"A história mostra-nos que cada vez as vítimas querem falar, elas são censuradas e desincentivadas de inúmeras maneiras. Parece que ainda há um guião prescritivo sobre como ser uma boa vítima", ressalva Maria João Faustino, doutorada em psicologia pela universidade de Auckland, e com vários artigos publicados em revistas científicas e nos media generalistas sobre violência sexual, género e consentimento. "Depois, temos esta ideia de que a violação é uma coisa que acontece na rua, por um homem muito feio, muitodeslocado socialmente, com muito pouco capital erótico e social. O feio, porco e mau. Mas não existe um agressor padrão. A violência sexual acontece muitas, muitas vezes no seio familiar, na própria casa, com pessoas em quem confiamos. Não tem a ver com um estatuto económico ou social, é transversal".

Já Isabel Ventura, autora da tese e do livro multipremiados "Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual", destaca que ainda se "vende a ideia de que não há maneira de punir o agressor sem castigar também a vítima. ‘Olha a vergonha que vai ser, o que tu vais sofrer’. Como se fosse uma inevitabilidade. E não é, desde que haja mudanças e vontade de as pôr em prática".

Entre elas está a possível alteração da violação para crime público, tema sobre o qual não têm opinião unanime: "A natureza do crime público desonera as vítimas, porque elas não têm de apresentar queixa para haver um procedimento criminal e uma investigação, além de que obriga o sistema judicial a levar a sério estes crimes, que muitas vezes têm graves problemas no processo de investigação. É uma questão de política pública. É o Estado a dizer que leva muito a sério este tipo de violência e que não considera que a auto-gestão, como aconteceu durante muitos anos com estes crimes contra as crianças, seja a solução ideal", defende Isabel Ventura. Já Maria João Faustino, levanta algumas preocupações: "Temo apenas que, na prática, isto se traduza ainda em mais silêncio se os mecanismos de proteção certos não forem criados. Todos os agentes que têm contacto com as vítimas têm de ter formação adequada, desde quem recebe as denúncias até quem aplica as leis. Temos de exigir respostas de fundo, dotar as pessoas com meios. E isso ainda não acontece".

Nesta conversa com Patrícia Reis e Paula Cosme Pinto, ambas salientam que "não é possível falar de violência sexual sem falar de violência de género", uma vez que todos os dados estatísticos revelam uma avassaladora predominância de agressores do sexo masculino e de vítimas do sexo feminino. Criticam o aumento "claramente insuficiente" do prazo de denúncia para um ano e recusam a infantilização dos homens com o cliché do "instinto masculino", como justificação para atos abusivos de cariz sexual. "Trata-se de um problema transversal, sistémico, banal e banalizado", concluem.

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