Em 2012, o governo, através da Parpública, contratou os serviços da PLMJ para defender os interesses do Estado na privatização da ANA - Aeroportos de Portugal. Mais de uma década depois, a mesma sociedade de advogados faz a análise jurídica desse acordo para a Comissão Técnica Independente criada para avaliar a localização do novo aeroporto e considera-o equívoco e pouco claro.
O parecer da CTI, que tem como objetivo clarificar e identificar constrangimentos no contrato de concessão, é assinado por Maria Zagallo, advogada e sócia da PLMJ, que entre dezembro de 2012 e março de 2021 esteve na UTAP - Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos, primeiro com a coordenação da área jurídica, depois como coordenadora da entidade.
Quando, em 2019, o Tribunal de Contas fazia a auditoria à privatização da ANA publicada em Janeiro deste ano, em que arrasa o contrato de concessão, Maria Zagallo era já coordenadora da UTAP, uma das entidades ouvidas pelo tribunal para fundamentar a sua análise.
"É uma esquizofrenia complicada", afirma ao SAPO24 Jorge de Brito Pereira, o advogado que coordenou a equipa da PLMJ que em 2012 foi responsável pelo contrato de concessão. Na altura, tinha o comando da área de direito financeiro, mercados de capitais e privatizações da sociedade, que deixou há oito anos. Confirma que "era o coordenador", mas não adianta muito mais, recordando que tratou do que tinha a ver com a compra e venda de ações, mas que "quem tratou do contrato propriamente dito foi Pedro Melo".
Pedro Melo, que está agora na Miranda Law Firm, escusou-se a confirmar a informação ou a fazer qualquer comentário sobre o tema, incluindo às conclusões do relatório da auditoria do Tribunal de Contas, que diz que o contrato não salvaguarda os interesses do Estado, ou o parecer da CTI, onde se conclui que "o contrato de concessão, [...] longe de primar pela clareza e coerência desejáveis, suscita desafios de interpretação [...]".
Maria Zagallo também não respondeu às perguntas do SAPO24 sobre esta matéria.
De acordo com a auditoria do Tribunal de Contas, só em 2018 foi possível à UTAP "constatar a qualificação deste contrato como PPP", depois de em Março desse ano o ministro das Finanças ter determinado à entidade, "através da sua coordenadora, entre o mais, a constituição de uma comissão de renegociação do contrato de concessão " de serviço público aeroportuário celebrado entre o Estado e a ANA, detida pelos franceses da Vinci, e, então, "desencadear a nomeação da respetiva comissão de renegociação e incluir este contrato no seu reporte financeiro sobre PPP".
A decisão do governo de constituir uma comissão de renegociação prende-se com o contrato de concessão, que estabelece que "o processo tendente ao desenvolvimento do novo aeroporto de Lisboa seja desencadeado após verificação, no mesmo ano, de, pelo menos, três dos quatro fatores de capacidade fixados para o Aeroporto Humberto Delgado", o que, de acordo com informação da ANA aconteceu em 2017.
De facto, até 2018 os relatórios anuais da UTAP mencionam apenas a avaliação de quatro sectores: rodoviário, ferroviário, saúde e segurança. Só a partir desse ano os boletins incorporam o setor aeroportuário, que, ao contrário das restantes PPP, não representou para o Estado qualquer encargo líquido (em 2018, os encargos líquidos do sector público com as PPP, ascenderam a cerca de 1.678 milhões de euros).
Sem nomes, o SAPO24 confrontou a Ordem dos Advogados com os factos: "A situação apresentada é teórica e abstrata, não permitindo identificar, com segurança, a potencialidade de conflito de interesses. Ademais, podem estar a confundir-se os sentidos empírico e o jurídico do termo, este último do artigo 99º do EOA [Estatuto da Ordem dos Advogados]", diz a presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa, Alexandra Bordalo. "Todavia", continua, "caso o mesmo exista, seja da parte do indivíduo, seja do coletivo, o mesmo propaga-se, isto é, não pode nem a advogada, nem a sociedade, tomar conta do assunto, processo ou cliente, como dispõe o número 6, do artigo 99º".
O artigo em causa, que aqui transcrevemos, diz que "sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros".
Os números anteriores definem, por exemplo, que "o advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária" ou que "o advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes".
"Porventura, a situação descrita, em abstrato, terá a virtualidade de configurar impedimento, como previsto no artigo 83º do EOA", conclui Alexandra Bordalo, lembrando que, "de qualquer modo, a apreciação do CDL destina-se a casos concretos, em que se indicie infração. Em sede de deontologia preventiva, recomendamos que perante situações que suscitem questões os senhores advogados deverão analisar e ponderar cuidadosamente as regras deontológicas aplicáveis, evitando a sua violação".
Afinal, quem contratou a PLMJ e por que preço?
Em 2012, como já referido, a PLMJ foi contratada pela Parpública. A empresa estatal recusou-se a dizer ao SAPO24 quanto pagou pelos serviços da sociedade de advogados e o valor não vem discriminado no relatório e contas de 2012 ou de 2013, ano em que terminou o processo de privatização da ANA.
"A Parpública não é abrangida pelo Código dos Contratos Públicos" (ou seja, não é obrigada a publicar onde e como gasta o seu dinheiro), foi tudo o que a empresa respondeu. No entanto, segundo o relatório de auditoria do Tribunal de Contas, os serviços jurídicos (consultores jurídicos - privatização) custaram 708.975,93€. Não sabemos, no entanto, se a totalidade deste valor foi para a sociedade de advogados PLMJ.
Se a Parpública fez deste tema tabu, saber quem e porque motivo a PLMJ foi a sociedade de advogados contratada para, em 2023, fazer a análise e enquadramento das opções segundo o contrato de concessão tornou-se uma odisseia e cada entidade deu a sua resposta, todas diferentes.
Segundo a PLMJ, a sociedade "foi escolhida no âmbito de um procedimento de consulta a um conjunto de escritórios, seguindo as regras aplicáveis a este tipo de assessoria jurídica".
A coordenadora da análise jurídica, Raquel Carvalho, explicou que "a identificação da senhora Dra. Maria Zagallo, que integra a sociedade de advogados PLMJ, estava já feita" quando substituiu Mafalda Carmona como coordenadora do PT6 na Comissão Técnica Independente, acrescentando que a entidade adjudicante foi o LNEC - Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
O conselho diretivo do LNEC informa que "relativamente ao assunto em questão, deverá ser contactada a CTI - Comissão Técnica Independente, uma vez que as contratações efetuadas no âmbito do estudo para avaliar as opções estratégicas para aumento da capacidade aeroportuária da região de Lisboa e coordenar e realizar a avaliação ambiental estratégica foram realizadas pela CTI".
Uma busca no Portal Base dá conta da "aquisição de serviços de consultoria jurídica, acompanhamento e elaboração de estudo do contrato de concessão, a que corresponde o Pacote de Trabalho 6 (PT6/WP 6)", à PLMJ, por ajuste direto, por 40 mil euros (+ IVA), em 25 de Agosto de 2023.
Recorde-se que a privatização da ANA já constava do programa de privatizações 1996/97, governo liderado por António Guterres, mas só foi iniciada mais de 16 anos depois, perante a necessidade de cumprimento atempado dos compromissos assumidos no âmbito da troika e do Programa de Assistência Económica e Financeira assinado com o FMI e com a Comissão Europeia. De resto, chegou a haver duas resoluções de conselho de ministros neste sentido, uma resolução de conselho de ministros de 2010, governo Sócrates, que não chegou a concretizar-se, e outra de 2012, governo Pedro Passos Coelho.
Agora, mais de uma década depois, o PCP vem propor uma comissão parlamentar de inquérito à venda da ANA - Aeroportos de Portugal e a um processo que a auditoria do Tribunal de Contas, feita a pedido da Assembleia da República, revelou ter "irregularidades" e "deficiências graves". Isto, apesar de o presidente da Parpública ter revelado que houve outro relatório do Tribunal de Contas, em 2016, que nunca chegou a ser aprovado ou publicado, segundo a instituição devido à extinção do Departamento de Auditoria IX, "em 31/12/2017, no âmbito da reorganização operada na 2.ª Secção do Tribunal".
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