O Sindicato dos Jornalistas considerou, na quarta-feira, “um atentado à liberdade de imprensa” o processo instaurado pelo Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol à jornalista Rita Latas.

O processo, instaurado em 30 de agosto, ocorreu depois de a jornalista do canal SportTV ter feito, na zona de entrevistas rápidas, no final do encontro entre Sporting e Desportivo de Chaves (0-2) para a I Liga de futebol, uma pergunta ao treinador dos ‘leões’ “fora do contexto do jogo que acabara de terminar”, explicou o sindicato em comunicado. A pergunta, que visou o avançado Slimani, ex-jogador do Sporting, é uma “situação que não se enquadrava no regulamento das competições organizadas pela Liga Portugal”, foi referido pelo CD.

De acordo com o Jornal de Notícias, Slimani disse nas redes sociais que era pouco utilizado pelo treinador que dava preferência ao colega Paulinho, também avançado. "Aconteceu que ele não gostou que eu jogasse bem e fosse forçado a tirar o jogador dele [Paulinho]. Então encontrou desculpas mas todas essas verdades aparecerão em breve", escreveu o avançado argelino.

A pergunta foi, desde logo, assumida pela própria jornalista na entrevista que a mesma estava um pouco fora do âmbito, mas, pela sua atualidade, valeria a pena ser colocada: "Uma última pergunta e um pouco à margem do jogo, porque é impossível fugir a esse tema. As palavras de Slimani dirigidas a Rúben Amorim. Que comentários lhe merecem o que Slimani disse que, ao que tudo indica, não queria que ele jogasse porque preferia que Paulinho estivesse no onze inicial?", perguntou a profissional ao treinador do Sporting.

Rúben Amorim disse que preferia falar "um bocadinho sobre o jogo" e que responderia a essa e outras perguntas na conferência de imprensa. A jornalista não insistiu mais. Contudo, o delegado do Sporting, rigoroso, pediu ao delegado da liga que registasse a questão para que a mesma constasse no relatório final da partida. Na sequência, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol decidiu, rigorosamente, instaurar um processo à jornalista.

"Uma forma gravíssima de censura" e “um absurdo”

Segundo o Sindicato de Jornalistas (SJ), esta é “uma forma gravíssima de censura absolutamente proibida no ordenamento jurídico português” e uma prática “suscetível de poder constituir um ilícito de natureza criminal como são os atentados à liberdade de imprensa”.

O SJ também "estranha a manifesta falta de sensibilidade democrática revelada pelo Conselho de Disciplina (CD) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), composto por ilustres juristas, e estranha igualmente a manifesta ilegalidade do regulamento das competições organizadas pela Liga Portugal no que a esta matéria diz respeito”, destaca o organismo na nota de imprensa.

O sindicato revelou ainda que irá “participar este facto ao Ministério Público para os devidos efeitos”. Além de manifestar solidariedade e apoio à jornalista, Rita Latas, o SJ recomendou ainda ao CD da FPF “a leitura urgente da Constituição no que às liberdades diz respeito”.

Por sua vez, a Associação dos Jornalistas de Desporto (CNID) considerou o processo à jornalista “um absurdo”, defendendo que os jornalistas “não podem ser escrutinados por nenhum conselho de nenhuma federação ou liga, nem por nenhum clube”.

O CNID acrescentou ainda que “desconhecia este inusitado âmbito disciplinar a que os jornalistas estariam submetidos”, considerando-o “absolutamente inaceitável” e manifestou ainda o total apoio à jornalista, inclusive para o pagamento de uma eventual multa, a ser paga “em moedas de cêntimo, entregues à presidente do CD”. “Esta é só mais uma das muitas coisas estranhas que se passam no âmbito da justiça desportiva, porquanto a jornalista se limitou a fazer o seu trabalho, fazendo uma pergunta ao treinador do Sporting sobre uma questão de atualidade (declarações de Slimani), ao que o treinador respondeu educadamente que falaria disso na conferência de Imprensa que se seguiria”, destacou o CNID em comunicado.

Ordem dos advogados fala em situação de "preocupante", CCPJ diz que instauração do processo é "ilegal"

O bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, considera a situação de "preocupante" porque os jornalistas "não devem ser pressionados por um inquérito pelo simples facto de ter colocado uma pergunta.

"É uma situação preocupante. Os jornalistas estão no âmbito da sua liberdade de imprensa, têm todo o direito de colocar as questões que entenderem, se não há interesse em responder, isso é outra questão. Agora estar a pressionar um jornalista com um inquérito pelo simples facto de se colocar uma pergunta, parece-nos um sintoma preocupante em termos de liberdade de imprensa e esperamos que a situação seja adequadamente esclarecida", lamentou.

Também a CCPJ discorda da "equiparação dos jornalistas" que efetuam a cobertura a jogos de futebol com "agentes desportivos", porque segundo os regulamentos da FPF, estão vinculados às mesmas normas dos jogadores, treinadores e dirigentes. O jornalistas regem-se por normas próprias adequadas ao exercício da profissão no sentido de garantir a independência, como a liberdade de acesso às fontes.

O processo disciplinar foi instaurado “ilegalmente”, já que este “é o único organismo nacional a quem incumbe, por lei, assegurar o cumprimento dos deveres profissionais dos jornalistas. É da sua exclusiva competência legal apreciar, julgar e sancionar a violação desses deveres”, refere a Comissão em notícia avançada pelo Público.

Conselho de Disciplina explica a abertura do processo. Ministério da Cultura apela que "reconsidere"

Por seu lado, o CD da FPF explicou em comunicado que “está obrigado a sancionar em processo sumário ou a instaurar processo disciplinar quando chegam ao seu conhecimento indícios da prática de ilícito disciplinar”, adiantando que os dados estavam presentes no relatório oficial de jogo, realizado em Lisboa em 27 de agosto.

Este órgão da FPF lembrou ainda que “os jornalistas que desempenham as suas funções por ocasião do jogo são agentes desportivos” nos termos do regulamento das competições organizadas pela Liga Portugal. Na zona de entrevistas rápidas (‘flash interview’) devem ser abordadas “exclusivamente” as ocorrências do jogo e “a violação desta disposição” é passível de enquadramento no regulamento disciplinar, acrescentou.

O CD frisou também que podia ter sancionado de imediato em processo sumário, mas entendeu “que devia ser instaurado processo disciplinar para que no seu âmbito pudesse, através de uma reflexão mais detida, ser ponderada a necessidade de concordância entre a proteção dos valores desportivos e a proteção da liberdade de expressão”.

Os regulamentos da Liga dizem que as perguntas colocadas nas "flash interviews" - entrevistas rápidas com os protagonistas logo a seguir ao final da partida - devem ser dedicadas a temas exclusivos a esse jogo e não se pode colocar perguntas sobre outros assuntos. Ficando essa oportunidade reservada para as conferências de imprensa.

Contudo, todas as organizações que já se pronunciaram sobre o caso consideram que os regulamentos devem ser alterados, uma vez que limitam o trabalho dos jornalistas. "A Federação deve executar alterações imediatas no seu estatuto disciplinar retirando os jornalistas da condição de “agentes desportivos” e não os enquadrar em nenhuma outra situação que venha a ser passível de lhes causar qualquer tipo de constrangimentos”, defende ainda a CCPJ, num comunicado divulgado esta quinta-feira.

Também o ministro, Pedro Adão e Silva,  que tem a tutela da Comunicação Social disse estar a "acompanhar com muita preocupação uma decisão que limita a liberdade de imprensa e que põe em causa princípios basilares da Constituição".

Em comunicado enviado às redações, o ministro da Cultura apelou ao CD da FPF que "reconsidere" a decisão que recai sobre a jornalista da SportTV, lembrando que "os jornalistas são, por definição, livres de fazerem as perguntas que entendem".

Com Lusa*

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