“Nunca gostei da palavra retirada (reforma)”, escreveu, pela própria mão, Serena Willians, na edição de agosto da Revista Vogue.
Naquelas páginas, entre uma produção fotográfica digna de uma modelo, a tenista norte-americana fez o anúncio do último tour cuja estação final está reservada para o exato local de partida de uma icónica carreira de 23 anos, palco onde, em 1999, aos 17 anos, a poucas semanas de atingir a maioridade, venceu o primeiro de 23 Grand Slams, frente a Martina Hingis.
Às 23h00 (7h00 em Nova Iorque), Serena, 40 anos, a dias de virar mais uma página da idade (completa 41 a 26 de setembro), ícone desportivo e cultural cuja influência extravasa os courts, 73 vitórias em singulares e quase 100 milhões de euros em prémios, pisará o Arthur Ashe Stadium, em Flushing Meadows, Nova Iorque, na primeira ronda do US Open. Esta será, muito provavelmente, a última aparição num evento do Grand Slam, em singulares. Do outro lado da rede estará a montenegrina Danka Kovinic (80.ª ranking WTA), adversária com quem nunca bateu bolas.
O US Open marcará o fim de uma história de uma miúda negra que gostava de jogar ténis, embora não tivesse muito jeito nos primeiros anos. A história iniciada em Compton, Califórnia, EUA, começou por ser escrita ao lado de Venus (42), uma das quatro irmãs mais velhas, a quem foram concedidas mais oportunidades e na qual estavam depositadas as “fichas”, conforme ilustrado no filme "King Richard".
As outras coisas importantes para além do ténis: a filha e a criação de unicórnios
Muito mais do que uma carreira desportiva no ténis feminino, cheira ao fim de uma era. Envolveu polémicas com o árbitro Carlos Ramos, questões humanitárias, defesa das minorias e amizades com elites.
“É mais difícil do que poderia imaginar. Não quero que seja o fim, mas ao mesmo tempo estou pronta para o que aí vem”, acrescentou à Vogue.
E o que aí vem, já anda com ela de braço dado há uma década. “Há outras coisas que são importantes para mim”, sublinhou, referindo-se à Serena Ventures, capital de risco criada há quase 10 anos e à filha Olympia, de cinco, até agora única na família, mas que, a pedido desta e pela vontade da mãe e do pai, Alexis Ohanian — empreendedor da área tecnológica e cofundador da rede social Reddit —, será alargada em breve.
A maternidade tocou-lhe. A filha, recordou, foi transportada no ventre (estava grávida de dois meses) quando venceu o Open da Austrália, em 2017. Curiosamente, o último grande triunfo. E desde o seu nascimento nunca deixou de olhá-la por 24 horas que fosse.
Os olhos estão igualmente postos na Serena Ventures. Responsável por 111 milhões de dólares levantados este ano, foi o berço de 16 unicórnios nascidos a partir das dezenas de startups que lhe passaram pelas mãos. MasterClass, Tonal e Impossible Foods, só para citar algumas das empresas apoiadas num portefolio no qual 53% são empresas fundadas por mão feminina, 47% por empreendedores de cor e 76% são fundadores oriundos de minorias.
Os recordes na carreira e os duelos com a irmã que a transformou num GOAT
Emocional – o choro faz parte da essência desta guerreira feroz – ao contrário da gélida Venus, a sombra que a transformou num "GOAT" ["Greatest Of All Time", "Melhor de Sempre" em português], Serena Williams não se deixou nunca abater com o recorde que não conseguiu bater. Ultrapassou a contagem de Grand Slams de Martina Hingis (5), Monica Seles (9), Billie Jean King (12), mas está a um de Margaret Court (24 títulos), alcançados antes da “Era Open”, iniciada em 1968.
33 finais de Grand Slam jogadas e presente pela octogésima vez no quadro dos quatro mais importantes torneios do mundo, é hexacampeã do US Open – em 2020, na última aparição, chegou às meias-finais —, sete vezes vencedora no Open da Austrália, o mesmo número em Wimbledon e três em Roland Garros. E, se chegar à final no outro lado do Atlântico, poderá igualar o recorde de Chris Evert (34).
Serena e Venus foram parceiras de uma vida e adversárias de outra. Entre 2001 e 2017, as irmãs Williams disputaram entre elas nove finais de Grand Slam. Tudo começou numa vitória de Venus, no US Open, em 2001 e terminou na Austrália, em 2017, com vitória de Serena. Pelo meio, a irmã mais nova leva clara vantagem nos Grand Slams disputados entre a família: 7-2.
Na Era Open, foram as únicas duas mulheres a disputarem consecutivamente o jogo decisivo, da final de Roland Garros 2002 ao Australian Open 2003. Cinco jogos, cinco vitórias de Serena.
Em finais alargadas para fora do clube de elite do ténis mundial, o resultado sobe para 9-3 e em encontros, 18-12, favorável a quem aprendeu com as derrotas da irmã mais velha.
Profissional desde 1995, será ao lado da irmã Venus, com quem ganhou 14 Grand Slams de pares e três medalhas de ouro olímpicas (uma em singulares), que Serena formará dupla, mais uma vez, talvez a última, na competição de pares no torneio norte-americano. Acontecerá após atribuição de wild-card (convite). Será a primeira vez, desde 2018, que as irmãs Williams voltam a reunir a parceria de sucesso.
A nível individual, o período de domínio de Serena Williams, atual 413 do ranking mundial, aconteceu entre 2012 e 2016 quando ganhou 8 de 16 aparições em singulares em Grand Slam, acrescido de mais duas finais.
Desde o Open da Austrália de 2017, perdeu 4 finais, anos em que jogou enquanto amamentava e durante o período de depressão pós-parto.
Sem jeito para as despedidas, escolheu a família
Desde que anunciou a retirada, Williams, treinada por Eric Hechtman, licenciado em Ciência Política, perdeu todos os encontros disputados, em Toronto (frente a Belinda Bencic), no Open do Canadá e em Cincinnati, diante a campeã do US Open, Emma Raducanu.
“Sou terrível nas despedidas. Mas, adeus Toronto”, disse emocionada no torneio canadiano onde ganhou por três ocasiões, em 2001, 2011 e 2013.
Sabe que não pode ser mais mãe enquanto joga. Não quer estar grávida e ter outro filho criado no court. De pés bem assentes na terra, está ciente que ou compete ou tem os dois pés fora do retângulo. Por isso assumiu. “Nestes dias, se tiver de escolher entre construir curriculum no ténis ou uma família, escolho a última”.
Escolheu. “Sentirei falta dessa versão de mim, aquela rapariga que jogou ténis. E vou sentir a vossa falta”, escreveu na Vogue, na “carta de despedida”.
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