilegal e pela televisão”, sem respeito por uma executiva sénior.

A então presidente executiva da TAP disse que recebeu uma mensagem do ex-secretário de Estado Hugo Mendes, em 02 de fevereiro de 2022, a informar que o ex-ministro Pedro Nuno Santos autorizava a indemnização a Alexandra Reis e a pedir que fechasse o acordo, sublinhando que “não tomou nenhuma decisão relevante” no processo de saída da ex-administradora e que atuou como um intermediário entre o Governo e os advogados.

Christine Ourmières-Widener disse que teve uma reunião com Fernando Medina na véspera do anúncio da sua demissão e em nenhum momento foi informada de que seria demitida com justa causa, apenas que a “situação estava complicada”.

A ex-CEO revelou ainda que, naquela reunião, lhe foi pedido que se demitisse, mas rejeitou, por considerar que nada fez de errado.

A gestora acrescentou que estava à espera de ser despedida, mas não por justa causa, após uma reunião com João Galamba na manhã da conferência de imprensa do anúncio da exoneração dos presidentes da companhia, em 06 de março.

Por sua vez, o então presidente do Conselho de Administração da TAP, Manuel Beja, também exonerado na sequência da mesma polémica, afirmou que o princípio da não interferência do Estado na companhia aérea “foi sendo progressivamente substituído” pelo controlo e que a saída de Alexandra Reis agravou “problemas que afetam o bom funcionamento” da empresa.

Manuel Beja disse acreditar que a saída da administradora devia ter sido evitada e garantiu estar seguro quanto ao papel que desempenhou e determinado em defender a honra, considerando que as opiniões da Inspeção Geral de Finanças (IGF), que estiveram na base das exonerações, “não têm força de lei”.

O ex-presidente do Conselho de Administração da TAP acusou ainda o Ministério das Finanças de “imobilismo”, que “desacelerava” a vontade de fazer acontecer do Ministério das Infraestruturas e punha em causa decisões necessárias, considerando também que o papel do PS no processo de indemnização de Alexandra Reis não tem sido de escrutínio, mas de “proteção do Governo”.

Argumentos dos responsáveis políticos 

A chefe de gabinete do ex-ministro Pedro Nuno Santos, Maria Antónia Araújo, disse que o ministério não tinha informação sobre o respaldo jurídico para o valor da indemnização paga a Alexandra Reis quando deu “conforto político” à ex-presidente executiva da TAP e que os advogados seguiram o código das sociedades comerciais no acordo de saída, e não o estatuto do gestor público, devido ao "vínculo privado".

Já o ex-secretário de Estado Miguel Cruz disse que não havia razão para substituir Alexandra Reis em dezembro de 2021, quando comunicou ao Governo a possibilidade de renunciar caso houvesse vontade, na sequência da saída do acionista privado que a tinha nomeado, antes da polémica indemnização.

Miguel Cruz disse também que o Ministério das Finanças desconhecia que a saída de Alexandra Reis envolvia uma indemnização, porque a informação disponível era de uma renúncia, o que não implicaria aquele pagamento.

Já o ex-secretário de Estado das Infraestruturas Hugo Mendes explicou que o ministério aceitou o pedido da ex-presidente executiva para substituir Alexandra Reis para “empoderar” a autoridade de Christine Ourmières-Widener, que só tinha escolhido um membro da equipa.

Hugo Mendes afirmou ainda que se colocou “na mão dos advogados” nesta negociação e que o Ministério agiu de boa fé, respeitando o princípio da responsabilidade dos gestores.

Por seu lado, o ex-ministro Pedro Nuno Santos assumiu que a indemnização a Alexandra Reis foi um processo “que objetivamente correu mal” e lamentou o que aconteceu à gestora, considerando-a “altamente competente, inteligente e trabalhadora”.

Pedro Nuno Santos rejeitou ainda que tenha havido interferência política na TAP, considerando que as audições na comissão de inquérito o comprovam, reiterando que os governantes “não se comportam como gestores”.

Por sua vez, o ministro das Finanças, Fernando Medina, manifestou-se profundamente convicto de que todos os envolvidos na indemnização de Alexandra Reis acreditavam estar a cumprir a lei, embora não estivessem, e que propôs à ex-CEO que se demitisse por estar consciente dos danos reputacionais que uma exoneração por justa causa teria para a sua carreira.

Medina explicou que teve pela primeira vez “conhecimento das condições de saída [de Alexandra Reis] poucos dias antes da publicação da notícia”, ou seja dia 21 de dezembro de 2022, data em que o Correio da Manhã enviou perguntas sobre o caso para o ministério, tendo a notícia sido publicada em 24 de dezembro, véspera de Natal.

O ministro das Finanças garantiu ainda que a ex-presidente executiva da TAP soube que ia ser exonerada por justa causa no dia 05 de março, véspera do anúncio público em conferência de imprensa, contrariando a versão da gestora.

Fernando Medina considerou injusta e insultuosa a suspeição da existência de instruções à Inspeção-Geral de Finanças (IGF) sobre o relatório que deu origem à demissão dos presidentes da TAP, assegurando que não houve qualquer “interferência política”, garantindo também que não foi consultada qualquer sociedade de advogados para fundamentar a justa causa na demissão dos presidentes da TAP.

Fundos Airbus

Um dos temas mais abordados nas audições foi o dos chamados fundos Airbus, um negócio feito pela sociedade DGN, liderada por David Neeleman, com a fabricante de aviões, que implicou a anulação de um contrato anterior para o ‘leasing’ de 12 aviões A350, e a concretização de um novo para a aquisição de 53 aeronaves de outra gama.

No âmbito desse negócio, a Airbus providenciou créditos de capital à DGN, no valor de 226,75 milhões de dólares, para serem canalizados para a TAP através da Atlantic Gateway.

O consórcio Atlantic Gateway – composto pelos acionistas David Neeleman e o empresário português Humberto Pedrosa – venceu a privatização da TAP, levada a cabo na reta final do Governo do PSD/CDS-PP, operação que foi parcialmente revertida em 2015, pelo executivo de António Costa (PS).

Ao longo das audições, vários deputados foram questionando os depoentes qual o conhecimento que tinham da operação, considerando que a capitalização da TAP em 2015 foi feita com verbas da própria companhia.

O ex-presidente da Parpública Pedro Pinto disse que a capitalização da TAP através dos fundos Airbus “é um problema político que montaram agora” e que os pareceres sobre a operação constam das pastas de transição entregues ao Governo socialista.

Contrariando esta versão, o ex-ministro das Infraestruturas Pedro Marques disse que os membros do Governo PSD/CDS-PP que fizeram a transição de pastas em 2015 não informaram o Governo PS sobre estes fundos.

O ex-governante e atual eurodeputado disse também não ter tido conhecimento de a TAP estar a pagar pelos aviões um valor mais elevado do que os concorrentes, hipótese que está sob investigação do Ministério Público na sequência de uma auditoria pedida pela companhia aérea.

Também o antigo ministro das Finanças Mário Centeno afirmou que a pasta de transição que recebeu da sua antecessora, Maria Luís Albuquerque, não fazia qualquer referência à TAP, tendo tido conhecimento dos fundos Airbus recentemente.

Já a coordenadora da Comissão de Trabalhadores (CT) da TAP, Cristina Carrilho, disse ter a certeza de que a “negociata” de David Neeleman com a Airbus serviu para alguém “meter dinheiro ao bolso”, mas não a companhia aérea portuguesa.

Humberto Pedrosa adiantou que só “mais tarde” teve conhecimento dos fundos Airbus, explicando que a negociação foi feita por David Neeleman que, para a capitalização da companhia, “teve um empréstimo” da fabricante de aeronaves.

Questionado pela deputada do BE Mariana Mortágua sobre o porquê de lhe chamar um empréstimo, o antigo acionista respondeu: “empréstimo… Não sei o que lhe hei de chamar. Uma doação, será?”.

Já o antigo ministro da Economia António Pires de Lima (CDS-PP) disse continuar “convencidíssimo” de que o negócio com a Airbus foi feito a preços de mercado e beneficiou a companhia, mas admitiu que se os governos foram enganados, o que considera “altamente improvável”, tem de se tirar consequências, concordando com Pedro Nuno Santos, que, por sua vez, garantiu que desconhecia a operação quando foi feita a negociação com David Neeleman, em 2020, em que o Estado pagou 55 milhões de euros ao ex-acionista para sair da companhia.

Em resposta escrita enviada à comissão de inquérito, David Neeleman rejeitou que os chamados ‘fundos Airbus’ tenham sido usados para comprar ações da transportadora aérea, garantindo mesmo que ajudaram a salvar a companhia "de uma insolvência imediata”.

O empresário assegurou que aqueles fundos “foram integralmente utilizados na capitalização da TAP no âmbito do Projeto Estratégico” que foi preparado “e que foi integralmente validado tanto pelo Governo aquando do processo de privatização, como pelos vários governos que se seguiram”.

O ex-secretário de Estado Sérgio Monteiro (PSD) disse estar convicto de que os 224 milhões de euros significavam um desconto comercial pela magnitude da compra.

Se assim foi, defendeu o ex-ministro Pedro Nuno Santos, “é evidente que o desconto comercial era da TAP, porque quem comprou foi a TAP”. “Quem paga a máquina, quem paga o equipamento, o avião é quem, obviamente, recebe o desconto”, realçou.

O Tribunal de Contas (TdC), em resposta enviada por escrito pelo juiz conselheiro José Quelhas, admite analisar a origem dos fundos para a capitalização feita pela Atlantic Gateway, na nova auditoria que vai fazer, tendo em conta “informação superveniente” à que dispunha na auditoria terminada em 2018.

Naquela auditoria, o TdC concluiu que “o exame da informação disponível e pertinente não identificou riscos materialmente relevantes associados à origem dos fundos da capitalização”.

Segundo José Quelhas, o TdC entende que “documentos que tenham suportado a decisão da Comissão Europeia, de 21/12/2021, constituem factos supervenientes a considerar no planeamento da nova auditoria, que o Tribunal de Contas decidiu realizar sobre a TAP, pois, como reportado, os termos de referência dessa auditoria são fixados com base em critérios de análise de risco, materialidade, oportunidade, exequibilidade e utilidade”.

Os documentos sobre a capitalização que constam do processo da auditoria já feita são: o Plano de Capitalização anexo ao Acordo de Venda Direta e os comprovativos da sua execução, além dos acordos da reprivatização e da recompra que referiam a capitalização, a estabilidade da cláusula estatutária, e os mecanismos a usar em caso de incumprimento, e das propostas vinculativa e vinculativa revista, apresentadas pelos investidores privados no âmbito do processo de reprivatização.

O PCP pediu documentação adicional ao TdC e Parpública, por considerar, com base no acervo da comissão de inquérito, que pode não ter sido enviada documentação “fundamental” à auditoria à privatização em 2015.

“A comissão tem no seu acervo a carta da Airbus a David Neeleman a 15 de setembro de 2015, enviada à Comissão pela Parpública, que não consta da pasta de documentação que em 2023 a Parpública enviou [ao TdC]. Ora, tal facto poderá levar a concluir que o Tribunal de Contas não recebeu da Parpública em 2015 um documento fundamental do processo de privatização da TAP”, lê-se no requerimento do PCP.

Os 55 milhões de euros para Neeleman sair

Em 2020, no seguimento do auxílio de emergência do Estado à TAP e de um impasse com o então acionista David Neeleman, foram pagos 55 milhões de euros ao empresário para deixar a companhia aérea e evitar eventual litigância, um valor cujo cálculo suscitou muitas dúvidas da esquerda à direita.

O ex-administrador da TAP Diogo Lacerda Machado disse não compreender o pagamento de 55 milhões de euros a David Neeleman, por entender que o acordo parassocial “não valia mais”, face à alteração radical das circunstâncias devido à pandemia de covid-19.

Já o ex-secretário de Estado Sérgio Monteiro (PSD) considerou “anormal” que o Estado tenha pagado 55 milhões de euros a David Neeleman para ele se livrar dos problemas da TAP, que ficaram para os contribuintes.

Por sua vez, o ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, explicou que os 55 milhões de euros foram um “ponto de encontro” entre as partes em desacordo, para evitar litigância.

Esta posição foi também confirmada pelo ex-ministro das Finanças João Leão, que acrescentou que o valor resultou de uma negociação e não de uma fórmula, referindo que foram pedidos inicialmente “valores muito superiores” e garantindo que se tratou da única verba que o Estado suportou para assegurar o controlo da TAP em 2020.

Consultoria de Fernando Pinto por 1,6 ME

Um dos temas que deu que falar foi a contratação do ex-presidente executivo da TAP Fernando Pinto por dois anos, para serviços de consultoria à companhia aérea, pelos quais recebeu 1,6 milhões de euros, ou seja, 67 mil euros por mês.

Questionada sobre o tema, Christine Ourmières-Widener remeteu as respostas para uma auditoria feita pela EY, que inclui o caso da saída de Fernando Pinto, sobre a qual ainda não tinha o relatório final.

Já o ex-administrador Diogo Lacerda Machado considerou que o pagamento de 1,6 milhões de euros ao antigo presidente executivo “foi pouco para o que ele merecia” e que o valor da prestação de serviços correspondia “exatamente” aos encargos que havia com Fernando Pinto enquanto CEO da TAP.

No mesmo sentido, o antigo presidente executivo Antonoaldo Neves, defendeu, no seu depoimento escrito, que Fernando Pinto foi “um valioso conselheiro para a Comissão Executiva em diversas áreas”, tendo o aconselhamento ocorrido, “como é comum”, por “todos os meios disponíveis".

Nas suas respostas por escrito, Fernando Pinto explicou que este contrato o obrigava à exclusividade e a não ir trabalhar para as empresas concorrentes e que foi uma alternativa a integrar a administração, algo para que não estava disponível.

Privatização de 2015, reconfiguração acionista de 2017 e intervenção do Estado em 2020

Os temas do controlo acionista da TAP foram amplamente discutidos durante a comissão de inquérito, com os partidos da direita a defender a privatização feita na reta final do Governo PSD/CDS-PP, em 2014, e a atacar a reconfiguração de 2017 feita pelo Governo PS (com apoio parlamentar de BE, PCP e PEV) e o regresso ao controlo estatal em 2020, e os partidos à esquerda do PS a defender a nacionalização da companhia.

Surgiu então a discussão em torno do despacho assinado pelos ex-secretários de Estado do Governo PSD/CDS-PP Miguel Pinto Luz e Isabel Castelo Branco, que autorizou o envio de cartas-conforto aos bancos que emprestaram dinheiro à companhia, no âmbito da privatização.

O ex-ministro das Infraestruturas Pedro Marques, do Governo PS que reverteu parcialmente o negócio, considerou que aquelas cartas desequilibraram a privatização.

Pedro Marques apontou o risco para o Estado resultante daquele despacho assinado em 12 de novembro de 2015, já depois de o Governo liderado Pedro Passos Coelho saber que tinha sido derrubado no parlamento pela ‘geringonça’.

Com este “despacho autorizador dessas cartas conforto por parte daqueles dois membros do Governo no dia 12 de novembro de 2015”, segundo Pedro Marques, o Estado ficava “obrigado a comprar todo o capital da TAP de volta” em caso de incumprimento dos privados.

“As cartas conforto que foram enviadas após despacho autorizador dos dois membros do Governo [PSD/CDS-PP] diziam que a Parpública era obrigada a comprar todas as ações da TAP, […] todos os ativos e passivos da TAP no momento em que essa cláusula fosse espoletada passavam para o Estado”, sublinhou.

Também o ex-ministro socialista Pedro Nuno Santos defendeu que aquelas cartas tinham como consequência o compromisso do Estado de assumir as dívidas da companhia aérea, não só as subjacentes aos empréstimos que elas permitiram, mas também a dívida futura.

“A venda que foi feita significava que, se o negócio corresse bem, a mais valia gerada era do privado, se corresse mal, o Estado pagava. Para o bem a empresa era do privado, para o mal a empresa era do Estado”, reiterou o ex-governante.

Desta forma, Pedro Nuno Santos apontou que o que aconteceria “inevitavelmente” em 2020 era o incumprimento do pagamento de 121 milhões de euros à banca que ainda estavam ao abrigo daquelas cartas de conforto, devido às dificuldades causadas pela pandemia, e, assim, a companhia aérea “tornar-se-ia pública por imposição do acordo feito em 2015”.

“Esta é a primeira dimensão de um negócio que lesou o interesse público”, acusou Pedro Nuno Santos.

Segundo comunicado de Miguel Pinto Luz, o “direito potestativo é o mecanismo de controlo” que criaram “para permitir que o Estado retomasse a propriedade da TAP”, que teria “prevenido a necessidade de indemnizar David Neeleman em 55 milhões de euros como veio a acontecer”.

Relativamente à intervenção de emergência na TAP em 2020, o à data presidente do Conselho de Administração, Miguel Frasquilho, defendeu que “não se tratou de nenhuma opção ideológica”, mas sim “uma premente necessidade” face à recusa de auxílio dos privados.

“Nunca esquecerei a opção tomada pelo Governo em representação do Estado em salvar a TAP. Não tenhamos ilusões, se o objetivo era salvar a TAP, não havia outra alternativa. […] Não se tratou de nenhuma opção ideológica, tratou-se antes de uma premente necessidade, uma emergência, que permitiu salvar milhares de postos de trabalho”, defendeu o antigo ‘chairman’.

Já o ex-acionista da TAP Humberto Pedrosa disse que a opção política do Governo foi auxiliar a companhia em 2020 de forma a voltar ao controlo público, mas acreditava que o executivo manteria o grupo Barraqueiro como parceiro estratégico.

Por sua vez, o atual ministro das Infraestruturas, João Galamba, considerou que as privatizações passadas da TAP, tentadas e uma concretizada, “foram remendos com parceiros pouco fiáveis” com modelos de negócio pouco sustentáveis, sublinhando que o decreto-lei para a próxima abertura de capital permitirá diferentes opções.

Nova privatização

O tema da nova privatização, cujo decreto-lei que dará início ao processo deverá ser aprovado até este mês, foi também abordado, com PCP e BE contra e a Comissão de Trabalhadores entre as estruturas que manifestaram preocupações.

O ministro das Finanças, Fernando Medina, garantiu que a privatização seguirá critérios fundamentais de natureza estratégica para o país, como a manutenção do ‘hub’ em Lisboa e da companhia aérea autónoma, bem como a expansão da transportadora.

Por seu turno, o secretário de Estado João Nuno Mendes disse que o Governo não está aberto à possibilidade de vender a totalidade da TAP no processo de reprivatização que está em preparação, em linha com declarações do primeiro-ministro.

Já o ex-acionista Humberto Pedrosa considerou que não é o momento certo para vender e que se a TAP fosse dele esperava por melhor oportunidade.

Também o antigo administrador Diogo Lacerda Machado disse que, em 2020, a Lufthansa estava entusiasmada com um investimento na TAP e “aceitava ser minoritária”, o que permitiria que a empresa continuasse nacional e “com direção efetiva em Portugal”, acrescentando não estar “certo nem seguro” que acontecesse agora “aquilo que era muito bom em fevereiro de 2020 e que esteve à beira de acontecer”.

Por outro lado, o antigo presidente do Conselho de Administração da TAP Miguel Frasquilho fez votos de uma privatização da companhia aérea bem-sucedida o mais rápido possível e defendeu que, se o Estado mantiver participação, deve ser “claramente minoritária”.

Já o ex-ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, considerou que não deve fazer juízos sobre “o tempo, o modo e o quanto” da privatização da TAP que está a ser preparada, reiterando que a companhia não sobrevive sem estar integrada num grupo de aviação.

As revelações dos partidos

O BE denunciou o contrato de prestação de serviços de consultoria com Fernando Pinto, no valor de 1,6 milhões de euros, bem como as ‘reformas douradas’ de outros antigos administradores.

Já o PCP trouxe à discussão a contratação de Fernando Pinto para a gerência da Atlantic Gateway em 19 de junho de 2015 - justificado pelo próprio como um "erro administrativo" - tendo o deputado Bruno Dias apontado que o gestor público tinha, assim, emprego garantido com quem estava a negociar com o Estado para comprar a empresa.

Os comunistas revelaram ainda a possibilidade de não ter sido enviada pela Parpública ao Tribunal de Contas (TdC) documentação “fundamental” à auditoria à privatização em 2015.

A IL denunciou a reunião preparatória de uma audição parlamentar com a então CEO da TAP e o grupo parlamentar do PS, bem como um email trocado entre Ourmières-Widener e o ex-secretário de Estado Hugo Mendes sobre um pedido de alteração de um voo onde viajava o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

O deputado do PS Bruno Aragão revelou que, em 12 de janeiro de 2022, o ‘chairman’ da TAP foi alertado por uma sociedade de advogados para a circunstância dos administradores estarem todos sujeitos ao estatuto do gestor público.

O PSD deu nota de um email de Alexandra Reis à tutela, enviado após a saída do acionista privado, em que colocava o seu cargo à disposição, caso fosse essa a intenção do Governo, e pôs ainda na ordem do dia a discussão sobre um eventual parecer jurídico adicional ao relatório da IGF que levou à exoneração dos presidentes da companhia.

Já o Chega trouxe à discussão a contratação, em dezembro de 2022, de Karolina Tiba como nova gestora para a área de tripulantes de cabina, que alguns dirigentes sindicais apelidaram como um caso de “diretores fantasma”.

*Artigo escrito por Maria João Pereira e Joana Felizes, da agência Lusa