Minutos antes do jogo começar, depois de ter cumprimentado cotovelo com cotovelo Julian Nagelsmann, treinador do RB Leipzig, José Mourinho dirigiu-se para uma zona de entrevista, ali perto do túnel e, logo na primeira frase, colocou tudo aquilo que podia dizer: “não temos nada a perder”.

O Tottenham chega a esta segunda-mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, uma das três partidas com adeptos nos estádios, com uma lista grande de lesionados (Bergwijn, Ben Davies, Harry Kane, Sissoko, Son Heung-Min), em oitavo lugar na Premier League, a 41 pontos do primeiro classificado, tantos quantos conseguiu amealhar na liga até ao momento e eliminado da FA Cup, a Taça de Inglaterra, pelo Norwich, no início deste mês.

O atual momento dos Spurs, finalistas vencidos na última edição da Liga dos Campeões, é caótico e por isso, Mourinho colocou todas as esperanças no surgimento de um momento glorioso na anarquia, da vitória e da reviravolta que nunca conseguiu na fase a eliminar na Champions (os londrinos perderam a primeira-mão em casa por 0-1).

Há quem diga que não há nada mais perigoso do que um homem sem nada a perder, mas, por outro lado, talvez não exista nada menos perigoso do que 11 homens sem nada a perder. Ou talvez estejamos a olhar para o lado errado da barricada e a solução esteja na equipa que tudo tem a ganhar.

Os alemães do Leipzig, que nunca tinham chegado a esta fase da maior competição de clubes da Europa - podemos dizer do mundo, é unânime, não é? -, chegavam ao jogo de hoje em vantagem, com um futebol bem trabalhado e um plantel largo para explorar todas as debilidades dos londrinos.

A falta de garra e desorientação dos ingleses ficou patente logo aos 10 minutos quando Timo Werner teve tempo para rematar, ver a bola ser-lhe devolvida depois de ter ressaltado em Eric Dier, olhar, deixar o esférico à entrada da área em boa posição e Sabitzer com um remate forte e rasteiro ter inaugurado um marcador, num golo em que Hugo Lloris fica mal na fotografia ao deixar a bola bater-lhe na mão sem a conseguir desviar.

Nove minutos depois, Timo Werner fazia abanar novamente as redes do Tottenham e ainda festejou alguns segundos, até ver o fiscal de linha levantar a bandeira e anular-lhe o golo por fora-de-jogo - evidente nas repetições. Foi no entanto, o mais perto que Werner esteve fazer um golo em casa na Liga dos Campeões, algo que nunca conseguiu, e o melhor que os adeptos dos Spurs tiveram para festejar durante todo o jogo.

Um festejo que, a ter acontecido, se espera que tenha sido curto porque dois minutos depois Sabitzer iria bisar na partida. Laimer lançou Angeliño que se aproveitou de um erro de Aurier para um belo cruzamento a que o capitão de equipa respondeu com um belo golpe de cabeça, antecipando-se a um Tanganga praticamente imóvel. Só não foi um golo esplendoroso porque esbarrou em mais um momento de pulso fraco de Lloris que voltou a não ter capacidade para desviar a bola.

Até ao final da primeira parte Werner obrigou o guarda-redes francês a uma defesa apertada (28’) e Dier esteve pertíssimo de fazer um daqueles autogolos (45’) que são eternizados em compilações do Youtube depois de ter tentado o corte, após Mukiele ter falhado o pontapé de bicicleta, obrigando o seu compatriota que habita entre os postes a uma intervenção rapidíssima, desta vez bem sucedida.

Do Tottenham, em todos os primeiros 45 minutos, regista-se um remate rasteiro, perigoso, de Lo Celso a que Gulácsi respondeu com uma boa defesa e que Upamecano nem deixou que se tornasse um pesadelo ao cortar rapidamente a bola da área.

Com os pupilos de José Mourinho a precisarem de três golos no segundo tempo para continuarem em frente na liga milionária, depois de uma primeira parte vazia em ideias, antecipava-se um final de jogo ao ritmo que Nagelsmann, treinador que curiosamente no início da carreira foi apelidado como Baby Mourinho, quis. E Nagelsmann quis ligar o Cruise Control e, em gestão, deixar o seu jogo levar o seu rumo natural.

Aos 74 minutos registou-se um remate de Alli à figura de Gulácsi como momento maior da equipa do Tottenham e isso diz-nos muito sobre a prestação dos londrinos e da capacidade da equipa de Mourinho de enfrentar as adversidades. Como se o pesadelo desta época não fosse já grande o suficiente, Forsberg, depois de 30 segundos em campo, fez o 3-0. Angeliño cruzou, Dier conseguiu o desvio, Adams apanhou a bola, rematou contra Sessegnon e Forsberg viu o esférico ali perdido no radar dos seus pés, não se fazendo rogado.

Numa equipa extremamente condicionada por lesões, que chegava à Alemanha com um registo de quatro derrotas e um empate nos últimos cinco jogos, a superação não tornou a anarquia em criação. O Tottenham, sem ideias, sem capacidade de fazer chegar a bola à baliza adversária, pouco agressivo e muito desorganizado defensivamente, caiu no seu próprio poço e passa a ter de assumir um objetivo para poder começar a cumprir outro: assegurar um lugar nas competições europeias na próxima temporada para começar, o mais cedo possível, a pensar num plantel com soluções e à medida do jogo de Mourinho.

Quanto ao Leipzig, demonstrou que o melhor plano é realmente ter um plano. A saída em transição organizada, com vários homens envolvidos em todas as jogadas e com o coletivo a sobrepor-se à dependência da equipa em relação aos talentos individuais fazem com que a vitória sobre os Spurs pareça natural.

Os alemães fizeram história e estão nos quartos-de-final da Liga dos Campeões e são uma das equipas a seguir não só pelo que fizeram nesta eliminatória, mas pelo que construíram nos últimos anos, desde uma equipa altamente competitiva em que Werner, a estrela maior, pode tirar férias que a equipa é capaz de encontrar soluções em mobilidade num futebol assente nas ligações e futebol entrelinhas de Schick e Laimer, da profundidade de Angeliño, a uma ideia de jogo criada pelo treinador mais jovem a chegar a esta fase da competição, superando Didier Deschamps, ao comando do Mónaco em 2004/05, o ano em que o FC Porto se sagrou campeão europeu.

Mourinho não conseguiu contrariar a história e consumar a reviravolta, já Nagelsmann parece estar só a começar.