Sem necessidade de grandes contorcionismos, o futebol respira por todos os poros religiosidade. Surge como um refúgio onde nascem práticas mágico-religiosas que, por vezes, levam jogadores e adeptos, carregados de fé, por mais profanos, agnósticos ou ateus que sejam, a depositarem o desfecho de um simples jogo em mãos divinas.

Hoje, o “futebol é vivido quase como uma religião de substituição”, escreve José Tolentino de Mendonça (“O pequeno caminho das grandes perguntas”, editora Quetzal), ao repescar Robert W. Coles, um dos pioneiros a ligar os bornos da realidade social no mundo da bola à transcendência da prática do sagrado.

A paixão que desperta leva a que o jogo do 11x11 seja “observado etnologicamente como um ritual religioso ou para-religioso, com as suas catedrais, os seus oficiantes, a sua liturgia, as suas regras, as suas narrativas sagradas e os seus seguidores”, acrescenta na mesma obra o poeta e teólogo.

“O futebol, não é só futebol. Ele coloca em campo, além da bola, outras questões pertinentes”, acrescenta o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação da Santa Sé e Cardeal português que participou no conclave para eleição do Papa.

Futebol, Fátima e Fumos

O mantra acima citado poderá sobrevoar a cabeça e viver no espírito de jogadores, dirigentes e adeptos do Sport Lisboa e Benfica e Sporting Clube de Portugal.  

Igualados no topo da classificação, 78 pontos, os dois clubes de Lisboa lutam a par e passo pelo título de campeão nacional de futebol.

Na reta final da Liga Portugal Betclic, o vencedor da 91.ª edição do campeonato pode ser já conhecido sábado, 33.ª jornada, na partida Benfica-Sporting (18h00).

O “clássico” no Estádio da Luz pode mesmo testemunhar algo único na história. E o dérbi eterno pode transformar-se em dérbi inédito.  É a primeira vez na cronologia do futebol português que as duas equipas se encontram em igualdade pontual e, de cujo resultado do dérbi pode advir, de imediato, o fecho das contas do título para cada um dos intervenientes.

Na semana mais longa do campeonato nacional, a Catedral da Luz pode soltar fumo branco e anunciar “Habemus campeão” de 2024-2025. A verificar-se, a romaria ao Marquês antecipa-se à Peregrinação a Fátima, 12 e 13 de maio.

Se do Estádio da Luz sair fumo preto para os fiéis, o conclave futebolístico recolhe-se durante uma semana e o anúncio (e festa) é adiado para dia 17, data da 34.ª e última ronda, após os desfechos da viagem das águias a Braga ou a receção dos leões ao Vitória de Guimarães. Essa hipótese, precipita que a celebração na Cova da Iria possa ser usada, por uns, para pedidos de intervenção divina no terreno de jogo.

No mundo das incertezas, uma certeza subsiste. Aliás, duas. O nome do campeão será sempre desvendado mais de 48 horas depois de ter saído fumo branco da chaminé da Capela Cistina, no Vaticano. E será conhecido até 24 horas antes das eleições legislativas de 18 de maio.

Robert Prevost foi anunciado como 263.º Sumo Pontífice. O novo líder da Igreja Católica, escolheu o nome Leão XIV e apresentou-se à varanda vestido de batina branca e mozeta em tons de encarnado. Será uma predestinação? Só Deus sabe.

Entre o histórico bicampeonato e a natural título mais 

Com a conjugação de resultados 1X2 já repetidamente dissecada e sobejamente conhecida, o Benfica, campeão pela última vez em 2022-2023, pode ornamentar o seu palmarés com o 39.º título. O Sporting, procura alcançar o 21.º (23.º na ótica do que defendem os dirigentes leoninos).

Até aqui, tudo normal. São dados matemáticos, científicos, terrenos. No entanto, o que poderá ser mais um título a rechear o museu Cosme Damião e colar os encarnados aos 40 troféus, no caso dos verde e brancos, a conquista para as vitrinas do Museu do Sporting transporta um peso histórico. Quase inédito.

Tudo porque os leões podem sagrar-se bicampeões na temporada 2024-2025. Algo que só aconteceu em duas ocasiões na história da divisão maior do futebol português. E escapa ao emblema de Alvalade há 73 anos!

É preciso recuar à época dos “Cinco Violinos” para a história apresentar os dois únicos bi’s do conjunto de Alvalade (1946-1947, 1947-1948 e 1950-1951, 1951-1952).  Feito que transformar-se-ia num tri e num tetra e que espelhou o domínio dos leões de sete títulos nacionais em oito anos, entre 1946-1947 e 1953-1954, série interrompida pelo Benfica, em 1949-1950.

Os dois bicampeonatos dos rapazes de verde e branco foram alcançados durante a presidência de António José Ribeiro Ferreira (1946-1953), vencedor de seis campeonatos (dois tri) e o obreiro dos sete títulos em oito anos. Góis Mota levantaria os dois últimos troféus (o primeiro partilhado com Ribeiro Ferreira, falecido a 13 de fevereiro de 1953) encerrando a época dourada dos leões.

Façamos um parêntesis. O Benfica conquistou 9 campeonatos consecutivos, mais um que Futebol Clube do Porto. Os encarnados registaram o último bi na época 2014-2015, quase 30 anos depois da penúltima dupla conquista (1982-1983, 1983-1984). Antes, inauguraram esta dobragem nos anos 30 (1935 a 1937), prosseguiram nos anos 40 (1941-1943), na viragem da década 50 para a 60 (1959-1961), nos anos sessenta (1962-1964 e 1966-1968) e 70 (1970-1972 e 1974-1976).

O peso da História

Pode a história pesar no desenrolar dos próximos 90+90 minutos separados por sete dias nos tapetes verdes do Estádio da Luz, Alvalade XXI ou Municipal de Braga?

Sem recurso a bolas de cristal, mergulhamos na análise estatística. Dos 90 jogos na Luz entre os atuais vizinhos da 2.ª circular, há a registar 50 vitórias para o Benfica, 16 a caírem no colo do Sporting e 24 empates entre os dois emblemas.

Para quem acredita que a história se repete, ou simplesmente ancora explicações no domínio do Sagrado, na celebração do primeiro bicampeonato leonino, em 1947-1948, o Sporting venceu no terreno do seu eterno rival, por 1-4. Viria a perder, no entanto, no segundo bicampeonato, 1951-1952, por um golo de diferença (3-2).

A repetir-se a história, na primeira fotocópia do passado, o onze leonino celebraria o bicampeonato, já este sábado, na casa do rival. Para reviver o segundo bicampeonato, suspenderia uma semana e aguardaria pela entrada em campo de uma de duas hipóteses. O Benfica teria de perder em Braga, e o Sporting vencer o Guimarães.

Para registo lateral, nesses anos mágicos pintados a verde e branco, o Sporting empatou na casa do Benfica por uma vez, na época de 1948-1949 (3-3), venceu cinco vezes, em 1947-1948 (1-4), 1949-1950 (2-3), 1950-1951 (1-3), 1952-1953 (2-3), 1953-1954 (0-2). O Benfica somou dois triunfos, em 1946-1947 (3-1) e 1951-1952 (3-2). 

Deuses e presidentes 

Na altura do primeiro bi, o Sporting Clube de Portugal tinha nas suas fileiras Fernando Peyroteo (1937-1949), o Deus Eterno para a legião verde e branca.

Hoje, sete décadas depois, o Sporting tem Viktor Gyökeres, uma reencarnação de Odin. Leva 38 golos no campeonato, a seis de igualar Mário Jardel (42), 52 em todas as competições, menos meia dúzia que Peyroteo. Tem a companhia, entre outros, de (São) Pedro Gonçalves.

Mitologia é o que não falta também ao Sport Lisboa e Benfica.  Desde logo, um Deus Grego. Evangelos “Vangelis” Pavlidis (18 golos), cujo primeiro nome tem o significado de “boas notícias”. Ou mesmo Angel di Maria, Angelito ou Anjo da Guarda como é retratado o internacional argentino.

Deuses à parte, a meses de eleições em ambos os clubes, o título de campeão nacional, alcançado na luz ou uma semana depois, será sempre um trunfo para ambas as presidências.

Caso Frederico Varandas (mandato até 2026) termine a temporada como bicampeão, atinge o Olímpio e iguala João Rocha na lista de presidentes com mais títulos (3), no caso, em segundo da hierarquia, mas com a particularidade de o conseguir com metade dos anos de mandato. Rocha esteve à frente dos destinos leoninos por 13 anos. Varandas, é presidente desde 2018.

Se o Benfica terminar campeão, Rui Costa (ato eleitoral marcado para outubro de 2025) ergue o segundo título nacional enquanto presidente das Águias. Foi campeão enquanto jogador, no ano 1993-1994.