“Estou com ciúmes”. O comentário de Chris Wallace, moderador do primeiro debate entre Donald Trump e Joe Biden, foi ao mesmo tempo irónico e verdadeiro. A decisão de ter o microfone fechado ao candidato que não estava com a palavra nos primeiros dois minutos de cada tema e o facto de, desta vez, Donald Trump ter, ao que tudo indica, seguido o conselho dos seus assessores e evitado as interrupções constantes tornou o debate desta madrugada, em Nashville, no Texas, um evento de política normal.
E, sendo verdade que Trump também terá marcado alguns pontos com isso, a haver uma vitória é a da América moderada que não gosta de se ver representada de forma histriónica e mesmo descontrolada. O que, de alguma forma, é também a vitória de Biden, ou de “Joe dorminhoco” como Trump insiste em tentar chamar-lhe. Pode só haver alguma possibilidade de esta América moderada querer tão somente voltar a dormir sossegada.
Claro que esta não é a única América. E para muitos milhões de americanos que seguem Trump, o atual presidente repetiu a fórmula amplamente usada nas eleições de 2016: a de se assumir como um não-político que enfrenta um político profissional há décadas em lugares de poder. A narrativa de “vocês, os políticos, são todos iguais” esteve presente na forma como Trump conduziu alguns dos ataques ou respostas ao seu adversário – sendo que, quatro anos depois, também ele é um político e no mais alto cargo do país (e um dos mais decisivos no mundo).
Posto isto, importa dizer que em alguns momentos Joe Biden portou-se efetivamente como o político profissional que é. Que olha direto para a câmara e fala “às famílias lá de casa”, “aos donos dos pequenos negócios”, “aos imigrantes”. Que substitui algumas respostas concretas que faziam falta por declarações de princípio. Que assume erros, porque é humano – mas também porque essa é uma das fórmulas mais certeiras de deixar para trás algo que correu mal no passado (e, neste caso, era disso que se tratava, já que Trump trouxe para o debate a legislação de 1994 em que Biden esteve envolvido e que determinava a prisão de qualquer pessoa apanhada com pouca quantidade de droga, uma decisão que se revelou contraproducente).
Noutros momentos, o candidato democrata, ao demorar a estruturar uma resposta, pareceu perder o fio à meada. Foram pontuais e na realidade estamos a falar de frações de segundo. Mas em televisão essas são as frações de segundo que duram uma eternidade – e deu-se por elas.
Donald Trump esteve mais calmo do que no primeiro debate, não gritou nem interrompeu Joe Biden, mas em termos de conteúdo manteve-se igual a si mesmo: sem dar muitas respostas concretas sobre as medidas que irá adotar, a usar frases “slogan” para caracterizar o adversário e a sua política, e com pouca capacidade de manifestar empatia e de apelar à união.
Mas vamos aos detalhes do debate.
“I will take care of this, I will have a plan”
O debate começou por onde não podia deixar de começar. Covid-19, as baixas, os erros, a estratégia. Este é um tema em que dificilmente qualquer discussão não se torna um referendo a Donald Trump e à forma como conduziu o combate à pandemia nos Estados Unidos. E assim foi.
Trump voltou a referir-se ao “vírus chinês”, voltou a dizer que a vacina está a chegar “muito, muito em breve” e que está imune, não sabe se para sempre, mas está.
Biden fez o que tem feito. Recordou a morte de mais de 220 mil americanos e disse que “quem teve essa responsabilidade não deve ser presidente dos EUA”. Encorajou o uso de máscara, antecipou que vem aí um inverno difícil ["a dark winter"] e garantiu que com ele há um plano para combater a doença [“I will take care of this, I will have a plan”].
Porque as vacinas estão “para breve” há vários meses no discurso do presidente americano, a moderadora Kristen Welker insistiu com ele sobre a garantia que há sobre as datas em que vão chegar ao mercado e ser distribuídas. Trump falou em “semanas”, referiu-se sobretudo às vacinas em teste pela Johnson & Johnson e pela Moderna e disse que a logística de distribuição será assegurada pelo exército e que é "muito fácil para eles".
“He is living in a basement, I couldn’t do that”
A ronda Covid não se esgotou aqui. O confinamento, total ou parcial, é como noutros países um tema que divide a América e este é claramente um tema em que Trump se sente mais apoiado. Por isso, não hesitou em dizer que “não se pode ficar fechado na cave como Joe Biden” – “he is living in a basement, i couldn’t do that” ["ele está a viver na cave, eu nunca poderia fazer isso"]. Para rematar com o que tem defendido: “não podemos fechar o país porque se o fizermos não temos país”.
Na resposta, Biden aproveitou uma frase de Trump para também mostrar o poder da oratória na política. Trump falara sobre “as pessoas estarem a aprender a viver com o vírus”, Biden contrapôs o inverso: “estão a aprender a morrer com o vírus”.
Este primeiro tema não ficaria completo sem uma nota adicional. A forma como Biden surpreendeu Trump perante frases maliciosas proferidas sobre a Nancy Pelosi, a democrata que é líder da Câmara dos Representantes. “Quer responder, senhor ex-vice presidente?”, perguntou a moderadora. “Não”, disse simplesmente o democrata, secando a discussão.
"Acho que ele é democrata, mas está tudo bem”
E, claro, o momento Fauci por que todos aguardavam. Para quem não tem acompanhado tão de perto, basicamente o infecciologista Anthony Fauci, assessor da Casa Branca durante a pandemia e um profissional muito respeitado nos Estados Unidos, expressou no domingo insatisfação depois de ver comentários seus retirados fora de contexto num vídeo de campanha de Donald Trump feito para dar a entender que apoiaria a condução da crise sanitária.
Face ao episódio, e às declarações pejorativas que Trump proferiu sobre Fauci na sequência do desconforto do cientista em se ver no meio da campanha eleitoral, perguntou ontem a moderadora do debate ao presidente: “Afinal quem é que ouve?” [para tomar decisões].
“Ouço toda a gente. Dou-me muito bem com o Anthony. Mas ele disse ‘não usem máscara’, ele disse ‘isto não vai ser um problema’. Acho que ele é democrata, mas está tudo bem”.
“Eles sabem que os conheço e eles conhecem-me”
O segmento seguinte tinha tudo para ser feio – e foi. Falou-se da interferência da Rússia e do Irão, e também da China, nas eleições americanas. O que farão sobre o assunto, perguntou a moderadora?
“Qualquer país que interfira nas eleições americanas irá pagar um preço se eu for eleito”, garantiu Biden. E acrescentou sobre a Rússia: “Eles sabem que os conheço e eles conhecem-me”.
Cercado em várias frentes e desde praticamente o início do mandato pelo tema “Rússia”, Donald Trump trazia algo preparado para a conversa. E foi assim que depois de ter dito que “não houve ninguém mais duro com a Rússia do que Donald Trump”, atirou para a discussão com o apoio de 3,5 milhões de dólares que Biden teria tido de russos e do facto de ser “muito amigo do mayor de Moscovo e da mulher”.
“Nunca recebi um centavo de nenhum país estrangeiro”. Biden é taxativo na resposta e daqui segue para as contas bancárias que alegadamente o presidente tem ou teve na China e, claro, os impostos – que tinham sido o grande tema de abertura no primeiro debate.
“Eu mostro os meus impostos. E tu, o que estás a esconder? (...) Recebeste da Rússia, da China ...”, desafia o ex-número 2 de Obama. Trump sabia que este era um calcanhar de Aquiles mas ainda não foi desta que conseguiu uma resposta à altura. Responde que “pagou em antecipação milhões e milhões de dólares em impostos” e que “em breve” poderá mostrar e que foi “muito maltratado pelo IRS”.
Quem recebeu o quê de quem, quem pagou quanto e quando, era uma discussão que se antecipava e aconteceu. E que Biden fechou com uma das suas declarações de princípio: “Isto não é sobre a minha família ou a família dele - é sobre a sua família, você, classe média”. E que Trump apontou como um dos “truques” de político que “quer sair do tema”.
“Kim Jong-un não gostava de Obama..."
O tema política internacional não ficou fechado, nem poderia, sem se falar da Coreia do Norte. Trump confidenciou que teve uma “ótima conversa” com Barack Obama antes de tomar posse [exemplifica que a conversa durou bem do que era previsto] e que o ex-presidente lhe confidenciou que a Coreia do Norte era o maior problema. Com essa prioridade na agenda, explica, tratou de “resolver”. Agendou um conjunto de encontros com o líder coreano , disse, e com isso "conseguiu" repelir a ameaça de uma "guerra nuclear". “Kim Jong-un não gostava de Obama (...), nós tivemos uma boa reunião”, sublinhou.
"É como dizer que tínhamos um bom relacionamento com Hitler antes dele invadir a Europa, o resto da Europa. Por favor". A frase de Biden não deixou margem para dúvidas de que a Coreia do Norte aos olhos dos democratas e da sua presidência se eleito será outra coisa. “Vamos ter a certeza de que não nos podem fazer mal”, reforçou.
"Ninguém fez mais pela comunidade afro-americana do que Donald Trump. Talvez a exceção seja Lincoln”
De regresso à política interna, o debate percorreu temas como a saúde, sempre inevitável, a imigração e, claro, o racismo. Biden faz uma intervenção emocional em que recordou as diferenças entre o que ensinou aos filhos e o que uma família afro-americana tem de se preocupar em ensinar. “Nunca tive de ensinar à minha filha como se comportar se for mandada parar na estrada. A manter as mãos no volante e não fazer nenhum gesto em direção ao porta-luvas”.
Trump garantiu em resposta que “ninguém fez mais pela comunidade afro-americana do que Donald Trump. Talvez a exceção seja Lincoln”. E passou ao ataque, invocando um momento em 1994 em que, ao abrigo de uma nova legislação penal, Biden teria chamado aos afro-americanos “super-predadores”.
Trump teve nesta altura uma das frases da noite: “eu concorri por causa de ti e do Obama, vocês são a razão de ter concorrido a presidente”. E Biden fala aqui de caráter, e de esta ser uma eleição sobre caráter, tema com que acabou por fechar o debate, enquanto Trump assevera: “sou a pessoa menos racista nesta sala”.
Os dois candidatos ainda discutiram alterações climáticas – uma matéria em que Trump, apesar de fragilizado em várias frentes, acabou por parecer mais seguro do que Biden. Alguns comentadores viram nisso um sinal de cansaço do candidato democrata, até pela consulta ao relógio. Passava cerca de 1h20 desde o início do debate, o frente a frente estava prestes a terminar.
No final, a moderadora pediu a cada candidato uma declaração que fariam a quem não tivesse votado neles, caso fossem eleitos.
Trump disse estar confiante que o país está "no caminho do sucesso" e que será esse sucesso a unir o país. O que não acontecerá, garantiu, se Joe Biden ganhar as eleições: "Se ele ganhar, teremos uma depressão [económica) como nunca visto e os vossos planos de poupança-reforma vão à vida. Será um dia muito, muito triste para o país".
“O que está em jogo é o caráter deste país (...) é sobre decência, honra” - foi essa a mensagem final que Biden quis deixar. "Represento-vos a todos tenham votado a favor ou contra mim”. É um cliché de todos os presidentes eleitos, lá como cá. Mas por esta altura muitos já só têm saudades do tempo em que os cliché eram um lugar seguro.
Edição às 13h15 para acrescentar citações sobre a última intervenção dos candidatos no debate
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