“É necessário recuar 23 anos a partir de 1975”. As contas são feitas por Orlando Jesus, ex-pugilista profissional, campeão nacional, treinador e atual árbitro, ao referir-se aos combates de boxe no Parque Mayer.
O desporto de combate confunde-se com a história centenária do outrora mítico espaço do Teatro de Revista e da boémia da capital portuguesa.
“A última vez que o Parque Mayer tinha recebido um combate ... temos de recuar 23 anos para trás de 1975”, repete num tom de voz pausado, acompanhado por gestos repentinos de uma troca de mãos a acompanhar uma dança de ombros.
Os disparos com as mãos foram uma constante. Assim como os movimentos como se estivesse a esquivar de algo.
A data exata não se depara na memória dos seus quase 70 anos. “Ora, o 25 de abril dá-se em 1974. Começamos no ano seguinte. Em maio ou junho de 75”, acena a cabeça em jeito de confirmação para assinalar o regresso do boxe após mais de duas décadas de ausência no local que abraçava teatros e artistas.
Socorre-se de um recorte de um jornal colado numa folha branca, cuidadosamente encadernada num grosso dossier de pedaços de jornais e fotografias a preto e branco. “Está aqui a história toda”, mostra uma notícia com o título “O boxe de regresso ao Parque Mayer”.
Numa conversa noturna tida com o SAPO24 numa pastelaria em Campo de Ourique (“O Nosso Café), em Lisboa, o mote do encontro tinha por sumário as comemorações dos 100 anos do Parque Mayer.
O boxe foi ali praticado em dois períodos da história. Começou nos anos 30, seguiu pelos anos 40 e 50, época áurea, e parou. Retomaria na década de 70 do século passado até início dos anos 80.
O duplo registo, de prática e suspensão, regresso e nova paragem, merece honras de fazer parte do programa do Centenário do Parque Mayer, celebrado hoje, como veremos mais à frente.
Anos 40 e 50. A época de ouro do boxe no terreno dos artistas
Orlando Jesus fez-se acompanhar de um arquivo vivo e ambulante de documentação. Inclui, para além das palavras escritas nos jornais e revistas, fotocópias de vários panfletos de anúncio dos combates. São estas a fontes nas quais se apoia para falar da história do boxe e da sua partilha do espaço onde o Teatro de Revista merecia o palco principal.
Recua, ao de leve, ao início de tudo. “O boxe começou pelos anos 30 e picos, onde também havia luta livre. Os anos 40 e até 50 foram a época de ouro, dizem. Depois parou e foram 23 anos parados até retomar”, volta a focar-se no número.
As datas do recomeço e nova suspensão no pós-Revolução continuam a atraiçoar a memória a Orlando Jesus. Fixou-se no regresso, no qual foi personagem principal. E na sua estreia, aos 19 anos, no ringue do Parque Mayer.
“O boxe regressa porque há um senhor, Armando Poncho...tenho aqui tudo documentado...o senhor Brito, o marechal do Boxe, o Carlos Santos, dono do Maximes (Cabaré) e o Pepe, um galego dono restaurante Cova do Galo”, recorda já sem recurso a qualquer papel. A eles, reconhece, deve-se a subida do desporto das luvas e dos KO ao maior dos palcos.
“Havia muito público...muito”
A vida de Orlando Jesus (cara de vários cartazes e cujo nome está escrito em diversos jornais) confunde-se com o boxe. A paixão pelo ringue corre-lhe no sangue, ou não tivesse o seu avô sido o debutante, então na Casa Pia. “Começo a praticar em 1967 no Rio de Janeiro e depois vou para os Alunos de Apolo, para a Sociedade Filarmónica Alunos de Apolo, onde ainda hoje sou presidente da Mesa da Assembleia-Geral”, relembrou.
“Em 1975 tornei-me profissional e vou até 1984”, precisou. “Abri o regresso do boxe no Parque Mayer. O primeiro combate foi com o Vítor Pires e acho que fiz oito combates aí. Ganhei todos. Na minha carreira só perdi um combate e empatei um”, detalhou na recordação da carreira na qual saltitou entre os “72 quilos e 600 gramas e os 69 kg e 800 gramas”, anotou. “Só perdi contra o campeão da Europa, Afonso Redondo, um espanhol”, disse.
A emoção tolda-lhe as palavras quando recorda as noites de combate. “Havia muito público...muito”, arrasta a voz e folheia o “álbum dos registos” que o acompanha. “Era ao lado do Capitólio onde é hoje o parque automóvel. Tinha um género de bancadas que se enchia com cadeiras. Antigamente eram de ferro. Por vezes, era cadeirada de meia-noite, então não havia... está aqui tudo escrito. Eram as rivalidades”, sorriu.
De Herman José a Ivone Silva
“Foi um pouco mais de cinco anos e, a bem dizer, era quase todas as semanas”, assegurou. No público aparecia o “Herman José e o Nicolau Breyner (mostra fotografias)” e era usual “ver a malta do teatro, o Raul Solnado, Ivone Silva, Vítor Mendes, iam todos ver”, garantiu.
Aponta para uma fotografia. É ele próprio, a preto e branco, num dia de treino. “No Parque Mayer tínhamos um ginásio com piso de cimento. Onde hoje é o parque automóvel havia um barraco que tinha um saco pendurado”, registou esta lenda viva do boxe nacional e antigo treinador de Farid Walizadeh, pugilista de origem afegã refugiado em Portugal, ao lado de quem foi recebido, em 2014, em São Bento para receber o Prémio Direitos Humanos, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República.
A data da nova suspensão é mais um dado que lhe escapa. “O fim não me lembro. Estava fora. Era desertor da tropa, vinha cá e ia embora”, assumiu com sorriso matreiro nas vésperas do regresso, momentâneo, do “seu” boxe ao terreno lateral do Teatro Capitólio.
Reclama que esta é uma história bonita para ser contada e escrita. “Tivemos boxe no Pavilhão dos Desportos (Hoje denominado Carlos Lopes), Coliseu, mas o Parque Mayer era a catedral do boxe. Era onde todos queriam estar. Era pequenino, mas só lá iam os super. É como o Olympia, em Paris”, sustentou. Para pisar o ringue “os treinadores tinha de acreditar para os levar lá”.
“Faremos como antigamente, ao ar livre, ao lado do Capitólio. A ideia é recriar o passado”
Hoje, a partir das 18h30, durante mais de duas horas, o boxe regressa ao Parque Mayer. Seis combates inseridos nas cerimónias do Centenário daquele epicentro da cultura popular em Lisboa.
“O espaço era a meca do boxe na altura. Estou feliz por voltar a tê-lo aqui de volta”, sublinhou Pedro Matos, pugilista e organizador desta tarde-noite na qual um ringue e vários pares de luvas regressam à outrora cidade dos Teatros.
“Faremos como antigamente, ao ar livre, ao lado do Capitólio. A ideia é recriar o passado”, referiu. “É a partir das 18h30 e a entrada é livre e temos 200 cadeiras”, frisou.
No programa constam “seis combates”, enumerou Pedro Matos. “Quatro de Boxe Olímpico, um de exibição de duas meninas, para mostrar a mudança da modalidade nestes anos, todos de três assaltos de três minutos”, destacou.
Por fim, o momento mais aguardado. “Teremos um combate profissional de quatro assaltos de três minutos, com o Miguel Amaral, do Clube Vitória Nobre Arte, e o Ricardo Costa, do Águias da Musgueira”, destacou.
O combate, sem direito a prémio, leva Orlando Jesus de regresso a um ringue onde já foi feliz, agora, na qualidade de árbitro. “Vou apitar este combate”, referiu o ex-profissional, e “ator” em “três filmes”.
A história será igualmente revivida por muitos que ali subiram ao ringue no passado. “Vamos trazer ex-atletas de volta ao espaço, serão homenageados porque a visibilidade de então era diferente de hoje”, adiantou Pedro Matos.
O profissional e organizador do evento, ambiciona ver outra vez o boxe no Parque Mayer. “ Espero ter de novo o boxe no Parquer Mayer e uma nova visão para o espaço. Entra no programa do Centenário, mas a ideia é ter uma porta aberta para continuar e trabalhar com a Junta de Freguesia de Santo António”, finalizou.
Comentários