Tenho sempre de soletrar o meu nome em repartições, mas deixem que vos diga que estou para aí em 5.º ou 6.º lugar no top de nomes estranhos na minha família. Uma grande adição a essa lista deu-se há 15 anos quando, legalmente, se me acrescentou um sogro que dá pelo nome de Onésimo. Ele, um civilizadíssimo sportinguista, serve-me para esta fábula benfiquista.
Onésimo vem duma palavra grega que significa “útil”. Ora, estamos a falar dum dos mais belos adjectivos – o mais belo até, em certa filosofia clássica da estética. Ainda assim, outros contextos há em que o “útil” desce ao patamar menos interessante dos elogios. No âmbito do comentário futebolístico, por exemplo, a “utilidade” é muitas vezes o louvor de reserva quando não abunda génio nem talento no visado. Raramente ouvimos a voz do Freitas Lobo comover-se e intensificar-se enquanto distingue os “úteis” em campo. Às vezes, dos úteis até se diz “são aquele tipo de jogadores que um treinador gosta”, que é como quem descarta qualquer loa ao pragmatismo. “Os treinadores que gostem deles, nós continuaremos a vibrar com os fantasistas”. Parece um discurso infantil sobre cabeça de nabo – deve ser muito saudável, mas os adultos que a comam.
André Almeida podia chamar-se Onésimo. Útil. É o típico jogador de quem se aguarda o préstimo, mais do que o rasgo. Não se trata, de todo, duma expectativa cruel, só que facilita um descalabro injusto nos aplausos. Um adepto dirige-se ao estádio para ver a bola, mas não se fica pelos recebimentos; vai também para dar de comer àquelas criaturas coloridas que correm no habitat verde, no relvado. Levamos os bolsos cheios de aplausos, guloseima que atiramos. Mas quantas vezes não pensamos nos “úteis” como os menos famintos? Quantas vezes não racionamos as ovações aos prestáveis? Em cada cabeça benfiquista vive a petição “André Almeida, dá-me a tua utilidade”, mas quantos cartazes manuscritos no estádio lhe pedem a camisola?
Podia simbolicamente chamar-se Onésimo, mas chama-se André Almeida. Segundo as regras da banda-desenhada americana, quando as iniciais do primeiro e último nome são as mesmas, ou quando têm o mesmo som, estamos perante a identidade secreta dum super-herói. Peter Parker, Clark Kent, Bruce Banner, André Almeida. Talvez isto explique a pacatez onde o herói se esconde. A imagem do defesa-direito do Benfica é um dos grandes mistérios da humanidade, e funciona como aquele caso do Super-Homem que fica irreconhecível quando coloca um simples par de óculos. Vejam, por exemplo, o cavanhaque que André Almeida ostenta há alguns anos: a barbinha e bigodinho são uma opção pilosa simples, mas também são a opção mais inesperada do futebol moderno (com o futebolista do séc. XXI a apostar na estética “jogador branco de equipa de basquetebol da Beira-Litoral nos anos 90”). É um revivalismo ousado, mas que ainda assim redunda na imagem mais pacata do plantel benfiquista. O cavanhaque escapa à moda, escapa ao fora de moda, torna-se um biombo: tal como o par de óculos do Clark Kent, previne que vejamos o super-herói, faz-nos deparar com o mero útil.
Outro mistério na fisicalidade do André Almeida prende-se com a sua altura. Após rápida sondagem que conduzi junto dum pequeno grupo de benfiquistas, a percepção geral é que o número 34 do clube é um jogador de estatura média. Embora essa consideração até possa ser aceitável (se estivermos num campeonato nórdico), a verdade é que Almeida mede os mesmos 1,86m que, por exemplo, o antigo central Carlos Mozer – esse que, em relatos, era muitas vezes era apelidado como uma das “torres do Benfica”. Eis de novo o recato, a identidade do herói a fazer-se secreta com ilusões ópticas que só os heróis dominam.
Mas há mais matéria de lenda para lá do aspecto físico. Um dos factores que sempre enalteceu o heroísmo dos super-heróis clássicos - quer estejamos a falar de mitologia grega, quer estejamos a falar de revistas de comics – é a injustiça. A injustiça é um elemento trágico que serve para temperar a fibra dos valerosos. Não há heroísmo mais nobre do que aquele que prossegue apesar das adversidades injustas. Não há altruísmo maior do que aquele que prossegue apesar da falta de reconhecimento. E nisto podemos apontar que o útil Almeida é o mais temperado, o mais valeroso, o mais nobre, o maior.
A carreira do defesa no Benfica tem-se pautado, desde o início, por injustiças clássicas. Logo nas primeiras vezes em que Jorge Jesus lhe deu a titularidade, recordo um burburinho generalizado que contestava a opção. É que Almeida estava a tirar o lugar a Maxi Pereira, jogador que, como todos sabíamos, era um símbolo eterno do clube da Luz. Pouco depois, Almeida deixou até de ser o miúdo chamado André mais vistoso do plantel. Como se não bastasse, a sua polivalência valeu-lhe a convocatória para o Mundial de 2014, mas dos 3 lugares em campo que podia ocupar, só teve oportunidades naquele onde é muitíssimo menos dotado.
Talvez nenhuma das histórias que acabei de descrever soem a injustiça. Afinal, ascender à equipa principal do Benfica, ou ser convocado para um mundial, são sonhos inatingíveis para uma multidão de praticantes da modalidade. Ainda assim, a forma como estas oportunidades se desenrolaram acorrentou o André à imagem sensaborona do “útil”. A partir daqui, a injustiça acontece em catadupa: em cada início de época pensa-se em Almeida como o titular só porque não se conseguiu contratar melhor, ou porque os outros jogadores estão lesionados, ou porque a alternativa ainda não se adaptou ao futebol europeu. Sempre a mesma ladainha. Pior: cada vez que, com sucesso, Almeida flete da ponta direita para o interior do terreno através duma bela finta de corpo e bola pisada com o calcanhar, alguém das bancadas diz “Enganou-se!”. Quando há 2 anos marcou um golo espantoso ao Portimonense, gritaram “Foi ao calhas!”. E, nesta época, aquele remate extraordinário contra o Braga, pé esquerdo de primeira à entrada da área sem a bola ir ao chão? “Chouriço!”, uns quantos exclamaram.
À hora a que escrevo isto, ainda não é sabido como vai acabar o campeonato, mas uma coisa é certa: André Almeida tirou os óculos. É um herói de fato vermelho e, pasme-se, insígnia de capitão. É um Super-Onésimo, homem de utilidade maior numa das épocas mais espectaculares de sempre do clube – a recuperação de pontos face ao rival era impensável; o número de golos marcados até agora é um sonho. O André foi tranquilo a defender, não foi vistoso quando pautou as suas subidas no terreno, e manteve-se recatado a acumular uma extraordinária dúzia de assistências. E enquanto muitos salivam com Bruno Lage, com a ascensão de João Félix, o volte-face Samaris, os números de Seferovic ou a batuta de Pizzi, o super-herói Almeida dispensa a baba e aponta às lágrimas. Quando chorou no final do jogo contra o Portimonense, vimos-lhe no rosto (e no cavanhaque ensopado) a fibra dum capitão, as valências dum símbolo. Não é mais rápido que uma bala, nem mais poderoso que uma locomotiva, nem é capaz de saltar por cima de um arranha-céus; é o mortal que chora de alívio e de alegria. Almeida sinónimo de útil, mas dum útil virtuoso. É o super-herói que merecemos, e merecemos muito.
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