Os serviços de urgência são “terra de ninguém”, metade dos episódios que atendem não são verdadeiras urgências, mas continuam erradamente a ser a porta de entrada no SNS, segundo um diagnóstico feito por um grupo de trabalho nomeado pelo Governo.

O grupo de trabalho criado em janeiro pelo Ministério da Saúde para propor medidas que melhorassem os serviços de urgência hospitalares em Portugal sublinha que “há 20 anos” que este assunto é debatido: “é tempo de passar à ação”.

Um dos problemas identificados é a “alta prevalência de episódios de serviços de urgência inadequados”, o que afeta “negativamente os profissionais de saúde e reduz a qualidade do atendimento, com tempos de espera de diagnósticos ou tratamentos tardios”.

Há uma consistência identificada ao longo do tempo e o excesso de procura não se centra apenas no Inverno: apenas cerca de 50% dos episódios observados nos serviços de urgência hospitalares correspondem a doentes tidos como urgentes segundo a triagem de Manchester (por cores).

Portugal é, aliás, o país com maior número de episódios de serviço de urgência.

“Os serviços de urgência continuam a ser erradamente a porta de entrada no SNS. É necessário alterar esta cultura de ‘tudo e tudo na hora’”, refere o relatório do grupo de trabalho a que a agência Lusa teve acesso.

Para o grupo de peritos nomeado pelo Governo, um dos principais problemas das urgências hospitalares em Portugal é “serem uma terra de ninguém e o parente pobre dos serviços de ação médica hospitalares”.

O documento propõe assim algumas medidas para tentar melhorar as urgências, como a criação de equipas fixas e da especialidade em medicina de urgência ou emergência e também uma melhor educação da população para encaminhar os casos agudos mas não urgentes para outro tipo de serviços, como os centros de saúde ou até para consultas abertas nos serviços de urgência hospitalares, que teriam de ser criadas.

Fonte oficial do Ministério da Saúde disse à Lusa que o relatório foi analisado, tendo sido considerado que “contém orientações estratégicas relevantes”, pelo que o Ministério decidiu enviar o documento para apreciação a vários organismos, como à Direção-geral da Saúde, INEM, Administrações Regionais de Saúde e Administração Central do Sistema de Saúde.

Proposta: Tirar os "verdes" e "azuis" da urgência, consultas agendadas nos centros de saúde em 24 horas e horários e locais de atendimento conhecidos. E também revisão da isenção de taxas moderadoras no transporte

Uma das propostas que constam no documento aponta no sentido de os hospitais terem uma consulta não programada para casos que não são verdadeiras urgências, sugerindo que doentes triados com azul ou verde sejam encaminhados da urgência para outros serviços.

O grupo de trabalho nomeado pelo Ministério da Saúde para propor melhorias no funcionamento das urgências recomenda ainda que o centro de contacto e linha telefónica SNS 24 possam agendar eletronicamente consultas nos centros de saúde em 24 horas nos casos de doença aguda não urgente.

Os centros de saúde devem também estabilizar o horário e local de atendimentos urgentes ou não programados, para que o utente saiba onde e quando pode dirigir-se aos cuidados de saúde primários.

Partindo do diagnóstico de urgências hospitalares com demasiada procura inadequada, o relatório sugere a criação de uma “consulta aberta do serviço de urgência”. Seria uma consulta não programada e disponível em horário alargado, mas fora do ambiente da urgência.

A ideia, segundo o documento, é ter um “melhor aproveitamento do ambulatório”, com hospitais de dia, consulta aberta e vagas para urgências nas consultas hospitalares.

O relatório sugere que todos os dias os hospitais tenham um período de consulta aberta hospitalar, que podia ser realizado por médicos que já estão dispensados de realizar serviço de urgência (o que acontece a partir dos 55 ou 50 anos, caso de trate de urgência diurna ou noturna).

É ainda recomendado que os doentes triados nas urgências com prioridade pouco urgente ou não urgente (pulseiras verde e azul) pudessem ser encaminhados para consultas em local alternativo no mesmo dia.

Quanto aos cuidados de saúde primários, o relatório entende como fundamental que os utentes saibam onde e quando podem dirigir-se aos centros de saúde em vez de às urgências hospitalares.

Propõe-se que não haja constante alteração dos pontos de atendimento para doentes agudos nos centros de saúde, estabilizando o local e horário do atendimento urgente nos cuidados de saúde primários.

“O doente tem de saber que entre as 8:00 e as 20:00 nos dias úteis tem no seu centro de saúde a possibilidade de ser observado. O doente tem de saber que aos fins de semana e feriados o atendimento funciona sempre no mesmo local e horário, as equipas deslocam-se, não o utente”, exemplifica o documento.

O grupo de peritos nomeado pelo Governo sugere também que sejam revistas as isenções das taxas moderadores com base na forma como o doente é transportado. Em 2016, passaram a estar isentos de taxas moderadoras os utentes transportados à urgência via INEM, o que trouxe um “acréscimo importante de chamadas e consumo de recursos do pré-hospitalar”.

Assim, a proposta passa por rever a isenção da taxa, deixando de estar baseada no transporte, passando antes a estar ligada à atribuição de prioridades pela triagem de Manchester, deixando de estar isentos os que tenham pulseira azul e verde.

Outro dos problemas identificados é a transferência de doentes de lares ou instituições do setor social para as urgências sem observação ou aconselhamento médico prévio, sendo as urgências nestes casos usadas como uma espécie de “apoio médico continuado”.

“Constitui uma prática frequente e que poderá ser prejudicial ao próprio doente”, indica o documento a que a agência Lusa teve acesso.

Os peritos propõem que os doentes de lares sejam obrigatoriamente observados por um médico, de preferência o seu assistente, antes do encaminhamento para uma urgência. Para isso, é necessário que os médicos dos centros de saúde da área desses doentes em instituições possam incluí-los nas suas listas de doentes, tornando-se seus médicos de família.

“O impacto desta medida será fundamental em algumas áreas onde unidades hospitalares de pequena dimensão estão rodeadas de numerosos lares que utilizam os serviços de urgência como serviço de apoio médico continuado aos seus doentes”, indica o grupo de trabalho.

Proposta: criação de equipas dedicadas nas urgências e de nova especialidade de medicina de urgência e emergência e da subespecialidade em medicina pediátrica de urgência

O grupo de trabalho defende também que os serviços de urgência nos hospitais passem a funcionar com equipas fixas e propõe a criação da especialidade de medicina de urgência e emergência recordando que os serviços de urgência não têm “quadro de profissionais médicos próprio” e defende como “mais valia” a criação de equipas dedicadas nas urgências, necessidades que há 17 anos estão identificadas.

“A mais valia desta solução é a estabilização das equipas com profissionais conhecedores do modo de funcionamento do serviço, que asseguram a continuidade do trabalho e dinâmica”, indica o documento.

O Ministério da Saúde, já na altura liderado pela ministra Marta Temido, tinha criado em janeiro este grupo de trabalho, com o objetivo de propor medidas que melhorem o funcionamento dos serviços de urgência.

O grupo de peritos sublinha como dificuldade nos serviços de urgência dos hospitais o facto de os médicos “consumirem uma boa parte do seu horário” em urgências, reduzindo as horas dedicadas à atividade dos outros serviços (consultas externas, exames complementares, hospital de dia).

Para responder a todas as solicitações acontece uma “hipertrofia das equipas de médicos de diferentes serviços para assegurar turnos de serviço de urgência”.

O recurso a médicos prestadores de serviço (através de contratação externa) tem sido uma forma de colmatar as necessidades das urgências, mas esses profissionais não estão integrados no hospital e muitas vezes não têm a necessária diferenciação técnica.

É com base nestes argumentos que o grupo de trabalho propõe a definição de equipas próprias, além de sugerir especialidade de medicina de urgência e emergência e da subespecialidade em medicina pediátrica de urgência.

Já em março de 2002 tinha sido publicado um despacho a defender a necessidade de uma competência em emergência médica: “passaram 17 anos desde a publicação deste despacho, que identificava já um problema que se mantém atual”, recorda o documento.

O relatório aponta para a necessidade de “núcleos profissionais fixados aos serviços de urgência, coexistindo num regime misto com outros profissionais de outros serviços a trabalhar na urgência em turnos”.

“Um dos principais problemas dos serviços de urgência em Portugal é serem a terra de ninguém, sem sentimento de pertença e o parente pobre dos serviços de ação médica hospitalares. A especialização será um fator interno de estabilização de recursos humanos médicos, com escalas facilitadas, possibilidade de ganhos financeiros e aumento da segurança clínica”, refere o documento.

Apesar de a criação da especialidade constar como a primeira proposta do relatório, dois dos 12 membros do grupo de trabalho não a votaram favoravelmente. Um deles foi um dos representantes da Ordem dos Médicos, Jorge Penedo, e outro foi Diogo Cruz, médico de medicina interna e subdiretor-geral da Saúde.

Portugal é um dos quatro países europeus que ainda não têm a especialidade de medicina de urgência e emergência, mas a Ordem dos Médicos já admitiu estudar em breve a sua criação.

São mais de 80 países no mundo que criaram já a especialidade em medicina de urgência e emergência, 27 deles na Europa, segundo a Sociedade Europeia para a Medicina de Urgência/Emergência, que defende que a especialização e um sistema bem organizado são “capazes de aumentar a sobrevivência e reduzir a incapacidade depois de qualquer situação de urgência ou emergência médica”.

Em Portugal, o centro da discussão será a Ordem dos Médicos (OM), entidade que tem a competência para definir e criar novas especialidades médicas.

Atualmente existe em Portugal uma competência em emergência médica, a que pode aceder qualquer médico, mas não há qualquer especialidade específica que englobe medicina de urgência e emergência. São cerca de 780 os clínicos que têm atualmente essa competência em emergência.