No Portugal cinzento da minha infância, havia muitos pais severos, autoritários e distantes; mas, na roda da sorte que é a vida de cada um, calhou-me graças a Deus uma família liberal que apreciava a noite e a boémia. A minha mãe adorava arranjar-se e sair e o meu pai era suficientemente doido para arrastar consigo os filhos pequenos para as casas de fado, nomeadamente O Faia, da grande Lucília do Carmo, de quem era amigo. Tenho ainda fotografias desse tempo, com franja e vestidos de gola engomada, sentada com seis ou sete anos entre fadistas e guitarristas que eu fazia rir com macaquices próprias da idade e me davam sobremesas deliciosas às escondidas.

Foi assim que comecei a ouvir Carlos do Carmo, essa voz inconfundível que se se impunha por ser tão única e tão diferente de tudo o que até então se ouvira. Carlos do Carmo e o Faia foram, pois, fundamentais na minha educação musical – e o meu amor ao fado vem desse tempo. Nunca perdi o rasto ao grande fadista, até porque, sendo os meus pais seus padrinhos de casamento, ele nos visitava habitualmente com a família na véspera de Natal. Mas nunca me ocorreu que alguma vez pudesse dar o meu contributo pessoal para um artista que já era enorme quando eu era pequena.

O convite veio, porém, quando já tinha poesia publicada e Carlos do Carmo veio desafiar a «Rosarinho» para lhe fazer umas letras do álbum À Noite, juntamente com outros poetas contemporâneos. Céus, foi uma responsabilidade, mas também um orgulho poder fazer parte de um projecto de alguém que sempre admirei – uma figura ímpar na história do fado que, aliás, o salvou da ruína quando ele era malvisto e o ajudou a alcançar o estatuto de Património da Humanidade.

Depois de muito penar por falta de experiência, lá consegui fazer duas letras que até não me saíram mal, senão Carlos do Carmo não as teria cantado tantas vezes (e cantou). E esse foi também o meu primeiro passo para uma actividade que se tornou cada vez mais regular e que me tem divertido e ensinado muito. A ele estou profundamente grata, pela confiança e pela aposta, mas sobretudo por tudo o que nos deu, a todos os que gostamos a sério de fado, cantando como ninguém.