A ironia é uma coisa tramada — que o diga Nasser Al-Khelaïfi. O magnata até jogou ténis, mas o espírito de empresário levou-o ao futebol. E esta noite era para ser sua. Devia ser, para consagrar o homem que fez do PSG uma potência dominadora em França desde 2012/13, altura em que chegou o clube parisiense. Graças ao seu investimento, o PSG conquistou sete títulos de campeão, mas o seu objetivo, a quase obsessão, era a vitória no maior palco europeu de clubes. Foi por isso que pagou 222 milhões de euros por Neymar e 180 milhões por Mbappé. Para hoje atingir finalmente o cume da montanha futebolística. Porém, quando tudo parecia tão perto, foi um jovem formado no clube, que saiu a custo zero para a Juventus aos 18 anos, que deitou tudo a perder.
Os dois finalistas desta edição a oito da Liga dos Campeões que esta noite findou têm no passado recente uma linha comum: o seu domínio doméstico. Ou seja, quer uma quer outra equipa estavam em Lisboa para agarrar com unhas e dentes a glória europeia. A este ponto ser campeão nacional para estas duas formações é só quase um pro forma. O intento passava sempre por estender esse domínio na maior competição de clubes do mundo. Era essa a missão de ambos esta noite no Estádio da Luz e foi assim que as duas formações entraram em campo.
Uma das características que salta de imediato à vista neste Bayern Munique é a sua linha defensiva — não pela qualidade dos jogadores que fazem parte do quarteto defensivo, mas sim pelo ponto de geolocalização da mesma no relvado deslindar uma relação séria com a linha de meio-campo. Não é algo inédito nem uma estratégia nova aplicada em bom rigor só para a Liga dos Campeões. Não, já na Bundesliga era assim desde fevereiro.
A olho nu é fácil apontar vulnerabilidades: há demasiado espaço nas costas dos defesas — e numa situação de transição ofensiva um passe em rutura pode ser o suficiente para deixar um avançado com espaço para capitalizar. É quase impossível não questionar se esta abordagem agressiva não acabaria por ser exposta. Não obstante, a realidade mostra que o Bayern marcou 15 golos às três equipas que defrontou na fase a eliminar (Chelsea, Barcelona e Lyon) até chegar à final e sofreu apenas três. Hoje, frente ao PSG, acabou por não sofrer nenhum e marcar outro.
De resto, é de salientar que a abordagem do treinador Hans-Dieter Flick é deliberada. Há uma filosofia, uma génese criada que levou o Bayern à conquista da 13ª. dobradinha da história do clube e que implementou desde que chegou. Foi assim até este domingo e hoje não foi diferente. Aliás, o próprio já o tinha dito na conferência de imprensa de antevisão.
"Nos últimos 10 meses tentámos incutir um estilo de jogo com uma defesa alta, mesmo diante do Lyon, que tem um estilo mais direto, e não acho que vamos mudar isso amanhã [no domingo]", explicou Flick, depois de enfatizar que não iria mudar de estratégia. Não foi bluff, o alemão não mudou mesmo. E na mesma conferência deu conta do plano que hoje se viu a ser executado.
"Não queremos dar espaço ao adversário [PSG] e, para isso, é importante pressioná-lo. Talvez me atreva a dizer que têm um estilo semelhante ao FC Barcelona, igualmente com muita qualidade, um nível de topo e ótimos jogadores, pelo que não podemos dar espaço", completou.
Como frisa a The Athletic, esta estratégia tem tudo a ver com uma questão de risco e retorno. Na maioria das vezes, o Bayern pressiona muitíssimo bem, muitíssimo à frente. No entanto, isso obriga a que defesa esteja naturalmente muito adiantada para que o meio campo não fique partido — é uma consequência da necessidade de manter o conjunto compacto. Mas há mais: há uma constante e agressiva procura pelo fora de jogo.
Todavia, lá porque é uma estratégia tática intencional, não quer dizer que não existam alturas em que a organização defensiva sofre com isso e a linha alta combinada com transições defensivas levanta problemas. Ora, em teoria, acontece que o Paris Saint-Germain tem no seu arsenal a arma idílica para este tipo de situações: Mbappé, pois claro.
Tuchel sabia disso e tentou aproveitar a velocidade do francês e as constantes movimentações dos três da frente (que juntos custaram 430 milhões de euros ao fundo Qatar Investment Authority) da sua equipa que atravessam um bom momento. Neymar a receber a bola entre as linhas e Di Maria a sondar a partir de uma posição mais interior.
Porque agora dá-se alento ao Bayern Munique pela conquista do troféu, mas na primeira parte os franceses criaram três ocasiões primorosas para chegar à vantagem. Na primeira, foi Neuer (18’) a negar o golo a Neymar (por duas vezes), noutra foi Di María a atirar por cima (23’), de pé direito, depois de um excelente contra-ataque desenhado pelos parisienses. Contudo, das três situações supracitadas, a verdadeira ocasião viria já bem perto do intervalo e foi desperdiçada por Mbappé (44’). Dentro da área, o avançado francês recebeu um passe de bandeja de Di Maria e, com tudo para fazer o golo, rematou fraco para as mãos de Neuer.
O que os primeiros quarenta e cinco minutos dão a entender é que da teoria à prática vai uma grande diferença. Tuchel sabia qual era o plano. Mas há uma razão pela qual o Bayern não perdeu nenhum jogo durante esta campanha da Liga dos Campeões. Enquanto os outros falham, os alemães não. Todavia, se o PSG ter registou boas oportunidades para mexerem com o marcador na primeira parte, o Bayern também podia ter chegado ao golo. Inevitavelmente, pelo melhor marcador da prova, Robert Lewandowski.
O avançado polaco esteve bem (22’) perto de colocar a sua equipa em vantagem por duas vezes, mas não teve a felicidade do seu lado. O esférico (não deixa ser irónico que a realização, tal como já tinha feito nas meias finais finais, focou a inscrição "Istambul 2020") esteve quase a balançar a rede, mas esbarrou no poste. Dentro da grande área, Lewandowski recebe a redondinha, rodopiou e rematou com aquele faro que se lhe reconhece. Navas não tinha hipóteses, mas teve pontaria a mais. Noutra chance (30’), o costa-riquenho numa enorme intervenção — com reflexos de gato — respondeu da melhor maneira a um cabeceamento de Lewa.
Não obstante, uma equipa que tem um mix de requinte técnico (a qualidade de Thiago Alcantera no capítulo do passe é fora de série) e a força de panzer (Goreztka está verdadeiro tanque após ter feito um programa ao jeito do famoso Insanity durante a quarentena) pode almejar sempre mais. E muito contribuíram estes dois para as oportunidades criadas, para o domínio e controlo, para manter o controlo do teatro de operações durante o segundo tempo. Depois, é a tal coisa e a velhinha máxima do futebol: quem não marca, sofre. E o PSG sofreu à passagem dos 59’ — após um período de muitos arrufos e amarelos de parte a parte — por intermédio do Kingsley Coman.
O golo é do francês, mas a jogada é de outro jogador soberbo deste Bayern Munique: Kimmich. Os alemães estavam por cima na partida e controlavam o jogo no meio campo doPSG. E, num desses momentos, num bom lance ofensivo no corredor direito, o lateral cruzou para o segundo poste na direção de Coman — que, com espaço, aplicou um golpe de cabeça para o poste mais distante, não deixando grande hipótese de defesa para Navas.
Após o golo não há muito para contar: Tuchel colocou Draxler no lugar de Herrera (que fez um bom jogo, apesar de tudo) e lançou o camaronês Choupo-Moting, talismã que virou o jogo frente à Atalanta, mas o resultado não iria sofrer alterações porque a equipa com mais maturidade em campo soube guardar a vantagem de forma célere e serena. É uma realidade que existiram oportunidades de parte a parte, mas os germânicos foram indubitavelmente superiores — e depois de estarem em vantagem, o PSG não conseguiu marcar e levar o jogo a, pelo menos, a prolongamento.
E Neymar? No início do ano esteve para sair, mas não saiu. Messi tentou ajudar, mas não deu em nada. Acabou por ficar e fez uma época tremenda. Não esteve envolvido em polémicas e passou a maioria do tempo focado. Pareceu definitivamente um jogador mais maduro. Não houve espaço para mimo ou falta de educação. As suas fotos a chorar vão inundar as redes sociais, mas hoje lutou e apenas perdeu para uma equipa melhor. Como disse o jornalista brasileiro Claudio Portella, "caiu de pé".
O que se pode acrescentar sobre a equipa vencedora? Ora, de que se dum lado há quem não aprecie os milhões injetados nos franceses, há quem também não aprecie as táticas do gigante de Munique. Há quem olhe para o Bayern e veja um colosso com uma enorme capacidade de perscrutar talento e com uma sagacidade ímpar na hora de capitalizar a sua dimensão e prestígio a nível doméstico.
No onze inicial desta noite, Lewandowski e Goretzka chegaram a custo zero; Alaba chegou ainda adolescente ao clube, mas custou apenas 150 mil euros; Gnabry, extremo que tem estado endiabrado, custou 8 milhões; Kimmich, a quem muitos já apelidam de novo Philip Lahm, foi recrutado por Pep Guardiola aos 19 anos pelo mesmo preço. Isto só para dar alguns exemplos.
Há quem não seja apreciador desta política e enumere não só abuso de poder, mas da Lei Bosman. Ninguém consegue negociar na Alemanha como o Bayern. São demasiado grandes e com capacidade financeira completamente distante dos pares na Bundesliga. No entanto, apesar de disso, no contexto da Liga dos Campeões deste ano não há muito que se possa apontar.
Nem que seja porque tornou-se na primeira equipa a vencer todos os jogos numa edição da liga milionária, conquistando o sexto troféu desde que começou nesta caminhada pela conquista da Europa: 1974, 1975, 1976, 2001, 2013 e, agora, 2020. Ou seja, tudo somado as contas ditam que foram disputados 11 jogos e do saldo final rezam 11 vitórias — com um fantástico 8-2 pelo meio. E, claro, a confirmação do triplete: campeonato, taça e a orelhuda.
Bitaites e postas de pescada
Mbappé, que é que é isso, ó meu?
Campeão do mundo, estrela do agora e do futuro, um jovem que tem nos pés talento para dar e vender. Mas aquele falhanço mesmo no final da primeira parte não pode acontecer a este nível. São lances que valem taças e que podem decidir o rumo de uma partida. Era um golo cantado. Alaba perde a bola na área, Di Maria combina da melhor forma com o prodígio francês, mas este, em vez de atirar sem reticências para o fundo da baliza, rematou frouxo para as mãos de Neuer. Dificilmente haverá melhor oportunidade para se marcar um golo num jogo de futebol — muito menos numa final da Liga dos Campeões — do que esta.
Neuer, a vantagem de ser uma parede
As qualidades do alemão entre os postes estão mais do que documentadas nas páginas desportivas. Mas hoje o guardião voltou a provar que para ser se chegar aos tão almejados títulos, especialmente os canudos grandes a nível europeu, é preciso investir em todos os setores.Se na primeira parte negou o golo no mesmo lance, por duas vezes, a Neymar, no restante jogo mostrou que merecia receber a dobrar porque na verdade faz duas posições e não só uma: joga na baliza e como líbero. Tuchel quis explorar a linha subida do Bayern e tirar proveito da velocidade de Mbappé, mas o alemão esteve exímio nesse capítulo ao limpar todas as bolas bombeadas. Se em alguns jogos teve lances caricatos, em que falhou e abusou da confiança do seu jogo de pés, neste domingo não houve grande coisa que se lhe possa apontar.
Di Maria, fica na retina aquela cueca
Há dois lances a assinar e ambos envolvem o Di Maria. Num fez uma maldade de todo o tamanho a Alphonso Davies, talento que não engana — é craque. No entanto, o jovem canadiano teve a difícil missão de marcar o argentino e não teve uma noite feliz. Num lance, colocado à linha, Di Maria fez um túnel. Noutra ocasião, a jogada coletiva foi conduzida com o mesmo aprumo do túnel, mas o extremo do PSG acabou por carregar demasiado tempo no botão de remate, e acabou por disparar, com o pior pé, o direito, por cima da barra da baliza de Neuer.
Obrigado, Herrera, nem com dois pulmões chegava àquela bola
Thilo Kehrer não teve uma noite tão complicada como a de Alphonso Davies, mas também não se pode dizer que teve tempo para relaxar. É que Kingslay Coman parece que desaparece… e a bola chega-lhe aos pés e arranca por aí fora. Umas vezes corta para dentro à procura do pé direito, outras vai rumo à linha e só pára quando cruza. Não obstante, quando aconteceu esta última situação, o defesa do PSG parece que ficou sempre "à rasca" para acompanhar o francês dos germânicos. E, diga-se, não fosse Herrera ajudar bastante nas dobras a coisa podia ter sido muito pior.
Comentários