Há oito anos, Irina Rodrigues achou que a sua carreira como atleta de lançamento do disco tinha chegado ao fim. A cinco dias de participar naqueles que seriam os seus segundos Jogos Olímpicos, tinha então 25 anos, partiu uma perna e não pôde competir. “Porquê?”, perguntou vezes sem conta a Deus. E chorou, chorou muito. Também chorou nesta entrevista, mas de emoção, enquanto explicava que aquilo que parecia ter sido o fim foi afinal um início. E que ter-se qualificado para mais dois Jogos Olímpicos depois disso – incluindo os de Paris, onde ficou em 9.º lugar, num ano em que bateu o recorde nacional e alcançou a melhor marca mundial até então – foi fruto daquilo a que hoje chama “uma enorme Deuscidência”.

Natural de Leiria, mas a treinar na Terceira (Açores), onde também trabalha como médica, Irina Rodrigues falou ao 7MARGENS por videochamada algumas horas antes de partir rumo à Aldeia Olímpica e pouco depois de ter saído do Santuário de Fátima. Não foi lá cumprir nenhuma promessa, nem pedir uma medalha, garante. Foi simplesmente agradecer por Deus ser tão bom. Mesmo quando parece ser mau.

Terminas muitas das partilhas que vais fazendo nas redes sociais com a frase “Deus é bom”. Foi o desporto que te mostrou isso?

Sim, posso dizer que essa descoberta só a fiz verdadeiramente através do desporto… Mas antes é importante dizer que cresci numa família católica, e apesar de – precisamente por causa do desporto – não ter podido frequentar a catequese de forma assídua, ia muitas vezes à missa com a minha mãe, e gostava. De algum modo, as palavras da Bíblia, que ouvia nas leituras, foram-me ensinando sobre Deus, sobre Jesus, sobre o que era certo e errado. Sentia que, se fôssemos todos mais parecidos com Jesus, não haveria tantos problemas no mundo… Além disso, como vivia na zona de Leiria, pertíssimo de Fátima, também cresci habituada à companhia de Nossa Senhora de Fátima. E depois houve um momento importante, que foi quando, já adolescente, a minha melhor amiga me convidou para ser madrinha da irmã dela, que nasceu nessa altura. Fiquei muito feliz com o convite, mas havia um problema: não tinha ainda feito a Primeira Comunhão nem o Crisma. E o padre da minha paróquia foi irredutível: apesar de a minha mãe ter explicado que eu não conseguia ir à catequese por causa dos treinos e das competições, ele disse que só indo à catequese poderia fazer os sacramentos. Então fomos falar com o padre de outra paróquia lá perto, e ele já foi um bocadinho mais compreensivo: disse que eu não teria de ir à catequese, mas precisava de demonstrar que sabia o mesmo que as outras crianças que iam!

Tiveste de passar numa prova para poder fazer a Primeira Comunhão e o Crisma?

Sim, tive de fazer uma espécie de exame! [risos] Já sabia muitas coisas, mas lembro-me de ter ido estudar os Mandamentos, o Credo… Não queria correr o risco de falhar nem uma linha! E correu bem, lá passei, fiz a Primeira Comunhão e o Crisma com as outras crianças, e fiquei muito grata àquele padre… E foi muito engraçado porque o bispo que nos crismou reconheceu-me, já me tinha visto no jornal, e disse-me assim: “Muitos parabéns pelos teus feitos!”. Eu fiquei ainda mais feliz e também impressionada… Achava que os padres não se interessavam por desporto! [risos]

Mas não foi aí que percebeste que Deus era bom…

Não, percebi isso sobretudo em dois momentos muito complicados da minha vida. O primeiro em 2011/2012, quando tive uma depressão. Foi uma fase muito difícil, em que sofri muito. Os médicos da Federação Portuguesa de Atletismo diziam que aquela época estava perdida… Mas na verdade foi o desporto que me salvou. Porque eu sempre fui uma pessoa responsável e era o compromisso que eu tinha com o atletismo que me fazia levantar da cama e sair de casa todos os dias. Tomava a medicação – não podemos esquecer que a depressão é uma doença –, mas ao mesmo tempo que os medicamentos me ajudavam a recuperar também aumentavam o meu apetite. Lembro-me perfeitamente de que nesse ano engordei 25 quilos e havia colegas que comentavam: “Está tão gorda… De certeza que está dopada..”. Mal eles sabiam aquilo que eu estava a passar. Estava literalmente a lutar pela minha vida. O desporto, de certa forma, também acabava por ser um escape, e eu sabia que podia não fazer uma época brilhante, mas se continuasse a treinar isso era bom para a minha saúde… Nunca pensei qualificar-me para os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, mas consegui. E aí tenho a certeza de que foi Deus que me ajudou.

E a segunda grande provação aconteceu quatro anos depois…

Exatamente: foi em 2016, quando fraturei o perónio, a apenas cinco dias da minha participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. E nessa altura a minha fé foi abalada… Fiquei muito em baixo, muito mesmo, e questionei tudo… Lembro-me de pensar “Eu sou uma boa pessoa, eu não faço mal a ninguém… Porque é que isto me aconteceu?… Se Deus é pai, se cuida de todos os seus filhos com amor, como é que isto pode ter acontecido agora?”. Não conseguia encontrar sentido numa coisa daquelas, depois de me ter esforçado tanto para participar naqueles Jogos… Porque todos sabemos que os Jogos Olímpicos são a competição desportiva mais importante do planeta, e participar neles é o culminar de uma maratona de muito sacrifício para qualquer atleta. E partir a perna, para mim, naquele momento, foi uma fatalidade depois de anos de dedicação e esforço.

Como é que se supera uma fatalidade?

Não foi imediato, mas acabei por perceber que afinal precisava de passar por aquilo para ser feliz. Várias pessoas no meu círculo próximo já me vinham dizendo que estava na altura de eu fazer uma mudança na minha vida. E depois do que aconteceu compreendi que já não eram só elas a dizer, era um sinal muito forte a mostrar-me isso, e eu precisava desse sinal para ter a coragem de mudar. Sabia que não queria terminar ali a minha carreira como atleta – teria sido muito mau terminar a carreira com uma perna partida – mas percebi que, de alguma forma, precisava de ajustar os meus objetivos e o meu rumo. E foi então que conheci o meu atual treinador, o Júlio Cirino da Rocha – a quem eu chamo de mestre – que me levou numa jornada de autoconhecimento e autoconfiança, e que me mostrou os planos bons que Deus tinha para mim.

A palavra “mestre” não costuma ser aplicada aos treinadores de atletismo, e sim aos das artes marciais… Porque lhe chamas assim?

O Cirino é um senhor de 76 anos, com uma energia vital incrível, e é das pessoas mais espirituais que conheço. Uma pessoa muito culta, que sabe muito de História… Penso que terá sido educado como católico, mas conhece as diferentes religiões e gosta muito de aprender… tem um curso de Reiki, por exemplo! E acima de tudo tem uma bondade gigante… É muito mais que um treinador. É um amigo verdadeiro e alguém que se preocupa, antes de mais nada, com o meu bem-estar e a minha felicidade. Quando penso que o conheci por causa de ter partido a perna, sei que isso não foi uma coincidência, porque acredito que não há coincidênias. A palavra certa é “Deuscidência”. Foi uma enorme Deuscidência! Parece que Deus põe as pessoas na nossa vida estrategicamente naqueles momentos em que mais precisamos. E nem eu sabia o quanto precisava do Cirino, de uma pessoa tão boa ao meu lado… Agora, às vezes penso em como é que será a minha vida quando o meu mestre já não estiver aqui… [Emociona-se] Não consigo imaginar!

Na verdade, vocês já se tinham cruzado antes, porque ele treinava algumas das tuas adversárias, não era?

Sim, é verdade! E sabes o que é que ele disse à minha mãe quando me viu a primeira vez a competir com elas, tinha eu uns 13 ou 14 anos? “A sua filha ainda vai aos Jogos Olímpicos!”. Mas quando ele disse isso, o meu treinador da altura respondeu logo: “Não digas isso… É muito precipitado estares a dizer isso agora…”. Um ano mais tarde, tive uma grande lesão no joelho e demorei mais ou menos um ano para recuperar. E fui a um estágio em Leiria onde ele também estava. Ainda não estava completamente bem, fui ainda a coxear, e disse-lhe que gostava de ser treinada por ele, porque ele era o diretor técnico nacional… Mas ele disse que não, e eu fiquei muito ofendida, porque pensei: “afinal não acredita no meu valor”. Hoje, depois de já termos falado sobre esse episódio, sei que não foi nada disso. Ele não me quis treinar porque eu estava doente e não queria arriscar que eu ficasse pior por causa dele…

É como dizias: um “mestre” que põe sempre o bem-estar e a felicidade à frente dos resultados…

Sim, e era disso que eu precisava em 2016, para poder continuar. Precisava de uma pessoa que se preocupasse mais com a minha felicidade do que com os resultados que eu pudesse obter. Que pensasse na Irina Rodrigues como um todo, e não apenas na atleta. Uma Irina que é filha, irmã, amiga, médica (na altura, estudante de Medicina)… Uma coisa que ele me disse e que me marcou profundamente foi: “Eu quero muito que tu lances longe, mas acima de tudo quero que sejas feliz”.

Mas como é que o Cirino se tornou teu treinador nessa altura? Ele entretanto tinha-se mudado para a ilha Terceira, e tu vivias em Leiria e estudavas em Coimbra…

Pois, isso ficou por explicar… É tal como disse a minha colega Eliana Bandeira, a minha vida também dava um livro! [Risos] Regressando então a 2016, nessa altura decidi que a minha carreira como atleta não ia terminar ali, mas que também ia fazer o meu curso de Medicina, e achei que para isso precisava de um treinador com um perfil diferente, que entendesse estas minhas opções, e até foi o diretor técnico do Sporting, o professor Carlos Silva, que se lembrou do Cirino e lhe perguntou se ele estaria interessado em treinar-me, mesmo à distância. E ele aceitou esse desafio, apesar de já não trabalhar com atletas de alto rendimento há alguns anos, e mesmo sabendo que ia ser difícil… Não tanto pela distância física, mas porque nunca é fácil para um treinador acompanhar alguém na situação em que eu estava, a recuperar de uma lesão e completamente destruída psicologicamente. Eu estava em cacos e ele, com toda a paciência e muito lentamente, foi juntando pecinha a pecinha. Foi como se usasse aquela técnica japonesa de restauro de porcelanas, o kintsugi, que cola os vasos partidos com pó de ouro e os torna ainda mais valiosos. Foi isso que o mestre fez comigo, literalmente.

Mesmo estando longe um do outro a maior parte do tempo, porque tu só recentemente é que te mudaste também para a Terceira…

Sim, sim… A maior parte do tempo treinava à distância, e sempre que podia ia ter com ele uns dias à Terceira, para treinar presencialmente. Mas isso acabou por ser bom, porque de alguma forma facilitou a conciliação com a ida às aulas e os estudos. E quando ia à Terceira, dava mesmo tudo. E apaixonei-me completamente pela ilha. Percebi muito cedo que aquela ilha é um dos meus lugares seguros e que me trazem mais paz. No ano passado, como estava a terminar o curso, só consegui ir lá uma semana e senti tanta falta…

A ilha Terceira é um lugar onde o culto do Espírito Santo é muito forte… De resto, trabalhas no Hospital de Santo Espírito! E o estádio onde treinas chama-se João Paulo II… sentes-te mais perto de Deus na Terceira?

Nunca tinha pensado nessas Deuscidências! A verdade é que nunca me senti tão perto de Deus como me sinto agora. Mesmo que não vá tão frequentemente à igreja como cheguei a ir, também porque a dada altura começou a incomodar-me, cada vez que lá ia, ver que havia muitas pessoas a cochichar, ou a olhar de alto a baixo… Mas continuo a gostar de entrar em igrejas, sobretudo quando ninguém me conhece! [risos] Eu acho que Deus está em todo lado, e tanto me escuta se eu estiver na casa d’Ele como na minha. Na Terceira, realmente é muito clara a presença de Deus, quer nas pessoas, no seu culto ao Divino Espírito Santo, na forma como celebram e como mantiveram sempre a esperança e a alegria apesar dos maus momentos que já atravessaram – nomeadamente com o grande sismo de 1980 – quer na natureza maravilhosa que nos rodeia, que é também um dos sinais mais fortes dessa presença.

Estudar Medicina nunca te fez pôr em causa a tua fé?

Não… Acho que não há nenhuma incompatibilidade entre a medicina, ou a ciência, e a fé em Deus. É claro que tive, e tenho, muitos colegas agnósticos e ateus… mas não há problema nenhum nisso, nem gosto de discutir isso. O próprio Deus permite que cada um faça essa escolha, não é?… Para dizer a verdade, a minha fé até acabou por sair reforçada deste meu último ano do curso, porque Deus colocou mais uma pessoa no meu caminho e a quem estou muito grata, que foi um amigo e colega de escola da minha mãe que é professor de português e padre. É engraçado, porque quando a minha mãe estava a fazer o estágio dela como professora de História, ele ajudou-a a preparar-se para um exame, e agora – muitos anos depois – ajudou-me a mim, a rever a minha tese final.

E ajudou-te sobretudo na fé…

Isso mesmo… É um padre franciscano e a maneira de estar dos franciscanos faz-me lembrar a de Jesus… desprovidos de bens materiais, mas riquíssimos em valores morais. E ele também chegou a praticar atletismo, correu maratonas… Acho que por isso criámos uma ligação ainda mais especial. Tivemos algumas reuniões para eu lhe apresentar a tese e treinar a defesa, e eu digo que aquelas reuniões mais pareciam confissões. [Risos] Cheguei a partilhar com ele que às vezes me sentia mal por não ser uma católica assim tão “praticante”, por não ir à missa todos os domingos… Uma vez, fui-me confessar a outro padre que me disse mesmo: “Tu tens de ir à missa todos os domingos, não há desculpas! Não sabes que o domingo é o dia de Deus? Não podes falhar!”. Senti-me tão mal depois daquilo… Mas este padre amigo da minha mãe trouxe-me de volta a parte boa da Igreja Católica. Disse-me que era tão importante e tão válida a minha oração espontânea como a que eu fizesse na missa. E lembrou-me que Deus me ama, independentemente daquilo que eu faça. Mas que eu também tenho de me amar. Mais uma vez, foi a pessoa certa no momento certo…

Sempre quiseste ser médica?

Sempre pensei que não podia ser “só” atleta. Sempre me fascinou a ideia de curar pessoas, e escolhi Medicina por ser tão abrangente… Cheguei a pensar em Fisioterapia, em Ciências Farmacêuticas… Mas optei pela Medicina por ter um pouco de tudo isso. E encantava-me a ideia de poder vir a ser aquela médica da aldeia, para ajudar os outros. Agora que estou no meu primeiro ano como médica, confesso que tenho muitas dúvidas na minha cabeça, sobre qual a especialidade a seguir e quais os próximos passos a dar. Estou sobretudo a tentar aproveitar a experiência e aprender o máximo possível.

E concentrada nos Jogos Olímpicos!

Sim, e no hospital foram incríveis, têm-me apoiado muito. Nem todos sabem que aquela médica alta também é atleta de alto rendimento, mas os meus colegas mais próximos sabem, claro, e até me ofereceram um fio com o símbolo do Espírito Santo e uma pedrinha de basalto, que é uma rocha vulcânica predominante nos Açores. Vou usá-lo durante os Jogos, juntamente com o fio com a cruz de Cristo, que já costumava usar… e, já agora, também levo uma pulseira que comprei agora em Fátima!

Fizeste questão de ir ao Santuário ainda antes de partir para Paris?

Sim, mas não foi para cumprir nenhuma promessa, nem para pedir uma medalha… Se calhar, devia ter pedido! [Risos] Fui para agradecer, lá está, por Deus ser tão bom, por mais esta oportunidade de ir aos Jogos, por todo o processo que me trouxe até aqui. Vou a Fátima pelo menos uma vez por ano, a pé a partir de minha casa – uma distância de vinte e poucos quilómetros — sempre para agradecer. É claro que gostava muito de ir à final [onde chegou e ficou em 9.º lugar]… trabalhei para isso e vou fazer por isso, mas Deus é que sabe o que tem reservado para mim. E eu aceito o que vier. E, já agora, mostro-te outra coisa [aponta a câmara para a perna, no exato lugar onde a fraturou em 2016]. Fiz esta tatuagem em novembro, e nessa altura também chorei muito, não de dor, mas por recordar o caminho até aqui: é uma cruz, e se reparares bem tem umas folhas de oliveira a sair dela… que simbolizam a paz e a ressurreição. Não é preciso dizer mais nada, pois não?