Os rumores sobre a morte do futebol foram manifestamente exagerados. É certo que discutimos esta ideia de morte ano após ano, a frase vinda quase sempre da boca dos mais românticos, dos puristas, dos eternos candidatos a gestores de bancada. E o futebol, negócio e religião, entretenimento e identidade, teima em não morrer. Nem sequer a pandemia o conseguiu matar. Mesmo que não nos estádios, e mesmo após uma paragem forçada de alguns meses, o fã comum pôde celebrar golos, vitórias, troféus. E o que é válido para o fã, é válido para quem controla os clubes. Por arrasto, é válido para quem controla o dinheiro.

A lógica ditava, ou deveria ditar, que os grandes clubes gastariam muito menos dinheiro nesta janela de transferências devido ao impacto provocado pela Covid-19, que afetou todos sem distinção de classe. No entanto, temos visto ao longo das últimas semanas que não é bem assim: os clubes continuam e continuarão a gastar muitos milhões na ânsia de contratar a próxima grande estrela, o próximo grande jogador, o próximo grande homem que os deixará mais próximos dos títulos. Mesmo que os clubes não estejam a gastar de uma forma tão abusiva quanto antes, os valores que se têm registado não vão de encontro à poupança que se apregoava há escassos meses.

Isto porque o futebol pode ser um negócio, mas não é apenas um negócio. O futebol é, muito provavelmente, a única grande economia que se rege por uma certa irracionalidade. Manter a folha de despesas longe do vermelho e maximizar os lucros não são (as únicas) prioridades. Manter equipas que conquistem taças, e consequentemente conquistem também adetos e prestígio, está acima de qualquer buraco financeiro. Ou, como Simon Kuper e Stefan Szymanski fazer notar em “Soccernomics”: «Quando os empresários tentam gerir um clube de futebol como um negócio, não é apenas o futebol quem sofre, mas também o negócio”.

Claro que isto não quer dizer que os clubes tenham entrado numa espiral despesista, como alcoólicos num casino. No início de setembro, o presidente da Associação de Clubes Europeus, Andrea Agnelli, previa que os gastos dos clubes neste mercado diminuíssem entre 20% a 30%, já que as receitas diminuíram igualmente. A UEFA pode ter concluído as suas provas no campo, mas só o facto de ter optado por eliminatórias a uma só mão provocou um rombo enorme no que às transmissões televisivas disse respeito: foi obrigada a devolver 575 milhões de euros às emissoras, “dinheiro que não vai ser distribuído pelos clubes”, avançou o italiano.

Uma quebra que, em julho, esta mesma Associação havia previsto, com um relatório que apontava para perdas na ordem dos 4 mil milhões de euros em receitas. Ainda assim, conforme salientou Gabrielle Marcoti, da ESPN, estes são valores que mais se assemelham – ainda que possam impressionar à primeira vista – a uma gota no oceano. Tudo somado, a Associação previa receitas de 45,1 mil milhões de euros para a época 2020/21. O número é agora de 41,1 mil milhões. Um impacto que poderá, naturalmente, crescer, já que ainda não há previsões para o regresso do público aos estádios, e já que o vírus ainda anda à solta e a provocar cada vez mais estragos.

Gastar para reinar

Agnelli pode, e deve, sentir-se receoso. Mas a sua Juventus, clube ao qual também preside, não deixou de gastar – e de ganhar, figurando em duas das transferências mais caras deste defeso: contratou Arthur Melo ao Barcelona por 72 milhões de euros (mais 10 milhões em variáveis), e vendeu Miralem Pjanić ao clube catalão por 60 milhões de euros (mais 5 milhões em variáveis). Pelo meio, ainda foi buscar o norte-americano Weston McKennie ao Schalke 04, por empréstimo (pagando 4,5 milhões de euros pelo mesmo, e ficando com uma opção de compra no valor de 18,5 milhões de euros mais 7 milhões em variáveis), e o espanhol Álvaro Morata ao Atlético de Madrid, nos mesmos moldes (10 milhões de euros para já, 45 milhões caso avance para a aquisição definitiva).

Tudo em nome do sonho de conquistar a sua primeira Liga dos Campeões desde 1996, com Cristiano Ronaldo no plantel... E já a pensar na próxima época: Rolando Mandragora também foi um dos grandes anúncios feitos pela Juventus, tendo sido contratado à Udinese por um valor a rondar os 10 milhões de euros, mantendo-se para já nesse mesmo clube, a título de empréstimo. Assim como Federico Chiesa, que se juntará imediatamente ao plantel, por empréstimo da Fiorentina e com cláusula de compra obrigatória, no valor de 40 milhões de euros (mais 10 milhões gastos agora).

Uma análise rápida pelos gastos dos clubes da Série A italiana demonstram que este é um mercado onde a contenção é a palavra de ordem, com os empréstimos e as contratações a custo zero a dominar, sobretudo entre os clubes de menor dimensão. Os grandes, esses, ainda se permitem gastar algum dinheiro – se bem que apenas no estritamente necessário. A Juventus encabeça a lista (100,2 milhões de euros em compras), seguindo-se a Internazionale, vulgo Inter de Milão (97 milhões de euros).

A aquisição mais sonante da Inter envolveu o médio marroquino Achraf Hakimi, contratado ao Real Madrid por 40 milhões de euros, 10 milhões menos que o valor que o PSG gastou para obter Mauro Icardi. A grande surpresa do mercado também aconteceu em Milão, mas do lado do AC Milan – que gostou tanto do extremo norueguês Jens Petter Hauge no jogo contra o Bodø/Glimt, a contar para a Liga Europa (vitória dos italianos por 3-2), que foi a correr buscá-lo por “escassos” 5 milhões de euros. Hauge passará a ter como companheiro de equipa não só o inigualável Zlatan, mas também Diogo Dalot, emprestado pelo Manchester United aos rossoneri.

Na última década, o campeonato italiano transformou-se numa espécie de “King of Fighters”, com a Juventus a fazer de Rugal e a levar todos os outros a um deprimente game over: a equipa de Turim já soma nove títulos consecutivos. Nem isso satisfez a Juve, que despediu o seu treinador após uma má prestação na Liga dos Campeões, contratando um homem que conhece bem a “casa” e o significado de “classe”, Andrea Pirlo. Os adversários mais diretos dos transalpinos passaram o mercado à procura de inserir mais moedas na máquina, mas só o Nápoles encontrou uma mão cheia de trocos, gastando-os no nigeriano Osimhen (contratado ao Lille por 70 milhões de euros).

A importância de (não) ser galáctico

No país vizinho, o Real, à procura do bicampeonato, apostou na estabilidade. O clube que todos os anos anunciava uma contratação sonante e multimilionária preferiu olhar para dentro, estabilizar as contas. O regresso do prodígio norueguês Martin Ödegaard, emprestado na temporada passada à Real Sociedad, é exemplo disso. Ödegaard constitui porventura o mais interessante de entre os novos nomes de um plantel ao qual o treinador, Zinedine Zidane, nada quer acrescentar. «Estou feliz com a equipa que tenho», garantiu, após uma vitória no terreno do Bétis.

Será este o ano da afirmação de um jogador que o Real Madrid contratou quando aquele tinha apenas 15 anos? Os adeptos do clube espanhol acreditam que sim; nas redes sociais já há quem diga que o norueguês tem que ser titular indiscutível. Quem não o poderá vir a ser é Luca Zidane. O guarda-redes, filho do treinador francês, fez toda a sua formação no Real e irá mudar-se para o “vizinho” Rayo Vallecano, da segunda divisão.

Talvez seja essa a maior surpresa do mercado de transferências de 2020: os “galácticos” não quererem mais estrelas na sua equipa. Abaixo disso, só mesmo uma saída anunciada ainda antes de existir pandemia: a do português Trincão, do Sporting de Braga para o Barcelona por 30 milhões de euros. Após o desastre na Liga dos Campeões, com uma derrota frente ao Bayern de Munique que entrará para os livros de história, e após a novela em torno da saída de Lionel Messi, que acabou por ficar no clube depois de anunciar o seu desejo de sair, os catalães estão à procura de renascer, agora com Ronald Koeman ao leme da equipa.

O Barcelona gastou 124 milhões de euros nesta janela de transferências, equilibrando essas perdas com os 124,5 milhões que fizeram ao vender jogadores como o supracitado Arthur e o lateral Nélson Semedo, que será mais um a engrossar as fileiras do FC Portugal, perdão, Wolverhampton Wanderers na Premier League. E não descurou a sua filosofia, voltando a “pescar” no Ajax uma grande promessa: o lateral Sergiño Dest, contratado por 21 milhões de euros. Até final, ainda houve tempo para duas pequenas novelas: a não-transferência de Memphis Depay, um pedido de Koeman, e a vinda de Todibo para o Benfica, horas depois de ter sido associado ao FC Porto.

Elixir da juventude

Por terras alemãs, o Bayern de Munique soma e segue. Na época transacta, juntou à sua oitava Bundesliga consecutiva o título europeu que lhe faltava desde 2013. Uma das suas principais estrelas, o médio brasileiro Philippe Coutinho, já sabia que o seu destino era o de sair da Bavária que o acarinhou e voltar à Catalunha que o quer acarinhar – esteve emprestado pelo Barcelona e faz agora parte do plantel de Ronald Koeman. Thiago Alcântara também saiu, mas para a Velha Albion: foi contratado pelo Liverpool por 22 milhões de euros. Perisic e Odriozola também regressaram às casas mãe (Inter de Milão e Real Madrid, respetivamente).

Que fez o Bayern? Foi buscar Leroy Sané ao Manchester City por 45 milhões de euros, a única contratação sonante que fez neste mercado. Se isso bastará para revalidar os troféus que conquistou, só o tempo o dirá. Para já somou mais um: a Supertaça Alemã, conquistada frente aos rivais do Borussia Dortmund. E, no último dia de mercado, ainda anunciou três surpresas: Choupo-Moting, avançado que na última época jogou no PSG e que foi contratado a custo zero, Douglas Costa, que regressou a um clube que bem conhece por empréstimo da Juventus, e Bouna Sarr, lateral-direito que pertencia ao Olympique de Marselha.

Já que se falou em Borussia, eterno candidato ao título, só Emre Can (contratado à Juventus por 25 milhões de euros) e Thomas Meunier (repescado ao PSG, a custo zero) se afirmam acima dos restantes. O modelo alemão persiste: gastar pouco e procurar ganhar muito. Até porque é um modelo que parece estar a resultar para o Red Bull Leipzig, que não há muito estava na quinta divisão e hoje em dia luta pela Champions.

Para além dos jovens que promoveu da formação (Schreiber, Borkowski, Novoa, Bias), o Leipzig acrescentou ao plantel o talento do sul-coreano Hee-chan Kwang (que estava nos “irmãos” Red Bull Salzburgo) e a garra de Alexander Sörloth, norueguês cujo passe pertencia ao Crystal Palace, e que esteve emprestado ao Trabzonspor, tornando-se no melhor marcador da liga turca na época transacta. E fê-lo por valores que ficaram bastante abaixo daquilo que ganhou com a ida de Timo Werner para o Chelsea: 53 milhões de euros. Ainda para a frente de ataque, o Leipzig garantiu o empréstimo de um sobrenome com peso histórico: Kluivert, primeiro nome Justin, filho do grande Patrick.

Os azuis de londres foram, aliás, dos melhores parceiros dos alemães neste defeso, já que Kai Havertz também trocou as cores do Bayer Leverkusen pelas do Chelsea – naquela que foi quiçá a transferência mais surpreendente do mercado, pelos valores envolvidos: 80 milhões de euros pelo jovem de 21 anos, “carrasco” do FC Porto na Liga Europa.

Tudo somado, a conclusão é esta: mesmo com crise, os grandes continuam a gastar. De outra forma não seriam grandes, não é?...