O anúncio foi feito em sessão na sede do TC, em Lisboa, pelo juiz relator, Pedro Machete, e depois foi explicado, em comunicado lido pelo presidente, João Caupers. A decisão foi tomada por maioria, de sete juízes contra cinco.
Votaram a favor do acórdão os juízes Pedro Machete, vice-presidente, Lino Ribeiro, Fátima Mata-Mouros, José Teles Pereira, Joana Costa e Maria José Rangel Mesquita.
Contra votaram cinco juízes do tribunal, Mariana Canotilho, José João Abrantes, Maria da Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro e Fernando Vaz Ventura.
Face à declaração de inconstitucionalidade, o diploma deverá ser vetado pelo Presidente da República e devolvido, neste caso, ao parlamento, que poderá reformulá-lo expurgando o conteúdo julgado inconstitucional ou confirmá-lo por maioria de dois terços.
De acordo com Pedro Machete, o TC determinou que o diploma para a despenalização da morte medicamente assistida não respeita a Lei Fundamental, colocando em causa a "inviolabilidade da vida humana". Na mira do TC estiveram quatro artigos — o 4.º, o 5.º, o 7.º e o 27.º — desta lei.
"O tribunal apreciou, tendo concluído pela negativa, a questão de saber se a inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição constitui um obstáculo inultrapassável a uma norma como a do artigo 2.º, n.º 1, aqui em causa que admite a antecipação da morte medicamente assistida em determinadas condições", declarou o presidente do Tribunal Constitucional.
Os juízes deram razão às dúvidas levantadas pelo Presidente quanto aos “conceitos excessivamente indeterminados, na definição dos requisitos de permissão da despenalização da morte medicamente assistida, e consagra a delegação, pela Assembleia da República, de matéria que lhe competia densificar".
O artigo 24.º, n.º 1, da Constituição determina que "a vida humana é inviolável".
De acordo com João Caupers, "a este respeito considerou o tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias".
"Na verdade, a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural, dos pontos de vista ético, moral e filosófico - que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe - legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos, como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa", argumentou.
João Caupers acrescentou que "tal solução impõe a instituição de um sistema legal de proteção que salvaguarde em termos materiais e procedimentais os direitos fundamentais em causa, nomeadamente o direito à vida e à autonomia pessoal de quem pede a antecipação da sua morte e de quem nela colabora" e que, "por isso mesmo, as condições em que, no quadro desse sistema, a antecipação da morte medicamente assistida é admissível têm de ser claras, precisas, antecipáveis e controláveis".
No seu pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do diploma do parlamento sobre esta matéria, o chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa sustentou que a norma principal da lei utilizava "conceitos altamente indeterminados", e escreveu que não estava em questão "saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme a Constituição".
No entanto, o Tribunal Constitucional entendeu tomar posição sobre essa questão de fundo, ao mesmo tempo que analisou se os conceitos de "sofrimento intolerável" e "lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico" tinham ou não "caráter excessivamente indeterminado", dando razão ao Presidente da República apenas relativamente ao segundo conceito.
Em causa está o artigo 2.º, n.º 1, do diploma aprovado em 29 de janeiro na Assembleia da República, que estabelece que deixa de ser punida a "antecipação da morte medicamente assistida" verificadas as seguintes condições: "Por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde".
O que diz o acórdão?
No acórdão do Tribunal Constitucional, entretanto divulgado, que declara este diploma inconstitucional, a análise da questão de fundo sobre a incompatibilidade ou na da prática da antecipação da morte medicamente assistida com a inviolabilidade da vida humana é apontada como uma questão "incontornável" e "prévia a todas as demais expressamente colocadas" pelo Presidente da República.
"A discussão da conformidade constitucional de condições concretas ou dos pressupostos da própria antecipação da morte medicamente assistida só tem sentido - e utilidade - caso tal antecipação da morte medicamente assistida não seja, desde logo, e em si mesma, considerada incompatível com a Constituição, nomeadamente com o seu artigo 24.º, n.º 1", lê-se no acórdão.
Como enquadramento, refere-se que o direito à vida é "objeto de um reconhecimento jurídico universal", mas que "esta universalidade não impede a consagração de soluções muito diferenciadas quanto à matéria da morte medicamente assistida" em vários países.
"Dir-se-á que não está em causa uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte rápida e tranquila", argumenta-se
Segundo o tribunal, "assim sendo, o dever de proteção da vida (e, bem assim, da autonomia) de quem pretende antecipar a sua morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe uma disciplina rigorosa quanto às situações - os casos típicos - que justificam, segundo a opção legislativa, o acesso à morte medicamente assistida e garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguardar a liberdade e o esclarecimento do paciente e, outrossim, a assegurarem o controlo da verificação concreta dos casos previstos".
"Só desse modo se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um Estado de direito democrático, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém dentro dos limites que a justificam constitucionalmente, face ao dever de proteção decorrente da inviolabilidade da vida humana: a salvaguarda do núcleo de autonomia inerente à dignidade de cada um, enquanto sujeito, ou seja, um ser autodeterminado e autorresponsável", acrescenta-se.
O tribunal defende que "as situações em que a antecipação da morte medicamente assistida é possível têm, por isso, de ser claras, antecipáveis e controláveis desde o momento em que aquela prática se encontre estabelecida normativamente, devendo o procedimento assegurar a determinabilidade controlável das inevitáveis indeterminações conceituais", sem "rampas deslizantes".
Como começou este processo?
No dia 29 de janeiro, a Assembleia da República aprovou um diploma segundo o qual deixa de ser punida a "antecipação da morte medicamente assistida" verificadas as seguintes condições: "Por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde".
Votaram a favor a maioria da bancada do PS, 14 deputados do PSD, incluindo o presidente do partido, Rui Rio, todos os do BE, do PAN, do PEV, o deputado único da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, e as deputadas não inscritas Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira.
Votaram contra 56 deputados do PSD, nove do PS, incluindo o secretário-geral adjunto, José Luís Carneiro, todos os do PCP, do CDS-PP e o deputado único do Chega, André Ventura.
Numa votação em que participaram 218 dos 230 deputados, com um total de 136 votos a favor e 78 contra, registaram-se duas abstenções na bancada do PS e duas na do PSD.
O diploma aprovado em votação final global resultou de projetos de lei de BE, PS, PAN, PEV e Iniciativa Liberal aprovados na generalidade em fevereiro de 2020.
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