Zinedine Zidane foi o primeiro a perceber o estado de esgotamento a que estava a chegar o Real Madrid quando, na conferência de imprensa da sua inesperada demissão, disse: “existem etapas que vivemos intensamente, mas há que saber quando parar. Estou a fazê-lo pelo bem da equipa. Comigo seria complicado ganhar na época que aí vem. A Liga foi difícil esta época [o Real foi terceiro]”.

A verdade é que o sucesso europeu do clube madrileno encobria o que se passava à volta. E é normal que um adepto que celebra em cinco anos quatro conquistas da Liga dos Campeões se sinta anestesiado quando confrontado com um palmarés interno pobre, longe de parecer pertencer a uma equipa que ganhou quatro ‘Champions’ em cinco anos. Em Espanha, durante essa meia década, o Real Madrid apenas conquistou uma La Liga, uma Supertaça espanhola e uma Taça do Rei, sendo que os dois primeiros títulos ocorreram durante o reinado de Zidane.

Despojado do treinador francês e da maior estrela que partira para Turim, os merengues entraram em colapso. Sem uma contratação sonante para colmatar a saída de Cristiano Ronaldo — Mariano esteve longe de preencher o vazio do ataque e Vinicius mostrou talento, mas ainda precisa de crescer na Europa do futebol —, a falta de um plano a longo prazo tornou-se evidente. Sem uma super estrela a guiar a equipa, sem um treinador capaz de agregar todo balneário e a levar uma equipa a elevados níveis anímicos para dentro de campo, sem soluções de qualidade no banco, sem ideias, o Real Madrid colapsou.

Na última semana, desde o último dia do mês de fevereiro até ao dia cinco de março, os merengues foram derrotados em casa por 0-3 pelo FC Barcelona e eliminados da Taça do Rei, derrotados em casa, uma vez mais, pelo Barça (0-1) em jogo a contar para o campeonato que os deixou a 12 pontos da liderança e, por último, caíram nos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, em casa, diante do AFC Ajax depois de uma pesada derrota por 1-4.

Durante 270 minutos, o Santiago Bernabéu transformou-se.

O que antes era a casa de um dos maiores clubes do mundo, onde os adeptos guiavam a equipa à vitória, até à reviravolta de uma época que parecia assombrada, tornou-se num cemitério onde a afición estava apenas de pé, impávida a assistir às tragédias sucessivas. No final do encontro da Champions, Dani Carvajal resumiu a semana: “está a ser uma temporada de merda”. Se a linguagem é a de quem passou os últimos 90 minutos a lutar e saiu derrotado, e portanto mais sensível, menos pensada, olhe-se para a capa do diário desportivo espanhol Marca para uma imagem e título igualmente impactantes, mas mais racionalizados: “aqui jaz uma equipa que fez história”.

É impossível não olhar para a imagem do placar a assinalar a goleada holandesa em pleno Santiago Bernabéu, ‘engolir’ o título e não fazer quase de imediato uma viagem às conquistas de Ronaldo e companhia. A história está ali tão presente quanto distante. Uma equipa que enverga ao peito o emblema de melhor clube do mundo, título que renovou no final do ano passado, que tem Luka Modric, o melhor jogador do mundo, que mantém a espinha dorsal de uma formação de sucesso, foi ontem destroçada por uma nova e excitante geração de ouro do Ajax, o clube que deu ao mundo do futebol jogadores como Johan Cruijff, Frank Rijkaard e Marco van Basten.

O contraste era brutal. A velocidade, vivacidade e criatividade holandesa eram antagónicas a um Real Madrid lento e trapalhão na construção, errático no meio-campo e sem ideias na zona de ataque. Na frente, o único perigo vinha de Karim Benzema, um homem que teve junto da imprensa, há poucos dias, uma intervenção que também pode ser considerada perigosa ao dizer que “antes jogava em função de Cristiano Ronaldo, agora sou líder do ataque”. Neste momento, numa equipa que parte em transição com as linhas de jogo demasiado afastadas, e em que o momento em que o francês tem a bola nos pés a ajuda está distante, Benzema joga apenas em função de si. E se por esta altura o artigo pode parecer que um jogador sozinho faz uma equipa, ficando patente o antes e depois de CR7, desmistifique-se essa ideia. Um grande talento pode ajudar a exponenciar a qualidade de jogo e quantidade de golos marcados, pode levar a equipa para outro nível completamente distante, mas nunca o pode fazer sozinho. Cristiano Ronaldo não o fez sem Wayne Rooney no Manchester United, não o fez sem Benzema no Real Madrid e não o fará sem Dybala na Juventus. Benzema ídem aspas.

O Real Madrid parece estar a viver uma crise de amor próprio. Não amou Cristiano Ronaldo o suficiente para fazer crer o português que este era o clube onde penduraria as botas, não se amou no início da época quando continuou a procurar insistentemente um guarda-redes para substituir Keylor Navas, o titular indiscutível no tricampeonato europeu. Quando conseguiu encontrar Thibaut Courtois como substituto, o costa-riquenho foi atirado para o banco sem dó nem piedade. A saída de um astro, problemas de balneário que vão para além do drama de Navas e que chegam a nomes como o de Marcelo, um dos jogadores mais queridos dos adeptos, e a ausência de um treinador, capaz de bater com a mão na mesa e encerrar o assunto, cumprem a profecia de Zidane.

“A história deste clube é grande, ‘apertamos’ sempre os jogadores e pedimos-lhes mais. Mas chega um momento em que… o que é que lhes posso pedir mais, com aquilo que já fizeram comigo? Por isso, creio que necessitam de outro discurso”, disse o treinador francês na hora da despedida. Nem Lopetegui nem Solari conseguiram trazer esse discurso, nem Florentino Pérez conseguiu facilitar esse discurso com a vinda de contratações sonantes, sendo que nomes como o de Neymar, Hazard ou Mbappé nunca saíram das capas dos jornais para a realidade.

A realidade é a de um clube histórico que caiu de uma maneira irresponsável. Passou de um pontapé de bicicleta em Turim, ovacionado pelo mundo, para um momento em que Sergio Ramos, em Amesterdão, após Asensio ter marcado já perto dos 90 minutos o golo que garantiria a vitória madrilena no encontro a primeira-mão, leva um amarelo que a UEFA considerou propositado para falhar o jogo da segunda-mão e assim ter o registo limpo para os quartos-de-final da competição. Nesta terça-feira, o capitão da equipa, aquele de quem se espera a liderança para a salvação de um mau momento, fez falta dentro de campo e assistiu ao desaire do seu clube num camarote VIP, personalizado, enquanto gravava imagens para um documentário sobre a sua carreira que irá estrear na Amazon.

A postura do capitão pode ser, por dedução, a imagem que fica da equipa, por mais exceções que existam. Solari não conseguiu inverter isto e foi sob o seu comando que o Real Madrid sofreu as mais pesadas derrotas em competições europeias: 3-0 fora, no terreno do CSKA, e 1-4 no Bernabéu diante do Ajax. Há nove anos que os merengues não caíam tão cedo na Champions.

“Por que não se pode ganhar a um clube rico? Nunca vi um saco de dinheiro marcar golos”, disse Cruijff há uns anos. A frase resume o espírito da equipa holandesa que disputou o jogo em Madrid e resume a exibição do Real Madrid, caricaturado por sacos de dinheiro, impávidos no momento de produzir bom futebol. Os próximos tempos terão de ser necessariamente de reflexão, mas até pensar se tornará difícil perante um calvário de três meses em que um dos plantéis históricos do futebol moderno não irá lutar por nada até ao final da temporada.