A noite era de festa anunciada. As sondagens já colocavam o Chega e Iniciativa Liberal na disputa pelo último lugar do pódio dos partidos mais votados. André Ventura e João Cotrim Figueiredo poderiam, em pouco mais de dois anos, passar de um partido de um deputado só à terceira força política nacional. Da Liga dos Últimos à Liga dos Campeões.

Ventura havia mesmo colocado a fasquia nesse patamar ao longo da campanha. Já o recato foi sendo palavra de ordem para Cotrim Figueiredo.

Para acompanhar os resultados à saída das urnas, o líder do Chega repetiu um palco que conhece: o Hotel Marriot, em Lisboa. Do lado da IL, a escolha recaiu sobre a Gare Marítima Rocha de Conde d’Óbidos, também em Lisboa.

À beira do rio Tejo, uma roulotte de venda de hambúrgueres, asas de frango e batata fritas, batizada de Epic Chichen, dava as boas-vindas aos militantes liberais.

A noite poderia e prometeria ser épica. No entanto, à chegada, João Cotrim Figueiredo fintou os jornalistas com recurso a uma porta lateral e subiu diretamente para o segundo andar e sem passar pela sala Almada Negreiros, o local onde, à sua espera, estavam 80 cadeiras com a inscrição “reservado”.

O relógio apontava as 19h50. Alguns dos muitos militantes comentavam mensagens WhatsApp, entretanto caídas nos seus telemóveis, com os mais que prováveis resultados eleitorais. Tudo indicava que a luta pelo terceiro lugar seria entre Chega e IL. Às 20h00, as primeiras projeções saltam para os ecrãs que ladeavam o palco.

Com a história prestes a ser escrita, ladeado por seis painéis de Almada Negreiros e à frente de um fundo azul, trinta minutos após as primeiras projeções, Rodrigo Saraiva – porta-voz da IL, que viria a ser eleito deputado – antevia uma grande noite para o liberalismo em Portugal.

“A probabilidade de ser uma grande noite para o liberalismo é grande, mas aguardemos porque a noite vai ser longa, mas é já certo que Portugal está hoje mais liberal”, exclamou, perante o aplauso efusivo de uma plateia maioritariamente jovem que ecoavam cânticos: “Liberal, Liberal”.

Fim da primeira breve declaração. Mais de uma centena de militantes, uns de máscara, outros nem tanto (a imensidão da sala e os tetos elevados ajudam a explicar) desagua no bar de apoio. As razões são de festa, com a máquina de café a servir apenas de decoração. “Não funciona”, informam.

créditos: ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA

Entretanto, num hotel de luxo...

Se Cotrim Figueiredo não quis dar a cara, André Ventura foi a aparição na primeira pessoa. “Saí agora da missa e não vi todas as projeções”, disse o líder e deputado, acompanhado pela sua mulher, à chegada ao hotel Marriott, em Lisboa, quartel-general do Chega.

A hipótese de maioria absoluta do Partido Socialista (PS) poderia ser a nuvem negra na vitória consagração do Chega como a terceira força política nacional. “Positivo para o Chega, negativo para o País”, atirou.

A sala New York estava montava a preceito. Mesas de som, púlpito, espaço reservado aos jornalistas e cadeiras alinhadas. Obrigatoriedade de uso de máscara. À entrada, uma guest-list dos media e pedidos de mostragem de certificados digitais a todos os que entrassem. Uma pulseira colada era a via verde para circular, para entrar e sair da sala.

Quando os primeiros gráficos eleitorais surgiram no ecrã a sala estava pouco composta. Exceção feita a meia dúzia de “jotinhas” liderados por Rita Matias – que foi eleita pelo círculo de Lisboa. Pedro Pinto (eleito por Faro) subiu ao palanque meia-hora depois de o país ficar a saber que o Chega estava a disputar a Liga dos Campeões com a IL. “É um grande resultado que o partido vai ter no dia de hoje, pois éramos um partido com um deputado e vamos, com certeza, eleger um grande grupo parlamentar”, sublinhou o secretário-geral.

A "sombra" do IL e a maioria absoluta iminente do PS, que eliminavam qualquer hipótese da direita vir formar governo, ajudam a explicar a calmaria com que se viveu durante mais de um hora no Marriott.

Entretanto, dois ecrãs. Um sintonizado numa estação de televisão. Outro, na Chega TV, onde se viam imagens de André Ventura na sua volta a Portugal — Ventura a pedalar a receber uma farda militar, a discursar e a falar ao “povo”. As frases "candidato a primeiro-ministro" (que não é) e "Chega na Rua" pontuam as imagens áreas de Portugal e as das receções aos líder em campanha. Sines, Évora, Arronches, Lisboa, Aveiro, Braga, Batalha, Coimbra, Faro, Guimarães, Mirandela, Chaves, Porto (onde recebeu a farda militar), Sertã, Tomar, Viana do Castelo, Vila Real de Santo António, Beja, Viseu e Guarda.

Os nomes de deputados eleitos vão sendo anunciados pelo speaker de serviço. Trajado todo de preto, cabelo rapado por cima das orelhas, corpo musculado e tatuado (a t-shirt deixa destapar a inscrição “boinas verdes”), interage com militantes, graceja e grita o nome de que passará a ocupar um lugar no hemiciclo.

“Bruno, Bruno... eleito por Setúbal!”, grita. “Pedro...”, continua, assim que tem a confirmação. “Chega, Chega, Chega...”, anima as tropas.

O relógio já andou duas horas desde que foram anunciadas as primeiras projeções, agora cada vez mais reais. O Chega distancia-se do IL. Será a terceira força política e terá mais deputados que páginas de programa eleitoral. É uma certeza. “Um chega consolidado, um chega em terceiro lugar” lê-se no rodapé da Chega TV. Quase certo (e seria mais tarde confirmado) era também a maioria socialista.

A sala compõe-se. Maria Vieira, acompanhada de um cão de raça pequena, era a figura mais mediática num espaço em que a regra dos mais velhos era um quase fato de gala. Gravata e sapato engraxado nos homens, vestidos de noite das mulheres.

Os deputados eleitos são cumprimentados efusivamente.

Felipe Melo, eleito por Braga e presidente da distrital minhota, entre agradecimentos, socorre-se da frase “missão cumprida” naquela que é uma “noite histórica para Braga”, reconheceu, em conversa com o SAPO24. “Levo muito trabalho e dedicação aos portugueses em geral e bracarenses, em particular, e muita força para este país”, anunciou. “Braga pode esperar uma voz crítica e construída sem o politicamente correto e uma voz muito forte na defesa intransigência dos bracarenses”, reforçou.

Rui Paulo Sousa, empresário de 54 anos, levará a sua voz e a do partido “de insurgimento contra o atual estado de coisas. Seja em Lisboa, no país, a luta contra a corrupção, contra o gasto em coisas supérfluas, o não defender as pessoas de bem, o povo que trabalha e paga impostos e vive cada vez pior”, desfilou.

Pedro Pinto (eleito por Faro), tal como Rui Paulo Sousa, um ex-CDS e empresário, quer levar na bagagem “as promessas que o PS fez ao longo dos anos e que depois se esquece”, prometeu o político de 44 anos.

Especificou logo de seguida. “A promessa de António Costa na A22. Prometeu a abolição das portagens e nunca cumpriu. Outra, a construção do hospital central de Faro (do Algarve). Por três vezes tentou-se inaugurar e a obra nunca avança e o Hospital de Lagos, em construção”, descreveu. “São duas prioridades: saúde e abolição de portagens”, resumiu. “Não são promessas, são realidades, vamos lutar pelo Algarve. Fui eleito por aquele povo e é aí que vamos ter de trabalhar”, rematou.

Os mais jovens estão representados por Rita Matias. 23 anos, funcionária do partido e a completar um mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais, foi clara: “quero ser a voz da minha geração, que estava sem representação no parlamento. Quero falar das nossas dificuldades enquanto jovens, seja no acesso ao mercado trabalho que nos deixa em condições precárias, seja na dificuldade no acesso a habitação por rendas demasiado caras para os salários que ganhamos, seja também a dificuldade de adquirir casas”, enumerou.

Gabriel Mithá Ribeiro, 56 anos, “moçambicano natural de Lourenço Marques (Maputo)”, explica, sem demoras as razões de entrada no Chega, um partido acusado por outros de ser um força política racista. “Entrei no Chega na condição de não abandonar a minha identidade originária moçambicana, a qual juntei a identidade portuguesa, mas sou africano, com muito orgulho, e assim morrerei”, avisou.

Explica o que se propõe fazer: “um debate sério sobre a moral social, questões raciais, racismo e questões socialmente mais sensíveis que a direita abandonou e que agora o Chega terá um papel importante”, referiu.

“A temática racista pela veia de um negro que vai querer bater de frente não só com a oposição política, mas com uma parte da sociedade portuguesa que anda a alimentar-se de uma alienação mental chamada racismo, isso vai ter que ser erradicado”, garantiu o professor e investigador, a lecionar em Almada.

Na Margem Sul, surge Bruno Nunes, administrador de empresas. Foi deputado municipal (CDS) e vereador (Chega) e estreia-se agora como deputado. “As pessoas começam a perceber que as promessas de socialismo e comunismo, muito implementado no distrito (Setúbal), não adiantaram nada nos últimos 45 anos”, começou por dizer. “Há um voto claro de protesto pelo que são as dificuldades no sistema nacional de saúde, acessibilidades, dificuldades económicas. O distrito é o terceiro mais pobre do país, há muito desemprego jovem, dificuldade comprar e arrendar uma casa”, enumerou.

Quer lutar com o “estigma social” que recai na península a sul de Lisboa. “Quando se diz que somos da margem sul, na capital quase que gracejam. PS e PSD tiveram a postura de margem sul do “jamais”, parece sempre "um território abandonado”, atira. “Existe um estigma social muito grande e por isso a transferência de voto direta da esquerda mais contestatária com o sistema para o Chega”, assinalou.

“Foi um território construído a pulso por quem lá vive, pelo êxodo rural, repatriados e retornados que acabaram por não ficar em Lisboa e ficaram ali. Muito da mão de obra que servia Lisboa e a parte fabril. Hoje em dia perceberam que foram enganados durante 45 anos. A voz de André Ventura demonstrou que havia uma oposição possível à direita e não e a direita fofinha que existe há 45 anos”, comparou.

“Temos uma mescla de classes sociais, basta ir aos ferrys em Cacilhas e percebe-se que as pessoas estão cansadas da forma como têm sido tratadas e discriminadas. Existe uma desigualdade social implícita do que tem sido a gestão socialista e social-democrata”, acusou.

Bruno Nunes aproveita o microfone e continua. “É verdade que a Auto Europa foi um novo fôlego que empregou milhares e criou clusters à volta, mas não podemos ficar presos. A falta investimento no porto de Sines, porto de Setúbal, fez com que não se gerasse mais riqueza”, assinalou. Centra tudo no mar. “A zona ribeirinha, não temos nenhuma capital europeia que tenha uma praia como a Costa da Caparica, ultimamente tem sido assolada por guetos”, denunciou.

Por fim, apresenta antes de entrar em funções algumas das bandeiras. “A criação da NUTT 2 é importantíssima para o distrito”, frisou, prometendo meter o tema na agenda da AR e do governo.

A segurança é outra das preocupações. “Dos 10 dos bairros mais problemáticos do distrito, cinco estão no ranking nacional com índice de maior criminalidade”, lamentou.

Entra depois pela “mobilidade e transportes que são as principais bandeira para o desenvolvimento económico e riqueza no país”, acrescentou.

Quer olhar para a habitação. “Bandeiras da esquerda que depois não as cumpre na realidade”, atirou. “Não há política de habitação jovem. Está deixada ao acaso e entrou num princípio de 'guetatização' daquilo que tem sido a gestão do distrito”, frisou.

Foca-se na questão municipal. “Há muita gente em Portugal que necessita de habitação municipal, mas a diferença é que há os que precisam e os que não precisam e usufruem dela. Aqueles que pagam, os que não pagam porque não podem e os que não pagam porque não querem”, acusou. “Quem não paga porque não quer tem de ir para o olho da rua”, chutou. “E esta questão tem de ser clara. Não podemos entregar as casas municipais em Almada, Seixal ou Barreiro a alguém que tem capacidade para viver fora do sistema".

“Basta ver quem usufrui das casas, a maioria não são titulares dos contratos, estão subarrendadas. Temos que meter a mão na habitação municipal”, avisou o deputado eleito por Setúbal. “Tem de existir lei geral que determine a forma como a habitação é entregue. Não pode ser de forma desenfreada como tem sido feito porque prejudica quem precisa. Se tivermos uma pessoa de 80 anos que não pague a renda de casa durante 6 meses vai para o olho da rua e temos situações de quem não paga rendas há 10, 15 e 20 anos, rendas de 15 euros, isso é um gozo com toda a gente”, rematou.

As portas da sala estão escancaradas “para receber o nosso grande líder”, anunciou o speaker, pondo fim à conversa com Bruno Nunes.

“Ventura segue em frente tens aqui a tua gente” gritam os militantes em êxtase. “Não importa, não importa, que digam bem ou mal, queremos o André Ventura a mandar em Portugal”, ouve-se.

“O Chega prometeu e cumpriu. Somos a terceira força em Portugal. Há uns anos ninguém acreditava que podíamos ter uma força anti-sistema. Estamos a mais de 100 mil votos (da IL) quando davam igualdade nas sondagens”, gritou Ventura.

“António Costa, eu vou atrás de ti”, avisou. “Seremos 10 ou 14 em 230 deputados. E não só um. Vamos assumir o papel de verdadeira oposição e o papel que a história nos designou. Que sova demos a quem nos queria de fora”, garantiu.

Seguiram-se os aplausos e cânticos, e brindes de champanhe.

Junto ao Rio Tejo, João Cotrim Figueiredo, líder da Iniciativa Liberal cantou também ele vitória junto de uma plateia também  em êxtase.

A luta pelo terceiro lugar estava perdida, mas a noite não podia ser de derrota quando se passa de um deputado para oito.

“O outro partido que pode cantar vitória somos nós! E isso é motivo de profunda alegria", celebrou. "Passamos de nona força política para quarta força política".

“Provámos que é possível ganhar votos sem ser populista, sem ser extremista. E essa é uma vitória da democracia em Portugal", acrescentou, despedindo-se com um autoelogio. "E provamos que se há em Portugal um fenómeno político é o Iniciativa Liberal".

Sem perguntas da audiência e com festa para fazer, Cotrim de Figueiredo deu por finda a sua intervenção.

A bomba atómica de Marcelo reforçou o PS, mas também reconfigurou o parlamento à direita, com Chega e IL a tomar o lugar que um dia pertenceu à esquerda e o CDS desaparecer do hemiciclo.