Diário de um pai em casa. Dia 23


Recuo um mês. Um sábado qualquer. Passear pela manhã, em Campo de Ourique, em Lisboa, bairro onde moro, era um verdadeiro exercício à imaginação na mobilidade.

Quem cá mora, se saísse e regressasse, com o carro, pela manhã, o gesto de coragem serviria para atestar os níveis de paciência de cada um.

Estacionar de novo, encontrar um lugar vago, era como raspar na raspadinha. Raspamos, raspamos e nada. Procuramos, procuramos e nada. Nem um metro quadrado para enfiar o carro, por mais pequeno que seja. Passeios e esquinas estão tomados de rodas vindas de outras freguesias. Que se digladiam com as autóctones.

A imagem era válida vista do ponto de vista de quem entrasse pela Rua Ferreira Borges, Rua Saraiva de Carvalho ou Domingos Sequeira.

Nas ruas, desenhadas a régua e esquadro, avivam-se semelhanças com uma pista de carrinhos de choque. Há ziguezague na disputa do lugar mais valioso do momento. Frenesim. Só não há o embate. O chega para lá e as sirenes. Os arrumadores, esses, fazem o papel do homem pendurado.

Nos passeios, num sábado normal, as massas movimentam-se entre lojas, bebés, de vinhos e queijos, cafés, padarias, brunches, mercado, talhos, peixarias, mercearias e hortinhas gourmet. Uma antecâmara comercial antes de se sentarem à mesa nos restaurantes. De comida tradicional portuguesa, italiana, japonesa, hamburguerias, entre outros.

Tudo é disputado ao milímetro. Entre quem cá vive e quem cá vem. O bairro de Campo de Ourique respira vida. Sempre respirou. De segunda a sábado.

Os miúdos brincam na rua, jovens casais passeiam os filhos, os filhos visitam os pais, pais visitam os filhos e avôs que esperam que alguém os venha visitar.

Para além de gente, há também muitos cães. De todos os tamanhos e raças passeados por donos de todas as idades. Passeios que deixam as suas marcas, embora não tantas como antigamente, reconheço.

Para além dos canídeos, os pombos, e algumas gaivotas, dão o toque alfacinha a esta zona da cidade popularizada com o slogan “resvés Campo de Ourique”. Pombos, atentos em parapeitos de janelas e toldos nos cafés, agradecem a generosidade dos mais idosos e as migalhas perdidas nas esplanadas. Eles, que não respeitam o distanciamento social e que disputam, entre si, o estacionamento debaixo da cadeira.

O que acabei de descrever é uma imagem de um tempo não muito distante. Está fresco na minha memória. Mas nos últimos dias, os sábados não sabem a sábado.

Por isso, quis sentir, ver e descrever os sábados de hoje.

Peguei no carro, de manhã, para fazer a prática desportiva, de curta duração, à freguesia vizinha. Regressei e estacionei à porta. Nem um minuto perdi.

Vi que o quiosque estava aberto, bem como os supermercados (três, todos vizinhos entre si), mercearias, padarias, farmácia e dois ou três cafés.

Contemplei uma percentagem reduzida de jovens e menos jovens casais. Quase nenhuns miúdos. Não vi avós a visitarem filhos e netos, nem o inverso. Acima de tudo, deparei-me com um número considerável de idosos, de mãos dadas, maridos e mulheres, outros sozinhos, que saltitavam entre o supermercado, o café, a padaria, a mercearia e o quiosque. Passos dados em 100 metros de zona comercial ao ar livre, num tempo de isolamento social.

Por fim, vislumbrei cães que passeavam à trela. Uma presença denunciada pelo rasto. E não senti a presença de pombos. Não ouvi o “cru-cru”. Devem ter ido para outra freguesia. Distante.

Tenho saudades de não conseguir estacionar.