Portugal passa a ser o segundo país da União Europeia a levar o TikTok a tribunal, com duas ações entregues esta semana no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, uma dirigida a utilizadores menores de 13 anos, que prevê uma indemnização até 450 milhões de euros, outra a utilizadores com 13 ou mais anos, no valor de 670 milhões.

O valor pedido baseia-se em estimativas apresentadas ao tribunal que têm a ver com o número de utilizadores e com um dado solicitado ao TikTok: o valor que cada utilizador residente em Portugal deu a ganhar à plataforma ao longo dos anos. "O nosso raciocínio é objetivo e que tem a ver com o ganho ilícito e abusivo", diz a secretária-geral da organização Ius Omnibus, Daniela Antão. "Há o dano patrimonial e o não patrimonial".

"O TikTok recolhe dados de toda a espécie e vai a níveis muito profundos da intimidade das pessoas, do perfil psicológico ao estado emocional. Muitas vezes sabe mais sobre o utilizador do que ele sabe de si", adianta.

As crianças e o público jovem, ainda em formação, "que vive muitas vezes da aprovação dos outros", são o alvo mais vulnerável. "São capazes de pôr em causa a sua intimidade, mostrando-se em vídeos no TikTok que, por serem de tal forma polémicos, perigosos e estapafúrdios, vão gerar mais atenção, mais seguidores, mais likes", diz a responsável.

A lista de comportamentos ilícitos imputada ao TikTok é generosa: "violação do direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à proteção da saúde, da segurança e dos interesses económicos, direito à reparação dos danos, violação do direito à integridade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à imagem, à reserva da intimidade e da vida privada, à proteção contra formas de descriminação", entre outras.

"É sabido que o TikTok retira informação sobre as habilitações religiosas, políticas, orientação sexual, e faz uso dessa informação para decidir que conteúdos e de que forma vai manipular psiquicamente aquela pessoa para a manter mais agarrada", explica Daniela Antão.

"O que é dramático é que a plataforma TikTok, que começou por ser de entretenimento saudável, de coreografias e danças, acaba por ter a sua essência, o seu modelo de negócio, muito assente nesta perversão, que é induzir as pessoas a exporem-se além do razoável ou contra o seu próprio interesse. E pessoas são também crianças e adolescentes", lembra.

De então para cá, o TikTok inventou até uma maneira de monetizar ainda mais as coisas: "As pessoas compram moeda TikTok para, por exemplo, falar com a celebridade xis ou ípsilon. Pagam para chegar a essa pessoa, para ter o seu telefone". Neste tema, a acão da associação apresenta casos de pais que foram surpreendidos com contas de milhares para pagar por gastos dos filhos na aplicação.

Mas também existe o caso inverso. "Há miúdas pequenas a fazer lives à espera de dinheiro em forma de presentes. Estão sempre com grandes decotes, quanto mais despidas estiverem, mais dinheiro ganham e mais seguidores têm. É um desvirtuamento do desenvolvimento humano", acredita a responsável.

"Ninguém está à espera de ser instrumentalizado para, de repente, ficar viciado, mas o facto é que é isso que acontece. Somos maus juízes em causa própria, uma pessoa viciada não vai dizer mal do vício. E há mesmo uma adição. O pior é que estamos a falar de miúdos, de crianças". Os desafios que lhes são propostos "podem causar danos extremos, incluindo morte ou coma". Mas, "as pessoas têm pouca consciência do que está a acontecer".

"Não temos nada contra o TikTok, aliás, outras plataformas têm de ser escrutinadas", mas, "o nível de adição induzido por esta plataforma é muito superior às outras. Na nossa ação temos uma estatística que mostra a linha de engagement [comprometimento] sempre a subir, o número de horas passadas no TikTok em comparação com as outras redes sociais é muito superior".

Dados oficiais relativos ao ano passado mostram que em média um utilizador passa mais de uma hora e meia por dia no TikTok, 45 minutos no Instagram e 20 minutos no Facebook. Em Portugal, dos 2,8 milhões de utilizadores estimados (a Ius Omnibus calcula que sejam já 3,5 milhões), mais de 35% dos utilizadores tem entre 19 e 24 anos.

Em resumo, "o TikTok não é a única plataforma que está sujeita ao escrutínio da lei portuguesa e não é a única plataforma que merece a atenção da Ius Omnibus. O que acontece é que, por razões diversas, o TikTok tem problemas mais graves e, por isso, considerámos mais urgente reagir".

O apelo à Assembleia da República e à CNPD para agirem

Há vários temas em torno da polémica TikTok. A Ius Omnibus estabeleceu uma distinção clara entre o que é a estrita legalidade do respeito pelas regras de proteção de privacidade e direitos de personalidade e as questões de geopolítica, cibersegurança e defesa nacional, que estão atualmente a ser discutidas nos Estados Unidos ou na União Europeia, por exemplo.

"O tema das nossas ações é outro. Trata-se de uma empresa que opera em Portugal e deve obediência à legalidade portuguesa. Se fosse Portugal a operar na China ou na Islândia ou onde quer que fosse, deveria obedecer à legalidade aí em vigor. Não há aqui lugar para juízos políticos. Mas também não devemos ser complacentes só porque a empresa é de um país que é uma potência económica. Isso é irrelevante para o caso", afirma Daniela Antão.

Dá-se ainda a coincidência de as ações instauradas contra o TikTok em Portugal acontecerem na mesma altura em que o Reino Unido condena a empresa ao pagamento de uma coima de 12,7 milhões de libras (perto de 14,5 milhões de euros ao câmbio atual) exatamente devido à presença de crianças com idade inferior a 13 anos no TikTok, o ponto fulcral de uma das ações da Ius Omnibus.

Na Irlanda, onde foi aberta uma investigação pelo mesmo motivo em setembro de 2021, espera-se para breve uma decisão judicial sobre o assunto. E Itália mandou recentemente o TikTok suspender as contas de todos os utilizadores que não tivessem comprovadamente 13 ou mais anos.

Do ponto de vista político, em França discute-se, já com um diploma pré-aprovado, aumentar a idade mínima para se registar no TikTok dos 13 para os 15 anos, e obrigar a plataforma a encontrar um mecanismo de controlo efetivo dessa regra, algo que também é pedido na acão que decorre agora em Portugal. "Todos sabemos que a regra não é cumprida e os miúdos sabem ultrapassar esta barreira, há até explicadores na Internet que ensinam a fazê-lo".

Aqui, a Ius Omnibus também pede autocontrolo. "Estão identificadas as infrações, é preciso corrigi-las. "A versão do TikTok na China não permite todas estas liberdades, consegue impedir que as crianças que não têm a idade estabelecida usem a plataforma. E o conteúdo que passa na plataforma é pedagógico, educativo, informativo, adequado ao público infantil - o programa '60 Minutes' fez um trabalho interessante sobre isto. O que quer dizer que não há uma incapacidade técnica e que, se a plataforma quiser, é uma plataforma saudável, adequada ao seu público", justifica.

A responsável recorda que "se um meio de comunicação publicar um conteúdo que infringe normas básicas, incita à violência, ao ódio, à discriminação, à auto-flagelação, há uma intervenção e o órgão é obrigado a retirar esses conteúdos da plataforma e, provavelmente, a pagar uma coima. Aqui é igual; não podemos deixar entrar pela janela aquilo que proibimos pela porta".

Em Portugal, muito está por fazer. "O primeiro responsável é o regulador [Comissão Nacional de Proteção de Dados [CNPD)], que tem nas suas competências essa tarefa, e com quem a Ius Omnibus está disponível para colaborar no que for útil", diz a secretária-geral da instituição.

Além da CNPD, há também o órgão legislador, a Assembleia da República. Os 13 anos foram também a opção do Estado português quando fixou a idade mínima para alguém se registar no TikTok. "Isso pode ser alterado. A UE estabeleceu os 16 anos, mas deu liberdade aos Estados para irem até aos 13. Houve alguma discussão pública séria sobre ser esta ou outra idade e porquê?", questiona.

Por outro lado, "há que pensar no que fazer aos conteúdos ilícitos nas mais variadas formas. Não pode um pseudo-consentimento feito na utilização da plataforma ou no registo servir para um prestador de serviços destruir a minha pessoa. Quando consinto, não estou a consentir que me façam mal. Se os conteúdos, pela sua natureza, pelos algoritmos usados, são deliberados para inflingir sofrimento ou dano no utilizador, isto não é permitido. Por isso, a Assembleia da Republica tem de pensar que disciplina quer exercer sobre a ilicitude destes comportamentos", considera Daniela Antão.

E lembra que "há uma diretiva comunitária que vai ter de ser cumprida. Aliás, o comissário europeu do Mercado Interno, Thierry Breton, falou com o CEO do TikTok sobre isso: vai ter de retirar os conteúdos ilegais e assegurar a transparência dos algoritmos. Podemos esperar por uma norma europeia ou Portugal pode pensar no assunto e resolvê-lo".

"Os dados pessoais são o novo ouro", afirma. Por esse motivo, o acesso a dados por terceiros é outra das violações denunciada pela Ius Omnibus. "Quando dá o seu consentimento, o utilizador não está a autorizar a utilização dos seus dados por terceiros. Outros a quem o TikTok vende dados. E nós sabemos que os dados foram transferidos para fora da União Europeia", adianta.

Além disso, "não é verdade que a plataforma seja gratuita. O modelo de negócio é: mantenho uma corrente de vídeos que vão ao encontro dos interesses estabelecidos para o perfil de cada utilizador, pelo meio há anúncios e o TikTok ganha dinheiro com isso. Os utilizadores estão a ceder os seus dados pessoais, que o TikTok vai vender a alguém que vai fornecer publicidade específica".

Associação já patrocinou mais de dez ações em defesa do consumidor

A Ius Omnibus tem mais de 800 associados, todos consumidores individuais. Ser membro da associação, que atua numa perspetiva transnacional, não tem quaisquer custos "nem pedidos escondidos". O que a diferencia da Deco é também "não ter qualquer ligação às empresas que são ou possam vir a ser visadas pelas suas iniciativas, não só ações populares. Isto confere-nos um grau de independência que dá mais conforto à nossa atuação", sublinha Daniela Antão.

A instituição "entende que tem um papel fundamental na democracia, no Estado de Direito, porque um consumidor individual não tem milhares de euros para financiar uma ação contra uma gigante do mercado e fazer valer os seus direitos. Esta pulverização dos lesados acaba por criar uma falha que é preciso resolver. Organizações como a Ius Omnibus vêm colmatar essa falha e assegurar que milhares de pessoas tenham acesso à justiça, ao direito e à reparação dos danos. E não há democracia real, desculpe o anglicismo, se não houver accountability [responsabilização]".

"Não estamos em guerra com as empresas, pelo contrário", repete Daniela Antão. "A Ius acredita nos mercados livres. Agora, se os mercados têm fenómenos em que a lesão dos consumidores não é repercutida num custo para quem lesa, por perda de receita, por dever de indemnizar, então o próprio mercado deteriora-se".

Por isso, a instituição desafia os residentes em Portugal que tenham sido utilizadores do TikTok no período abrangido pela ação a registarem-se no seu site para "quando e se, desejavelmente, o tribunal condenar o TikTok ao pagamento da indemnização, essas pessoas possam beneficiar da parte que resulta da distribuição do valor global por cada um".

Daniela Antão faz questão de salientar outro ponto: "A Deco, como a Ius Omnibus e outras entidades, como a Citizens Voice, não são concorrentes; estamos todas no mesmo barco". E lança um desafio: "Até aproveito para lançar um convite para conversar com estas duas entidades, porque prosseguimos a mesma finalidade, não queremos estar divididas".

A Ius Omnibus interpôs até hoje cerca de dez ações em tribunal. Super Bock, EDP, Mastercard, Google, Apple (Store e iPhone) e Associação Nacional dos Topógrafos são algumas das empresas visadas. Até ao momento não houve decisões condenatórias, até porque os únicos processos que chegaram ao fim resolveram-se por acordo, como foi o caso contra a Showroomprive, a quem foi exigida a colocação online do livro de reclamações, o que aconteceu.

Algumas ações são na área da concorrência e ainda não transitaram em julgado ou encontram-se suspensas à espera de uma decisão do Tribunal Judicial da União Europeia.

Além destas, há uma ação contra a banca portuguesa, cuja decisão estará para breve, num processo em que a Autoridade da Concorrência condenou uma série de bancos no caso conhecido por "cartel da banca". E uma outra "na iminência de dar entrada", relativa a um tema "muito interessante" e do momento, que tem que ver "com a utilização de dados relativos à mulher de forma inapropriada ou indevida". Para breve.

No caso TikTok, "a ilegalidade da conduta é clarividente e crassa". O fator de incerteza "é a dimensão e o poder e os recursos das rés [donas da plataforma], empresas que, tanto quanto é possível apurar, faturam 35 mil milhões. A empresa principal está registada nas ilhas Caimão, os resultados e contas não são propriamente transparentes. É uma empresa poderosa e com muita capacidade de resposta contenciosa", conclui.

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