Ao todo, foram três as alíneas do diploma que despenaliza a morte medicamente assistida consideradas inconstitucionais pelos juízes do Tribunal Constitucional.
O anúncio foi feito em sessão na sede do TC, em Lisboa, pela juiza relatora, Maria Benedita Urbano, e depois foi explicado, em comunicado lido pelo presidente, João Caupers. A decisão foi tomada por maioria, de sete juízes contra seis.
Este foi o terceiro decreto aprovado no parlamento sobre a eutanásia e a segunda vez que o chefe de Estado, nesta matéria, requereu a fiscalização preventiva, no dia 4 de janeiro.
Na sequência desta pronúncia, o Presidente da República terá de vetar o diploma e devolvê-lo à Assembleia da República.
Esta é a segunda vez que o Tribunal Constitucional chumba um decreto sobre o tema da morte medicamente assistida.
A primeira vez foi em março de 2021, altura em que os juízes deram razão às dúvidas levantadas pelo Presidente quanto aos “conceitos excessivamente indeterminados, na definição dos requisitos de permissão da despenalização da morte medicamente assistida, e consagra a delegação, pela Assembleia da República, de matéria que lhe competia densificar".
De acordo com a juíza relatora, Maria Benedita Urbano, o TC pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 2.º, conjugada com a norma constante do número um do artigo 3" do decreto.
A alínea f) em causa define no texto "sofrimento de grande intensidade" como "o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa".
Já o número um do artigo 3.º estabelece que "considera-se morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde".
Em consequência, os juízes do Palácio Ratton também consideraram inconstitucionais as normas constantes nos artigos 5.º, 6.º e 7.º referentes ao "parecer do médico orientador", "confirmação por médico especialista" e "confirmação por médico especialista em psiquiatria".
O TC considerou também inconstitucionais as normas do artigo 28.º do decreto, na parte em que altera os artigos 134.º número três, 135.º número três e 139.º número dois do Código Penal, artigos que regulam respetivamente "homicídio a pedido da vítima", "incitamento ou ajuda ao suicídio" e "propaganda ao suicídio".
Os juízes que votaram esta decisão foram: Maria Benedita Urbano (proposta pelo PSD), Gonçalo Almeida Ribeiro (PSD), Afonso Patrão (PSD), Lino Rodrigues Ribeiro, José Teles Pereira (PSD), Pedro Machete (vice-presidente) e o presidente do TC, João Pedro Caupers.
Votaram vencido os juízes Mariana Canotilho (PS), Joana Fernandes Costa (PS), José João Abrantes (PS), António José da Ascensão Ramos (PS), Assunção Raimundo (PS) e José Eduardo Figueiredo Dias (PSD).
Foi criada uma “intolerável indefinição” no âmbito de aplicação, considera o TC
O Tribunal Constitucional concluiu que, ao caracterizar a tipologia de sofrimento em "três características («físico, psicológico e espiritual») ligados pela conjunção "e", são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto", disse o presidente do TC, João Caupers, ao ler um comunicado justificativo da pronúncia pela inconstitucionalidade do decreto hoje `chumbado´.
João Caupers sustentou que, dessa forma, o legislador "fez nascer a dúvida, que lhe cabe clarificar, sobre se a exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual)".
“Foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei", declarou.
João Caupers afirmou que o TC tinha considerado, numa anterior pronúncia, "que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser «claras, antecipáveis e controláveis» (Acórdão n.º 123/2021), cabendo ao legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes”.
O juíz referia-se ao primeiro acórdão, de março de 2021, que, como já foi mencionado, também declarou inconstitucional uma anterior versão do diploma. .
Na sequência daquele acórdão, notou João Caupers, a Assembleia da República aprovou uma nova versão da lei relativa à morte medicamente assistida não punível e “a expectativa do Tribunal era a de que nela tivessem sido introduzidas as modificações insinuadas naquele aresto”.
“Comprovou o Tribunal que o legislador, tendo embora desenvolvido esforços no sentido da densificação e clarificação de alguns conceitos utilizados na versão anteriormente fiscalizada, optou por ir mais além, alterando em aspetos essenciais o projeto anterior”, salientou.
Admitindo que, ao fazê-lo, o parlamento “limitou-se a exercer as competências que a Constituição lhe atribui”, João Caupers observou que tal opção "teve consequências, pois implicou que o Tribunal, chamado a pronunciar-se e aplicando a Lei Fundamental, houvesse de proceder a uma nova fiscalização, incidindo sobre as normas alteradas que foram objeto do pedido do Presidente da República”, disse.
Para o TC, a formulação da norma em causa, contida na alínea f) do artigo 2.º do decreto, "consente que dela se extraiam legitimamente alternativas interpretativas possíveis e plausíveis" que levaria a resultados práticos antagónicos.
Como exemplo, João Caupers disse que em termos práticos, "está em causa saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico (vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente assistida não punível".
A dúvidas que se levantou, na análise do TC, foi a seguinte: ou se reserva o acesso à morte medicamente assistida "apenas a pessoas que, em virtude de lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual" ou "garantir o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento".
A alínea f) do artigo 2.º do decreto define como "sofrimento de grande intensidade, o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa".
O que está em causa?
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu no dia 4 de janeiro ao Tribunal Constitucional (TC) para avaliar se o parlamento “cumpriu as obrigações de densificação e determinabilidade da lei” que despenaliza a morte medicamente assistida, aprovada em 09 de dezembro.
Para o chefe de Estado, esta avaliação era necessária por se tratar de uma "questão central em matéria de direitos, liberdade e garantias”.
O chefe de Estado português lembrou que o decreto da Assembleia da República “pretendeu sanar as contradições apontadas à versão anterior, optando por um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível, ao suprimir a existência de doença fatal e a alusão a “antecipação da morte””.
A Assembleia da República aprovou em 9 de dezembro a despenalização da morte medicamente assistida em votação final global, pela terceira vez, com votos da maioria da bancada do PS, IL, BE, e deputados únicos do PAN e Livre e ainda seis parlamentares do PSD.
Votaram contra a maioria da bancada do PSD, os grupos parlamentares do Chega e do PCP e seis deputados do PS.
Quatro deputados (três do PSD e um do PS) abstiveram-se. No total, estiveram presentes em plenário 210 deputados.
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