“O meu avô era marceneiro. O meu bisavô, também. E eu, desde cedo, construía os meus brinquedos”. Luís Carvalho, conhecido no seu meio como “Lacrau”, começa por explicar ao SAPO24 o natural jeito com as mãos. “Quando comecei a fazer surf percebi, aos 13 anos, que queria fazer pranchas. Fiz até aos 25 anos”, recua no tempo. É shaper. Traduzido à letra, alguém que molda, configura. Para simplificar, um artesão.
Lançou várias marcas, tem feito pranchas para outras marcas e foi responsável, por exemplo, pela “prancha de cortiça utilizada por Garrett McNamara, e pelo Kite usado por Francisco Lufinha”, atira.
Às mãos do artesão chegou mais um projeto arrojado: “The Unwanted Shapes”, pranchas de surf feitas a “partir do plástico recolhido do lixo doméstico”, que vai das “garrafas de água a cotonetes, sacos e todas as peças de plástico que apanhamos”, descreveu. Mas já lá vamos.
Luís Carvalho explica a relação entre o nome pelo qual é conhecido e a relação com a marca. “O Lacrau, que é um escorpião nosso [espécie que existe no Alentejo], vem da relação da marca” com a estrutura das pranchas. De estrutura dura por fora, mole por dentro, tal como os aracnídeos, o lacrau tem o bico que podemos associar à prancha de surf”, descreve. Além disso, há ainda “a relação com Alentejo”, onde surfa, explica.
Começou, então, por fazer pranchas de surf, “para amigos, feitas no quarto ou em garagens de amigos, em Carnaxide, Oeiras”. Desenvolveu várias marcas (entre as quais, uns anos mais tarde, a Lacrau) e evoluiu para um “projeto mais sério” ao lado de um “rapaz brasileiro”, Arte Brasil, em Coimbra, “onde tinha um espaço mais à vontade”.
A vida de máscara na boca, com um fato branco dos pés à cabeça e uma lixa, mecânica, foi interrompida pelo nascimento do primeiro filho. “Fiz o curso de Design Industrial e comecei a desenhar peças de mobiliário. Tiveram saída. O negócio cresceu mais do que o das pranchas e estive 15 anos afastado da produção”, desenrola. Até que… “Até que chegou o IKEA e deu-me um pontapé”, recorda.
Olhou, de novo, para o mar. Foi o regresso às origens. “Via o mar a crescer e voltei à produção”, conta. Recebi convites para back shape (fazer pranchas para outras marcas), integrei a Xhapeland e criei uma marca própria (Unwanted)”, enumera.
Da jangada de plástico à prancha de surf em três semanas
Está na altura de falar do plástico, essa palavra que tem estado na boca do mundo.
Recentemente, o shaper, juntamente com o colega de trabalho Lino Curado, respondeu a “um desafio da Partners [agência criativa]”: nem mais nem menos do que a construção de uma prancha de surf a partir de plástico. Teria de ver a luz do dia em três semanas e tinha a premissa de ter de ser “surfável, com performance, e um peso que correspondesse ao peso do lixo de produzimos domesticamente”, explicou. “Uma prancha de 4,5kg são 48 dias de lixo”, acrescentou - de acordo com o Eurostat, cada cidadão produz “30 kg de plástico por ano”.
Com o chapéu do “Unwanted Shapes”, desenvolvido pela Meo (Grupo Altice), não fez uma, nem duas, nem três pranchas. Fez seis. Cinco das “tábuas” foram para a água no final da sessão de ontem do Meo Rip Curl Pro Portugal, em Peniche, com Frederico Morais, Afonso Antunes e Mafalda Lopes, campeã nacional, num heat especial denominado “Beat the Plastic Waste”, que contou também com os surfistas Conner Coffin (EUA) e Brisa Hennessy (Costa Rica).
A primeira prancha foi para “a água com o Afonso, num dia de mar incrível. Foi esse o momento. Isto é para avançar”. Isto porque até àquele momento “a coisa podia abortar”, assume.
Se começou com uma ideia de “deixar as formas de plástico gerar a prancha”, com a primeira prancha “estruturada com garrafas” agarradas ao eixo central (o stringer) e “revestida com lixo variado de plástico”, passou por “uma jangada de plástico”, e, devido à obrigatoriedade de ser surfável, avançou para um outro patamar de intervenção - de fora para dentro.
Usaram “um molde” que já tinham: “duas conchas, como as sandwiches”. E por dentro “o plástico molhado com resina, compacto e fechado num processo de vácuo”. Mas, “sem outra matéria, a prancha parecia quase um colchão, era muito mole. Tínhamos de estruturar. Não podia ser só estética, tinha de ser surfável. Juntámos uma lâmina de fibra de vidro, EPS [poliestireno expandido] com material reciclado”, descreveu. E foi acrescentada “ainda uma válvula de respiração”, evitando-se a criação de bolhas, rematou.
“É uma prancha surfável, a causa é sensível a todos e estamos a ter uma adesão enorme”, frisou. À pergunta se este pode ser um produto patenteável, considera que “está tudo fresco” ainda em relação a esta iniciativa, apenas com “três semanas de vida”. As pranchas estão prontas a surfar a onda da “consciência ambiental”.
Para o fim, dá um toque pessoal à arte que desenvolve: “Antes era tudo feito à mão, passei por aí, e hoje há uma máquina. O shaper artesão está a dar lugar ao shaper designer, alguém que projeta a prancha num computador”. Apesar da ideia de o “raspar estar a acabar, apesar de a máquina ser perfeita, há ainda trabalho para ser feito à mão”. Ou não fosse a prancha de surf um “objeto complexo e pessoal e interminável. As esquisitices fazem com que haja sempre trabalho e não se chegue a um padrão industrializado”, diz, a sorrir.
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