
Como já aqui contei, sempre que o tema são os países da península da Arábia, os curdos foram ignorados no tratado Sykes-Picot, em 1916, quando ingleses e franceses dividiram os territórios do Império Otomano. Os turcos alinharam com a Alemanha na I Guerra Mundial e, ao serem derrotados, perderam milhões de quilómetros de território. O acordo dividiu a península em vários reinos, que seriam independentes, mas sob a “influência” de França e do Reino Unido. Os ingleses ficaram com a Palestina, a Jordânia e o sul do Iraque; os franceses com o sul da Turquia, Líbano e Síria. O resto da península foi entregue aos emires e sultões das tribos tradicionais - Arábia Saudita, Yemen, Bahrain, Kuwait, Oman, Qatar, e posteriormente os Emirados Árabes Unidos. Um outro acordo deu à Rússia e à Arménia, Constantinopla e Estreito Turco - aquela área vital, que liga o continente europeu ao norte de África.
De fora ficaram os curdos, ou seja, não foi reconhecida a existência de um Curdistão, que englobaria um bom naco do sul da Turquia, o norte da Síria e do Iraque. Ora, os curdos têm uma cultura própria, bem distinta, que inclui sunitas e xiitas e a particularidade das mulheres participarem nas instituições, inclusive no exército - um sacrilégio para os muçulmanos tradicionais.
Os turcos, sírios e iraquianos nunca quiseram dar direitos aos curdos que vivem nos seus territórios, com resultados diferentes: a Turquia reprimiu-os sempre, o Iraque gazeou-os (nos tempos de Sadam Hussein) e a Síria nunca conseguiu impor-se (porque a Casa al-Assad esteve sempre mais ocupada a combater as incontáveis insurgências de outras tribos do seu território). Em 2003, quando Sadam Hussein foi derrotado pelos norte-americanos, e em 2013, quando surgiu o famigerado Estado Islâmico do Iraque e do Levante, vulgo Daesh ou ISIS, em território sírio, os curdos fizeram uma aliança informal com os norte-americanos e até foram a linha da frente na guerra contra o Daesh. Assim conseguiram um território independente, nunca reconhecido oficialmente por ninguém, mas perfeitamente funcional.
Contudo, a zona integrada na Turquia não teve a mesma sorte e continuou a ser reprimida com aquele zelo que toda a gente reconhece a Recep Tayyip Erdogan. A violência dos turcos levou à formação de um grupo de guerrilha curda: o PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), em 1978. Durante 47 anos o PKK manteve uma guerra feroz contra o exército turco, que atirava contra tudo o que era curdo - homens, mulheres, crianças, gado, colheitas e casas. O fundador e líder histórico do PKK, Abdullah Öcalan, acabou por ser apanhado em 1999 por um comando turco em Nairóbi e mantido incomunicável numa ilha-prisão particularmente má, mesmo para os padrões de Erdogan. Mesmo assim, continuou a ser o líder incontestado dos insurgentes.
Depois de tudo isto, é realmente uma notícia surpreendente o fim voluntário do PKK, que se transmutará num partido político defensor da cultura curda.
Surpreendente, mas não extemporânea. Os 20 milhões de curdos que vivem na Turquia já estão fartos de serem constantemente flagelados devido às atividades da minoria guerrilheira e anseiam por uma situação mais pacífica em que possam praticar abertamente a sua cultura. Os 8,5 milhões que vivem no Iraque mais os 3,5 milhões que vivem ao norte da Síria (na região que faz fronteira com a Turquia, precisamente) não sabem o que esperar do novo poder em Damasco. Os norte-americanos, que os usaram para derrotar Sadam Hussein e o Daesh, já não precisam deles e fizeram o que sempre fazem: abandonaram-nos às mãos de turcos, iraquianos e sírios.
Portanto, existe uma enorme vontade de resolver 'a bem' as relações com Erdogan. E não é difícil imaginar que Abdullah Öcalan deva estar farto da solitária. Sem falar nas centenas de curdos, talvez milhares que penam nas prisões do ditador disfarçado de democrata que reina na Turquia.
Aliás Recep Tayyip Erdogan merece umas linhas. É um autocrata disposto a recorrer ao que for preciso para se manter no poder, mas é muito inteligente (ou esperto, não sei) e tem manobrado muito bem a situação geográfica difícil em que o país se encontra. Pertence à NATO, mas dá-se bem com Putin. Odeia Israel, mas não os provoca. Apoia a Ucrânia e consegue ainda expandir o seu território (como acaba de fazer com uma pontinha da Síria), ao mesmo tempo que usa todos os métodos autocráticos para desfazer os opositores. Pode dizer-se que sabe transformar desafios em oportunidades.
Erdogan está a candidatar-se ao terceiro mandato presidencial, que, constitucionalmente, é o último. Vai ganhar com certeza, uma vez que já prendeu e tornou inelegível o seu maior rival, Kemal Kılıçdaroğlu; mas não terá os três quartos dos deputados que são necessários para mudar a Constituição. Assim, o que aconteceu é que o líder de um dos partidos que formam a coligação no poder, Özgür Özel, (Partido Republicano do Povo - CHP), foi visitar o curdo Abdullah Öcalan lá na ilha onde está preso, enquanto outro político da coligação, Devlet Bahçeli, falou com os dirigentes curdos no terreno, e combinaram uma manobra muito simples: o PKK deixa de ser terrorista e junta-se ao partido curdo legal, Igualidade e Democracia (DEM), Öcalan, é solto, e o partido curdo junta-se à coligação de Erdogan. Ficam todos a ganhar!
Evidentemente esta solução não resolve completamente os problemas dos curdos, mas alivia uma das frentes que os ataca constantemente. Além disso, Erdogan é amigo do novo homem forte da Síria, Ahmed al-Sharaa (sim, aquele que já foi um terrorista do Daesh e agora usa casaco e gravata e encontra-se com Trump) e, portanto, a situação daquele lado não é inteiramente segura para os curdos.
Finalmente, Erdogan pode gabar-se ao eleitorado de ter acabado com uma insurreição de quase 50 anos que causou a morte de centenas de milhares de pessoas, entre turcos e curdos.
Se os norte-americanos não tivessem já abandonado a região (por ordem de Trump), podiam dizer que se trata de uma “win-win situation”.
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