“Tranquilo, mas alerta.” Ao início da noite de terça-feira, 13 de abril, era esse o estado de espírito na casa e seminário católico dos Missionários Combonianos, em Butembo (província do Kivu-Norte, no nordeste da República Democrática do Congo, não longe da fronteira com o Uganda). Mas os últimos dias têm sido de apreensão, depois de manifestações, conflitos e violência por vezes com mortes. E ameaças diretas à casa e seminário dos combonianos na localidade.
“A situação é muito fluída”, diz ao 7MARGENS o padre Claudino Gomes, que completou 74 anos na quarta-feira. Por isso, os 25 ocupantes da casa (seis missionários e 19 seminaristas) continuam apreensivos perante a violência crescente.
Toda a atividade comercial de Butembo, cidade de mais de dois milhões e meio de habitantes, está interdita há mais de dez dias, pelos designados grupos de pressão. À noite não se circula. Os Combonianos sabem que, numa reunião de líderes destes movimentos de base, no último fim de semana, foi discutido o saque da sua casa. “Pensam que há aqui agentes da ONU escondidos. Graças a Deus, um dos participantes nessa reunião conseguiu, embora a custo, convencer os outros de que isto é só um seminário de religiosos. Mas somos um alvo…”
Sexta-feira passada, por exemplo, ouviam-se bem perto da casa rajadas de metralhadora. Poucas ruas adiante, uma manifestação foi dispersa pelo exército e pela polícia. Na fuga, muitos jovens saquearam e pegaram fogo a um escritório da administração pública, ao lado dos Combonianos, que ainda tiveram várias janelas atingidas por pedradas. “Danos colaterais”, diz o padre Claudino, “da enorme tensão social que aqui se vive e pode aumentar”.
Em Butembo, têm-se registado muitas manifestações (na semana passada foram diárias), sobretudo de jovens e adolescentes, que por vezes degeneram em conflito e em alguma vítima mortal. Protestam contra o que as populações e, nomeadamente, as “Associações e Organizações Civicas de Butembo-Lubero-Beni” consideram a nula eficácia dos “capacetes azuis” da ONU perante as mortes e massacres que assolam a região, sobretudo mais a norte, na cidade e distrito de Beni, a hora e meia de carro.
O triângulo da morte
Nessa extensa área, denominada como “o triângulo da morte” e que vai até ao maciço do Ruwenzori, na fronteira com o Uganda, são quase diários os massacres e a violência, atribuídos à ADF (Allied Democratic Forces), grupo que começou por ser oposição armada ao governo ugandês e desde 2019 é caracterizado como tendo ligações ao Daesh. Há um mês, o Departamento de Estado dos EUA referiu-se ao que designou como o Daesh da RDC (República Democrática do Congo) e o Daesh-Cabo Delgado (Moçambique) como dois grupos terroristas.
No último sábado, 10, em Goma (capital da província do Kivu-Norte, junto do lago Kivu, 400 quilómetros a sul de Butembo) registaram-se várias mortes em conflitos interétnicos entre os kumu/hútu, e os nande, a etnia maioritária.
Já nesta segunda-feira, Carly Kasivita, o governador da província, deslocou-se ao bairro onde se registaram os confrontos, para falar com os líderes das diferentes comunidades: salvou-se por um triz de ser morto com uma arma branca. Na terça-feira, perante a violência extrema das confrontações interétnicas em Buhene/Nyiragongo no distrito de Goma, decretou a proibição total de todas as manifestações, mesmo pacíficas, medida estendida também a Butembo e Beni.
“Temos receio de que o fogo de Goma se esteja a atear por aqui”, diz o padre Claudino. Os nande estão a ficar mais ameaçados pelo facto de os tutsis do Ruanda (que estão agora no poder, com o Presidente Paul Kagamé) dominarem a região e a cidade de Goma. Depois da fuga dos hútus para o Congo, na sequência da guerra civil e do genocídio de abril de 1994 no Ruanda, o então rebelde e futuro Laurent Kabila também se envolveu no conflito. Para ter o apoio de Kagamé na sua luta por destronar o então Presidente Mobutu, do Congo, comprometeu-se a eliminar os hútus refugiados no país: muitos milhares morreram às mãos das suas tropas.
“O Ruanda tem cada vez mais influência na região de Goma”, observa Claudino Gomes. “O Congo é muito grande, mas está a balcanizar-se, como dizem alguns, e a perder território nacional.”
Na origem imediata desta vaga de manifestações e violência no leste do país, está a hostilidade cada vez maior das populações em relação às tropas e missão da Monusco (Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização na RD Congo). Esta é acusada de nada fazer para proteger as vítimas da violência de grupos armados que pululam na região e se combatem entre si. Os “capacetes azuis” não cumprem a sua missão, criticam os contestatários e manifestantes. Pior: há quem diga que a ONU dá armas (através da Monusco) e alimentos (via Programa Alimentar Mundial) aos grupos que espalham o terror, nomeadamente aos combatentes ADF.
Um grande susto
Por tabela, o ressentimento contra as tropas atinge todos os brancos que vivem na região. Entre os seis missionários que estão na casa dos combonianos, em Butembo, três deles são europeus – dois italianos e Claudino Gomes, que ali vive desde há pouco mais de dois anos. Os outros são um malawita e dois congoleses. Os 19 seminaristas são todos oriundos de várias regiões do Congo, mesmo do sul, alguns com famílias que trabalham na Lunda, em Angola.
“O facto de aqui vivermos três europeus, de não falarmos senão um suaíli ‘arranhado’ e desconhecermos a língua nande, tudo isso nos coloca em perigo”, diz o padre Claudino.
Nos últimos sábado e domingo não houve ameaças, mas na sexta-feira os padres e seminaristas combonianos apanharam um grande susto: o edifício ao lado da sua casa, um edifício térreo de escritórios estatais, foi atacado e incendiado por jovens em fúria por a polícia lhes ter matado um colega, na manifestação – são sobretudo jovens e adolescentes os que se manifestam. Ao mesmo tempo, já ouviram pessoas a gritar wacomboni watoke, que é como quem diz, em suaíli, “Combonianos, vão-se embora”.
“As manifestações aqui já tinham a tradição de fazer parar a cidade. São muitos anos de massacres, sem reacção ‘capaz’ do exército. E as tropas da ONU também não são eficazes”, explica o missionário português, natural de Lordosa (Viseu).
O único objetivo das manifestações em toda a província do Kivu-Norte é que as tropas da Monusco – oriundas da Tanzânia, Malawi, África do Sul, Quénia e Nepal (o único país não africano que a integra) – se vão embora, por causa do que muitos consideram a sua “ineficácia”. “Os massacres continuam desde 2013 e as pessoas dizem que a Monusco não faz nada”. Mas o mandado dos “capacetes azuis” tem uma limitação: só podem atuar quando chamados pelas chefias militares locais. E estas, por vezes, são também parte do problema: a maioria das altas patentes é constituída por ruandeses e filo-ruandeses, que sustêm os ADF, ou têm interesses económicos ou de poder na região.
Além da violência física, há também a económica. Num país já desgraçado pela depredação dos recursos, que estão na mão de grandes empresários e multinacionais ou políticos locais – muitos deles corruptos e com exércitos privados que exploram por exemplo a extração mineira e o trabalho escravo – a última usurpação é a dos terrenos agrícolas, tomados por ugandeses e ruandeses.
Triângulo rico, população pobre
No que diz respeito aos terrenos, a cidade de Beni caracteriza-se por ser "um triângulo agrícola rico em cacau e fértil. Há altas patentes militares que ficam muitos anos e tornam-se grandes exportadores de cacau, café, madeira”, explica o missionário português. “Até há pouco, havia paz na época das sementeiras e massacres quando se fazia a colheita. Agora é cada vez mais indistinto”.
Cerca de 500 mil ruandeses, recorda o padre Claudino, vieram para o leste do Congo, fugidos dos massacres de 1994 no seu país. Ao longo dos anos, em virtude da sua presença numerosa, foram ocupando terras agrícolas, à custa dos nande locais. “Estes estão a ser particularmente vitimados, com mortes e incêndios das casas”, observa o missionário português.
Depois, tudo é intrincado, num país em que o Estado é inexistente ou não funciona e em que presidentes, ministros, deputados e militares procuram sobretudo ter o seu quinhão na fatia do poder e dos recursos. Armas e dinheiro, nacionais e estrangeiros, grupos e bandos, tudo se mistura num xadrez onde o xeque-mate à população civil indefesa e explorada é permanente.
O ex-presidente Joseph Kabila, por exemplo, é um dos que terá fortes interesses na região, onde é visto como um inimigo. A generalidade da população encara-o como estando preocupado em ter o seu feudo, comandando as suas forças conotadas com o Daesh (o autoproclamado Estado Islâmico), explica o missionário português. Há pouco tempo, Kabila esteve na Arábia Saudita, suspeitando-se que continue a fazer contactos para reforçar os grupos que na região de Beni atacam populações, reivindicando-se de islamitas.
Numa nota do passado dia 8, os bispos católicos resumiam as peças e objectivos do jogo: “Os assaltantes servem-se de pontos fracos das Forças Armadas regulares para atingir o seu objectivo político ou religioso: a ocupação das terras, a exploração ilegal dos recursos naturais, o enriquecimento sem causa, a islamização da região em desfavor da liberdade religiosa, etc….”
Estes factos, acrescentam os bispos, traduzem-se em números trágicos: mais de seis mil vítimas em Beni desde 2013, mais de dois mil em Bunia (ainda mais a norte), só no ano passado. Além de pelo menos três milhões de deslocados e cerca de 7.500 pessoas raptadas. Mas há mais: muitas casas e aldeias incendiadas, escolas e centros de saúde destruídos, edifícios administrativos saqueados, roubo de animais, campos e culturas.
“A população tem o sentimento de ter sido abandonada”, dizem ainda os bispos católicos na nota de dia 8 (disponível na íntegra, em francês, na página da Conferência Episcopal Nacional do Congo).
Acabar com a guerra, mãe de todas as misérias
Os bispos, no entanto, não se ficam pelo diagnóstico e propõem a refundação estrutural da política e dos serviços do Estado. Dirigem várias propostas e responsabilidades a entidades concretas: Governo, chefias militares, Presidência, Parlamento, Monusco. É preciso, por exemplo, colocar militares no leste e pagar-lhes os salários; desarmar, desmobilizar e reinserir os membros dos grupos que espalham a violência; pôr de pé um observatório para a paz e a reconstrução socioeconómica.
“A guerra é a mãe de todas as misérias”, escrevem os bispos, que terminam com um apelo aos que se deixaram enredar na violência: “É pelo amor e a unidade que se pode vencer o mal e parar o espectro da violência.”
O padre Claudino, os seus colegas e seminaristas e muitos congoleses continuam, ainda assim, a depositar as suas esperanças na ação da comunidade internacional – vista como uma figura de retórica praticamente inexistente, por via dos grandes interesses económicos e estratégicos que se cruzam nestes conflitos. O cardeal Fridolin Ambongo, arcebispo de Kinshasa, assim como uma delegação das conferências episcopais católicas da África francófona, fez questão de visitar as áreas e as populações martirizadas e pronunciaram-se energicamente perante o Presidente da República Félix Antoine Tshisekedi e a opinião pública nacional e internacional. O núncio apostólico (embaixador) do Vaticano em Kinshasa já esteve em Goma, Beni, Butembo (província do Kivu-Norte), para poder informar o Papa Francisco e este também já se referiu à situação.
“Se os governos europeus fizessem mais pressão…”, suspira o padre Claudino. Porque, no Congo, os estrangeiros não podem falar muito. “Nem o próprio Presidente Tshisekedi fala sobre o assunto. Estamos com medo que nos ataquem, estamos preocupados porque esta é uma guerra aos bocados, que dizima milhares de pessoas e silenciada… Mas estamos cá e vivemos com o povo que fomos enviados a servir, em nome de Jesus”.
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