O pai é médico e amante de futebol, a mãe é socióloga. Crescer numa comunidade como San Juan, na Argentina, tem destas coisas; a curiosidade por ver um vizinho sair de casa todos os dias com um stick e patins falou mais alto: "Mãe, o que é aquilo?", perguntou. Na semana seguinte a mãe levou-o a treinar no Olimpia, um clube a 150 metros de casa. Tinha quatro anos e nunca mais parou.

Aos 37 anos, Carlos Nicolía já ganhou todos os títulos que há para ganhar. "Este ano fui campeão do mundo pela seleção argentina e fui campeão nacional em Portugal, com o Benfica. Mas estou a avaliar se quero ou não continuar no hóquei. Tenho mais um ano de contrato com o Benfica, depois vou ver como me sinto ano a ano".

"Se fosse dirigente desportivo, comprava um ringue de boxe para os jogadores"

O problema não é a idade. Nos clubes grandes a carreira é mais longa, "dói-te um dedo, vem logo o médico". Além disso, "a quantidade de jogadores de alto nível faz com que passes mais tempo no banco, mas possas ficar mais tempo na equipa", explica. "Fisicamente sinto-me bem". A questão é que "cada vez gosto menos do hóquei atual. Sou do desporto antigo, dos valores", justifica.

No balneário, Carlos Nicolía costuma brincar com os colegas: "Nunca vou ser dirigente, mas, se fosse, comprava um ringue de boxe. E quando visse um jogador sem à vontade ou coragem para dizer a outro o que pensa, chamava os dois e metia-os lá dentro com luvas, até resolverem a questão".

"Cada vez gosto menos do hóquei atual"

"Hoje há uma guerra fria, de palavras, de poder. Já não há valores que para mim são fundamentais. Pelo menos são os valores que os meus pais tentaram transmitir-me toda a vida: "Podes ser bom jogador, mas se fores má pessoa, isso não vale nada". Por isso, posso estar no meu melhor momento, mas se não estou bem, não interessa se perco ou se ganho".

"Toda a vida a violência fez parte do desporto. A verbal, o "filho da mãe", "cabrão", e a física, o corpo a corpo, cara a cara. Acontece que hoje não há limites. Há dez ou doze anos, não passava pela cabeça de ninguém gritar "mataste a tua mulher", sem sequer conhecer a história, saber se morreu de doença, atropelada ou outra coisa qualquer. Quando alguém diz isto, é porque já estamos numa sociedade enlouquecida, completamente disfuncional", considera o hoquista.

"O meu filho anda na escola e os amigos perguntaram-lhe: é verdade que o teu pai matou a tua mãe?"

Quando diz que a violência está fora de controlo, Carlos Nicolía fala por experiência. Ao longo de anos ouviu insultos de adeptos. "A minha mulher, mãe do Cris, já estava doente quando a mesma pessoa, sentada na bancada, exibia uma fotografia dela tirada do meu Facebook", relata.

"Quando venho para o Benfica, começo a ouvir "assassino, mataste a tua mulher". Não é para normalizar a questão, mas um desportista tem uma espécie de chip", um interruptor que liga e desliga. "Só há dois caminhos: ou dou importância ao assunto, vou lá e dou-lhe com o stick na cabeça, ou ignoro. Sempre ignorei".

Em Janeiro deste ano, no Dragão, foi a gota de água. "Não era gente da claque, era gente da bancada. Já os tinha visto noutros jogos". Não interessa qual foi o clique, mas Nicolía, Carlitos ou "Cabeção" para amigos e família, não suportou mais e fez um desabafo nas redes sociais.

"É uma pena que isto seja feito num evento desportivo, utilizando a morte de uma pessoa, que lutou contra uma doença [...]. Uma vergonha. Passei nove anos a ouvir estas coisas todos os jogos, mas hoje digo basta. Estou a lutar sozinho contra a discriminação que sinto pelos regulamentos que as federações de hóquei fazem e que não sei se um dia irei ganhar, mas esta outra termina hoje. Não por mim, mas pelo meu filho... Não quero que ele ouça nunca que há pessoas que usam a perda da sua mãe devido a uma rivalidade ou por acreditarem que são engraçadas! Tudo tem um limite... Respeito", escreveu.

Nunca falou com o clube ou comunicou o que quer que fosse através do Benfica. "Mas eles estavam nos jogos, ouviam o mesmo que eu. Muitas vezes começava no aquecimento e as pessoas eram filmadas para a televisão", lamenta.

Escrevi sobre o que aconteceu para que essa pessoa reflita na sua casa sobre o que os seus insultos podem provocar. Podem mudar a vida de um miúdo de 12 anos [o filho Cristiano]. Faz muita diferença. Ele anda na escola e os amigos foram perguntar-lhe: "O teu pai matou a tua mãe, é verdade que é um assassino?" Mas está tudo assim, as pessoas podem dizer o que quiserem, podem decidir falar do que não conhecem, podem decidir a vida de outros. Para sempre".

Quem e como travar esta escalada? Nicolía não tem a resposta, mas acrescenta alguns pontos de interrogação. "Na Argentina vi pais a baterem-se entre si por causa de jogos de miúdos de sete anos. Ou pais a quererem bater num árbitro de um jogo com miúdos de cinco e seis anos. Cada vez estamos mais fora de nós", diz.

"Há 20 ou 30 anos dávamos valor à palavra. Aquilo que eu digo, a maneira como posso influenciar outros, tinha importância. Agora não há tempo para refletir, é difícil parar. As pessoas podem não saber o nome do presidente da República, mas sabem os nomes dos presidentes dos clubes. Na televisão é Benfica, Porto e Sporting a toda a hora, em qualquer canal. Pode haver um terramoto em Espanha, mas se aconteceu qualquer coisa no Benfica, as televisões vão falar do Benfica. E normalmente não é para falar sobre as fundações desportivas e a vida dos miúdos que ajudaram. Na Argentina também é assim; se o Boca Juniors perde, está todo o dia na televisão. Mas há gente a morrer à fome e ninguém fala nisso", critica.

"As pessoas podem não saber o nome do presidente da República, mas sabem os nomes dos presidentes dos clubes"

"Outro dia fui ver futsal, o Benfica-Sporting, e comentava com Simão Sabrosa: já não é futsal, são cinco homens à pancada atrás de uma bola. Como pedir ao público para fazer diferente se o cenário principal do deporto é "vou à bola, mas antes vou forte e feio ao jogador?"".

"Gostava de ter a força de Nadal, o estilo de Federer e a vontade de Djokovic"

Para Carlos Nicolía a vida é como o desporto: "Há um momento em podes mudar a dinâmica, mas tens de assumir. Quando muda pode ser para melhor ou para pior, recairá sempre sobre ti. E há pessoas, como jogadores, que não gostam de assumir o risco, com medo que corra mal e lhes caia tudo em cima. Eu prefiro viver um dia como leão - bem, como uma águia [ri] - do que cem dias como ovelha".

Quando se pergunta quem é o melhor do mundo do hóquei responde sem hesitar: "Romero". Gonzalo Romero também é argentino e joga no Sporting desde a época 2018/19. "Para mim, ele muda uma equipa. No desporto coletivo o melhor é quem faz mudar o jogo. E esse é Romero. No ténis, que é um desporto individual, posso ser o número um, o número dois ou o 100, o que for. Mas num jogo coletivo posso ser o melhor e acabar em décimo. Ou posso ser campeão e ter passado metade dos jogos no banco. O que sei é que se eliminarmos Romero é mais fácil ganhar, porque ele sabe levar a equipa".

E faz uma inconfidência, a propósito da modéstia: "Faço terapia com uma pessoa argentina e digo muitas vezes que dei demasiada importância a uma frase da minha mãe: "Se fores má pessoa, não és meu filho". Cresci a ouvir as pessoas dizerem que eu era bom. Mas quando íamos no carro a minha mãe perguntava: "Como vai a escola?" E eu só pensava no hóquei. "Não me interessa se ganhas ou se perdes, tens de ser boa pessoa". Tantas vezes ouvi isto, que incorporei a coisa. E isso fez com que nunca fosse capaz de dizer "eu sou bom".

"O Cristiano Ronaldo diz que é o melhor. E foi isso que o levou a ser o melhor. Penso: fogo, quem me dera ter esta arrogância, esta coragem de dizer que sou o melhor. Mas nem sozinho ou com amigos me sai", confessa.

A Argentina também tem a paixão pelo futebol. No ano passado, quando ganhou o Mundial, milhões de pessoas aguardavam o autocarro com os jogadores à saída do edifício da federação. Quando há Mundial pára tudo, durante um mês ninguém trabalha, a função pública não existe", diz. Uma "loucura" que Carlos Nicolía partilha, embora de forma mais serena.

Em Portugal não é muito diferente, a não ser em dimensão. Este ano, quando o Benfica venceu a Primeira Liga, foi de doidos. "Dizem que o jogo demora 90 minutos, mas no dia anterior fecham a rua, vêm as roulottes de comida e bebida e tudo se transforma. O movimento que se cria é impressionante logo às dez da manhã, muito antes da partida", e dura até ao dia seguinte.

A casa de Carlos Nicolía fica mesmo em frente do Estádio da Luz (ficava, o SAPO24 apanhou-o em mudanças). "No dia a seguir tinha jogo com o Porto, eram as meias-finais, mas na noite da vitória parecia que tinha gente dentro de casa", recorda. "Disseram-me que havia um truque para não ouvir nada: pôr papel higiénico molhado nos ouvidos. Qual quê", não pregou olho.

Carlos Nicolía
@Rodrigo Mendes créditos: 24

Se preferia ser o Ronaldo ou o Messi do hóquei? "O que gostava é de mudar a vida de uma pessoa, nem que fosse por uma fração de tempo. Foi sempre isso que me estimulou. No mundial, por exemplo, ver o meu pai na bancada com a bandeira da Argentina, eu o capitão da melhor seleção do mundo, sei que lhe dei uma semana diferente. Isso conta mais para mim". Ou "em Itália, quando o clube em que eu estava [Valdagno] ganhou o primeiro campeonato nacional da história - vi gente a chorar".

"É muito incrível como Maradona marcou uma geração de desportistas na Argentina. Agora é Messi. E são duas pessoas completamente diferentes: Maradona era a arrogância pura, peito grande, o melhor do mundo. Messi é uma pessoa introvertida, pouco à vontade, desconfortável com o confronto público".

"O meu filho nasceu com Messi, eu tenho metade Maradona, metade Messi. Os que têm hoje mais de 45 anos cresceram a ver o Maradona e têm uma visão desportiva diferente da do meu filho. Mas o meu filho também nasceu com Cristiano Ronaldo, por isso é Messi e CR7. É difícil, porque Messi tem um caráter muito forte, mas é silencioso, é como uma tartaruga que quando se sente aflita se esconde. O Ronaldo é boom, cheguei! São maneiras diferentes".

"Maradona era a arrogância pura, peito grande, o melhor do mundo. Messi é uma pessoa introvertida, pouco à vontade, desconfortável com o confronto público"

Se pudesse escolher, Nicolía "gostava de ter a força de Nadal, o estilo de Federer e a vontade de Djokovic", todos tenistas. No futebol, "seria o Messi com a vontade do Cristiano, tiraria o melhor de cada um".

"Portugal, para mim, é o país do hóquei"

Comparar futebol e hóquei é, de certa maneira, injusto. "O hóquei nunca vai ser um desporto olímpico" - foi uma das três modalidades de demonstração incluídas no programa oficial dos Jogos Olímpicos de Verão de 1992, em Barcelona. Mas não colou. Por um motivo: "Joga-se em poucos países: Portugal, Espanha, Itália, Argentina, França (pouco) e Suíça (pouco)".

"Queiramos ou não - e não quero falar mal dos dirigentes -, os dirigentes não têm uma visão de futuro. Só pensam no imediato. Mudam os dirigentes, muda tudo, é um passo para a frente e outro para trás, fica sempre tudo na mesma. Nunca vi uma mudança, nem em Portugal, nem na Argentina. Vi sempre quem está no poder a crescer, mas nunca vi crescer a modalidade", critica o hoquista.

"Talvez por isso quando cheguei a Portugal o hóquei fosse a segunda modalidade mais importante depois do futebol ou do futsal e hoje seja a quinta ou sexta e daqui a uma década passará a ser a décima. Tem muito a ver com o trabalho das federações, mas também com o que a pandemia fez ao hóquei. Muitos miúdos mudaram de modalidade, porque um ano sem praticar é muito tempo. Posso levar o meu filho a treinar na garagem uma ou duas vezes, mas o hóquei não se treina sozinho". Cristiano trocou o hóquei pelo futebol e o pequeno Ramon, de sete anos, nunca experimentou outra coisa.

"Vi sempre quem está no poder a crescer, mas nunca vi crescer a modalidade"

San Juan tem pouco mais de 100 mil habitantes (a província tem quase um milhão), mas é "uma comunidade muito unida", os vizinhos conhecem-se, "não é como aqui, que não sei quem são os meus vinhos de cima ou do lado". A cidade é considerada a capital mundial do hóquei em patins e numa área de 30 quilómetros há mais de 20 clubes desportivos.

Ainda assim, Carlos Nicolía tem outra opinião: "Portugal, para mim, é o país do hóquei". Acho que cá é melhor a todos os níveis, pela liberdade e porque têm três clubes grandes. O que tem San Juan é que sem nada, sem estruturas nenhumas, sem bons dirigentes, produz muito bons jogadores. Na escola éramos 20 rapazes e dez jogavam hóquei. Aqui, numa escola com 100 miúdos 90 jogam futebol. A seleção argentina sempre foi formada por jogadores sanjuaninos - e um de Mendoza ou de Buenos Aires. Isso dá-nos um sentido de pertença muito grande. Mas mesmo o meu pai, que é sanjuanino e nunca jogou hóquei, sente isso".

Nicolía dá o exemplo do que aconteceu em Espanha: "Há uns 30 anos o governo espanhol decidiu investir em centros de alto rendimento. A mudança desportiva foi enorme, no atletismo, no ténis, no futebol, no basquete, no hóquei. Agora foram campeões no hóquei em quatro mundiais seguidos, campeões europeus de futebol, campeão europeu de basquete, tem vários jogadores na NBA".

"Em Portugal, uma equipa da terceira divisão tem pavilhões que a primeira divisão da Argentina nem sonha. Mas também é por isso que lá temos belíssimos jogadores, como não há nada é preciso usar a criatividade. No Brasil é a mesma coisa com o futebol, porque jogam na rua, na terra, na areia, na praia".

"Não me revejo em algumas pessoas da estrutura deste Benfica"

Carlos Nicolía completa dez anos em Portugal no próximo mês. "E também o Benfica a que cheguei e diferente do Benfica que existe agora", revela. "Havia outra dinâmica desportiva, muito melhor. Agora, na estrutura o importante é cada um resguardar o seu lugar".

O hoquista esteve a uma unha de ir para o Porto. "O Porto foi o primeiro clube que me ligou. Já tinha tudo apalavrado quando me ligaram do Benfica, apenas uns dias depois. Quando falamos com um dirigente ao telefone, temos sensações. Tive uma empatia muito grande Tiago Pinto e com aquilo que era o projeto do clube. O Porto nunca mais me falou".

Tiago Pinto tem uma história. Começou por ser um crítico fervoroso de Luís Filipe Vieira, mas sempre cortês. Não falhava uma assembleia. Até que o então presidente do Benfica o convidou para conversar. Gostou tanto dele que o contratou como diretor das modalidades. Só depois passou para o futebol e hoje é considerado um dos melhores diretores desportivos (está na Roma, com o José Mourinho).

Carlos Nicolía
@Rodrigo Mendes créditos: 24

Ao longo destes anos também teve oportunidade de mudar de clube. "No segundo ano de Portugal fui chamado duas vezes pelo Barça" e também "fui convidado pelo Sporting, na época do Bruno de Carvalho. Mas não me convencem com dinheiro, se estou bem num lugar, não tenho por que ouvir outras opções".

"Uma vez mais, é importante assumir um papel. É muito fácil dizer que perdeste por causa do treinador ou por causa do árbitro. Se faço um livre direto e ganho, sou o melhor. Se erro sou uma merda. Mas é uma questão de milímetros, como na vida".

E, na vida, Nicolía já foi posto à prova diversas vezes. Aos 17 anos foi para Itália, onde esteve dez anos. "Os primeiros anos foram difíceis. Eu tinha um sonho desportivo, mas estava na adolescência, via os meus amigos a ir para a universidade, a fazerem amizades entre si,  e eu estava sozinho em Itália. Mas sempre puxei por mim no desporto. Trabalhei muito para isto, e chega uma altura em que é preciso decidir o que queremos, por mais difícil que seja. Ou estudas ou te comprometes em fazer uma carreira desportiva. Então, cortei essa ligação com a Argentina, o cordão umbilical. Falava muito menos com a família, tratava de ter relações mais na Europa, em Itália, do que lá".

"Se faço um livre direto e ganho, sou o melhor. Se erro sou uma merda. Mas é uma questão de milímetros, como na vida"

Estava muito confortável em Itália, "se quisesse podia jogar até aos 50 anos". Mas, mais uma vez, foi preciso decidir - e a mudança foi radical. "Num clube começas por baixo. Quando chegas ao topo estás confortável, conheces tudo. É difícil mudar de clube, voltar à estaca zero, deixar de ser alguém. Mas é fundamental para a carreira desportiva".

"Ainda por cima, nesse momento não estava numa situação pessoal fácil. Celina, a mãe do Cris, morreu na Argentina, nas férias, quando eu estava entre Itália e Portugal. Vim sozinho com o Cris, que tinha dois anos e meio. Como no desporto, com as devidas distâncias, quando se perde um jogo é preciso seguir em frente. De certa forma, o meu filho foi o meu motor para continuar; ela descobriu que tinha cancro quando ele ainda não tinha um ano, tive de ser pai, marido e desportista", conta Carlos Nicolía.

"Quando Celina morreu, deixei de ser marido, mas continuei a ser pai, o meu filho precisava de mim. Se o deixasse na Argentina, ia ser sempre um neto coitadinho, um sobrinho coitadinho, ia ser criado numa bolha de coitadinho, e eu queria que ele crescesse de forma tão normal quanto possível", diz. "Tive vários confrontos com a minha irmã, que é psicóloga, e que o trata muitas vezes como um miúdo diferente. Ele não é diferente, embora a vida o tenha marcado de forma difícil. A minha relação com o Cris é especial, talvez porque tenha feito coisas de mãe".

Hoje Cristiano tem um irmão, Ramos, fruto da relação com Flávia, uma argentina que conheceu quando o Benfica foi jogar a Barcelona, mas que era irmã de um "grande amigo".

Uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada

Era um sonho antigo e tornou-se realidade há nove anos. Hoje é o projeto mais importante da SAHNI, a Sociedade de Amigos do Hospital Infantil de San Juan, uma associação criada por mulheres de pediatras, e já ajudou mais de 1500 crianças em tratamento hospitalar e famílias.

O conceito não podia ser mais simples: construir uma casa para acolher crianças que precisam de receber tratamento no hospital pediátrico de San Juan, mas que não têm de ficar internadas 24 horas e não têm recursos financeiros para ficar num hotel ou para ir e vir todos os dias das suas casas, muitas vezes a mais de 100 ou 200 quilómetros de distância.

A ideia começou a ser pensada há 20 anos, mas só em 2014 foi possível implementá-la. Carlos Nicolía é padrinho e embaixador da causa, impulsionada em grande parte pela mãe de Flávia, sua mulher. "O primeiro passo foi comprar um terreno em frente ao hospital. Depois foi preciso construir a Casa Sahni, o espaço físico, adaptado, com um total de doze quartos".

"Na Argentina há 45 milhões de pessoas, quase um milhão na província de San Juan. Um hospital pediátrico dificilmente tem camas para todos os que precisam, sobretudo para aqueles que têm de fazer tratamentos, mas não precisam de ficar internados. Que, por serem menores, têm de estar acompanhados pela família, muitas vezes mãe e irmãos", descreve o jogador.

"Há muita pobreza na Argentina, e quando conheci o projeto da Casa Sahni fiquei imediatamente impressionado e sensibilizado. Não ajudo fisicamente, mas ajudo naquilo que é a diplomacia, porque o desporto também tem esta vertente solidária", diz.

"Conhecemos muita gente e podemos dar voz a causas como esta. Não precisamos apenas de dinheiro, precisamos também de gente, por exemplo, psicólogos e nutricionistas que queiram ser voluntários. Os únicos profissionais que são pagos são os enfermeiros, porque têm de estar disponíveis a tempo inteiro, é a sua profissão".

Mas também são necessários alimentos ou medicamentos. "Desde que começámos já passaram por ali cerca de 1.500 crianças, muitas famílias. A Argentina tem um problema social grave". Muitas vezes a criança doente tem de fazer quimioterapia ou hemodiálise, mas tem irmãos pequenos e a mãe não tem onde os deixar. "Acolhemos todos, mas isso representa mais uma cama, mais um prato de comida, mais tudo. A prioridade é a criança doente, mas nas favelas há mães com cinco, seis, sete filhos", lembra o jogador.

Apadrinhar um quarto custa 500 euros por ano e dá direito a tudo, da alimentação (muitas vezes com restrições), aos cuidados médicos necessários.

"Digo muitas vezes que Portugal é um paraíso. Mesmo que haja muita coisa mal. Na Argentina, além de um pão poder custar hoje um euro e amanhã três, faltam bens. Há doenças para as quais não há medicamentos. E não é que sejam caros, é mesmo não haver no país, seja por que motivo for. Em Portugal seria impensável não ter um medicamento para tirar a dor a uma criança. Na Argentina acontece. É uma luta diária. É preciso viver lá um ano para dar importância a coisas que aqui são normais".

"Sou português para pagar impostos, estrangeiro para jogar"

Concede que se não fosse o hóquei, talvez nunca tivesse vindo a conhecer Portugal. Só conhecia o aeroporto de Lisboa e a cidade do Porto, onde tinha ido jogar três vezes. "Quando se fala na Europa, fala-se em Roma, Veneza, Paris, Madrid, Barcelona. Nunca Lisboa", admite. "Agora falo com as pessoas que conheço, italianos, argentinos, e cada vez mais me ligam a dizer que vêm para Lisboa".

Quando chegou, ficou "surpreendido. Com o clima, as gentes, com a vida. Nicolía sente-se argentino - e toda a conversa decorre enquanto vai bebendo mate quente, um hábito tão da América Latina -, mas já não pensa em deixar Portugal. Os filhos, igual. "Quando vamos passar férias à Argentina, e mesmo sendo tudo lindo, estando lá os primos, os avós, que fazem tudo o que eles querem, passado um tempo já estão a perguntar: "Pai, quando voltamos para Portugal?" Isto quer dizer muito".

Mate de Carlos Nicolía
@Rodrigo Mendes créditos: 24

Carlos Nicolía tem dupla nacionalidade, argentina e portuguesa. E uma luta que trava há anos. "Em Portugal há uma questão real: cada vez há mais estrangeiros. E os portugueses são cada vez menos valorizados. Tenho muito amigos portugueses que têm de trabalhar a dobrar para viver, porque é impossível morar em Lisboa. Aliás, não sei como é que os portugueses fazem para conseguir viver em Lisboa. O custo de vida é brutal", afirma.

"Lisboa mudou muito nestes dez anos, em todos os sentidos. Aqui onde moro há muitos condomínios novos e quase todas as pessoas que vivem em frente ao estádio são estrangeiros: angolanos, brasileiros, chineses, franceses, ingleses. Há poucos portugueses".

"Não sei como é que os portugueses fazem para conseguir viver em Lisboa. O custo de vida é brutal"

"Vou muitas vezes levar os miúdos à escola e por baixo de uma ponte onde antes havia uma tenda, agora há três. Paro lá para deixar roupa ou comida e de um lado está o senhor António, já há 30 anos, e do outro uma mãe e um filho grande, de 25 anos. E no centro, à noite, na Avenida da Liberdade, muita gente dorme no chão".

Voltamos à questão da nacionalidade. "Lutamos contra o racismo, contra a descriminação, mas eu sou descriminado. Como não sou selecionável, porque jogo pela Argentina, jogo no Benfica como estrangeiro. E se o Benfica tiver seis estrangeiros, posso ficar fora ou posso ficar sem trabalho. Dizem que é para proteger a formação portuguesa. Ou seja, sou português, mas para o hóquei sou argentino. Na verdade, sou as duas coisas, é a lei que o diz, mas para o hóquei não é assim; sou português para pagar impostos, estrangeiro para jogar".

A explicação da Federação de Patinagem de Portugal é que "se jogo como português, estou a tirar um lugar a um miúdo português. Podem dizer-me que é para proteger a formação, mas é mentira. O objetivo, para mim, é debilitar o adversário. Mas isto não se pode dizer, se não pensas como eles, ficas fora". A verdade é que o Porto tem cinco estrangeiros, para o ano terá seis, o Benfica tem seis estrangeiros e o Sporting tem seis estrangeiros. "Se há portugueses bons, não estão a treinar porquê? É uma contradição", contesta Nicolía.

A solução, para o jogador, passa por "os dirigentes deixarem de ver o que é melhor para si e passarem a olhar para o é melhor para o desporto. No desporto todos dizem que estão a lutar contra a discriminação, mas depois fazem leis destas, que são discriminatórias. E a federação é a primeira a fazer isso. Sou português, mas sou um português diferente. Que mensagem passa? É como a violência no desporto, de que falámos antes, como vai acabar se os primeiros a incentivá-la são os dirigentes ou os presidentes dos clubes?"