A expressão "uma pedra no sapato" significa um assunto que está mal resolvido ou que nos atrapalha. O FC Porto, por exemplo, é uma pedra nas chuteiras - se me permitem a adaptação desportiva do ditado - de Cristiano Ronaldo. Se olharmos para o histórico entre o capitão da seleção portuguesa e o atual campeão nacional, o primeiro só soma uma vitória e um golo marcado. Sim, é verdade que esse golo marcado no estádio do Dragão, em abril de 2009, permitiu a passagem ao Manchester United às meias-finais de uma edição da Liga dos Campeões em que só seriam derrotados na final pelo FC Barcelona, e um prémio Puskás a CR7; e sim, também é verdade que foi nesse mesmo estádio que Ronaldo ergueu o segundo título com a seleção, a Liga das Nações.
Mas também é verdade que em oito jogos, os azuis e brancos derrotaram Cristiano cinco vezes, duas na liga portuguesa, quando o 7 da Juventus ainda vestia a camisola do Sporting, outra em 2004, na primeira época do português em Old Trafford, num encontro a contar para a Liga dos Campeões, numa eliminatória que os Dragões levariam a melhor com um golo de Costinha, na segunda mão, em cima do apito final, há precisamente 17 anos. Aliás, o United de Ronaldo foi a primeira 'vítima' daquele que viria a ser o FC Porto campeão europeu de José Mourinho logo após a fase de grupos.
Se o sorteio, quando aconteceu, não ditou um bom presságio aos Dragões, uma vez que, pela mesma lógica, a Juventus também era uma pedra no sapato dos azuis e brancos — que até ao mês passado nunca tinham conseguido vencer a formação italiana, somando como melhor resultado um um empate a zeros no Dragão em 2001, num jogo a contar para a fase de grupos da Champions —, também não ditava um futuro melhor para Ronaldo. Restava que os dois jogos, entre as duas equipas, revelassem qual das pedras era mais pesada, se o histórico entre Juventus e FC Porto, se os números dos confrontos de Cristiano com os Dragões.
Nos primeiros 135 minutos desta eliminatória, como quem diz o jogo no Porto (2-1) e a primeira parte em Turim (0-1), a turma orientada por Sérgio Conceição jogou sem qualquer pedra que a prendesse ao relvado ou ao passado. Solto, organizado, a jogar de igual para igual e com iniciativa perante um candidato crónico a vencer a Liga dos Campeões. Do outro lado, a Juventus não conseguia ser tão leve, esmagada pela expectativa consecutivamente falhada de impor o seu domínio para além das competições domésticas e incapaz de reinventar um futebol, que continua a basear-se num mínimo sentido de coesão como base para o aparecimento de momentos de talento individual no jogo de jogadores como Cristiano Ronaldo.
A Vecchia Signora entrou esta terça-feira em campo como se não tivesse subestimado o FC Porto há três semanas. Nos primeiros sete minutos de jogo, os italianos viram Uribe disparar à entrada da área, ao lado da baliza de Szczęsny, e, Mehdi Taremi atirar à barra, na recarga de um primeiro remate cortado por Bonucci. Entre estes dois lances, Álvaro Morata, na sequência de um cruzamento de Cuadrado, permitiu aquela que seria a primeira de uma série de grandes defesas de Marchesín.
Com a Juve a permitir as iniciativas em transição do FC Porto, a formação portuguesa, numa das viagens até à grande área dos italianos, inaugurou o marcador. Demiral fez falta sobre Taremi e Sérgio Oliveira, da marca dos onze metros, empurrou a bola para o fundo das redes.
Ainda antes de fecharmos o resumo desta primeira parte, nota para mais uma grande defesa do guarda-redes argentino do Porto. Morata ganhou nas costas de Wilson Manafá e viu Marchesín, com uma mancha, negar-lhe o golo. Ainda estávamos na primeira meia hora de jogo e as oportunidades do avançado espanhol da Juventus eram os dois únicos remates da Juve na partida, contra oito dos Dragões.
Quando Björn Kuipers apitou para intervalo, o FC Porto era sem dúvida uma pedra no sapato da Juventus. Andrea Pirlo, que é jovem como treinador, mas não é novo por estas andanças — basta recordar que fazia parte da equipa da Juventus que foi eliminada pelo SL Benfica nas meias-finais da Liga Europa, estava preparado para jogar descalço, se fosse necessário. Não podendo adivinhar o que antigo médio campeão do Mundo disse no balneário, sabemos como é que a equipa o traduziu: em 18 minutos Federico Chiesa bisou na partida (e pelo meio atirou uma bola ao poste num lance que teve uma intervenção magistral de Pepe).
A Juventus virou o resultado e beneficiava de um outro evento ocorrido entre golos, a expulsão desnecessária de Taremi por acumulação de amarelos, o primeiro por uma falta, o segundo porque chutou a bola para longe com o encontro parado.
O jogo caminhava para nos mostrar que as chuteiras são coisas que se calçam e descalçam e que as pedras só pesam durante o tempo em que as deixarmos andar por lá - ou que Chiesa encaixa no jogo. Sim, o ex-Fiorentina estava prestes a tornar-se uma pedra no sapato de Sérgio Conceição, mesmo depois de o técnico ter conseguido, estrategicamente, anulá-lo no primeiro tempo com Corona e Otávio. Já no Dragão, Chiesa tinha marcado o golo que deixou a eliminatória em aberto e não fosse Pepe, que a par de Marchesín foi o melhor da formação azul e branca, o jovem extremo poderia sido ainda mais mortífero no jogo de hoje.
Com a eliminatória empatada, a caminho dos 90 minutos somaram-se duas boas iniciativas de cada lado. A primeira de Cristiano Ronaldo, a responder de cabeça a um cruzamento de Cuadrado, mas a atirar a bola ao lado; a segunda de Sarr, que entrou na segunda parte na formação azul e branca, com um grande remate de fora de área que obrigou o guarda-redes polaco da Juventus a defender como conseguia; a terceira de Marega que rematou às malhas laterais da baliza da Juve; e a última, já nos minutos de compensação, uma bola à barra de Cuadrado.
Calça bota, descalça pedra, cada equipa tirava a areia do sapato como podia. A Juventus com Chiesa e Cuadrado a tentar desequilibrar, numa noite mais apagada de Cristiano, e o FC Porto seguia unido e inspirado pela valentia com que Pepe e Marchesín (e Mbemba também, acrescente-se) limpavam tudo o que havia para limpar. No prolongamento, não há momento que mereça ser recordado para além do que aconteceu no minuto 115: túnel de Sérgio Oliveira sobre McKennie e falta à entrada da área da Juventus. O capitão assume a conversão e remata rasteiro junto ao canto inferior esquerdo da baliza defendida por Szczęsny. A barreira saltou, a bola passou e não houve braço do polaco para conseguir impedir que o esférico atravessasse a linha de golo. Sérgio Oliveira bisava e atirava o FC Porto para os quartos-de-final.
A Juventus respondeu com pressão, passou para a frente do marcador com um golo de Rabiot, de canto, mas ‘morreu na praia’, sem conseguir, uma vez mais, passar por Pepe e Marchesín. Passou a equipa que teve mais coração e mais capacidade de adaptação ao adversário. O FC Porto, que jogou grande parte do encontro com um jogador a menos, passou aos quartos de final pelo segundo ano consecutivo e volta a estar entre as oito melhores equipas da Europa, a única fora das cinco principais ligas — aliás, já o era nestes oitavos de final.
Já Cristiano Ronaldo volta a não conseguir ir longe no sonho europeu que o levou para Turim para tentar conquistar a Liga dos Campeões com um terceiro emblema ao peito, depois de o ter feito com Manchester United (1) e Real Madrid (4). Aquele que é o melhor marcador da história da competição soma saídas prematuras da Champions nos três anos em que jogou em Turim. Na primeira época, 18/19, a Juve caiu aos pés do Ajax, nos quartos-de-final, na temporada passada foi eliminada de forma surpreendente pelo Lyon nos oitavos-de-final e, esta época, cai perante o FC Porto.
Os Dragões continuam a ser uma pedra na chuteira de CR7, uma das várias que lhe pesam numa equipa que nunca conseguiu consolidar um fio de jogo, que não teve estabilidade no comando técnico e que falhou em retirar o melhor do internacional português desde que este chegou a Itália (com a Juve, Ronaldo marcou menos golos em três temporadas na liga milionária - 14 -, do que na última temporada com o Real Madrid - 15).
Quando acabou o jogo, a vitória do FC Porto tomou conta do relvado e uma pergunta ficou a pairar no ar: como é que Cristiano Ronaldo vai conseguir descalçar esta bota?
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