Vasco Uva é o mais internacional jogador português de râguebi. 101 jogos com a camisola dos “Lobos”. Após 20 anos de dedicação à modalidade cumpre a última época competitiva pelo Grupo Desportivo de Direito.
Um Mundial (2007, em França), títulos e membro dos Rugby Centurions (clube de elite que reúne jogadores com mais de 100 internacionalizações pelos respetivos países) marcam a sua passagem pelo desporto da bola oval.
Já escreveu um livro (“Hoje é por Portugal”, sobre a participação da seleção nacional no mundial de 2007), tem filhos, plantou uma árvore e, reconhece, ainda lhe falta fazer muita coisa. Uma delas é uma viagem à Nova Zelândia com os filhos para ver o British Lions em 2029. A outra é tentar continuar a ajudar o râguebi português a estar no sítio onde merece.
Em conversa com o SAPO24 recorda a lesão sofrida em 2007 que o “atirou” para fora de uma carreira profissional e, não em jeito de despedida da modalidade, atente-se, fala dos sacrifícios que valeram a pena e dos amigos que ganhou. Nunca olhou muito para aquilo de que estava a abdicar, mas sim para o que estava a ganhar. E porque por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher não se esquece de referir e agradecer a importância e o apoio familiar que sempre recebeu. Tal como no jogo, a ajuda tem de estar sempre lá. E esteve.
Diz que uma boa placagem é tão ou mais importante que um ensaio.
Antes dos jogos sempre gostou de manter a mesma rotina. Antigo capitão dos “Lobos” e do Direito cita Jake White, treinador campeão do mundo com a África do Sul em 2007, para resumir as palestras dadas entre quatro paredes antes de cada partida: “Nunca devemos subestimar o poder do coração no râguebi”. Puxando ao sentimento. Porque os homens também choram.
Não começou cedo no râguebi e partiu o nariz logo no primeiro treino. Não desistiu e chegou às 100 internacionalizações por Portugal. É uma história bonita ou uma vida de sacrifícios que valeu a pena?
É uma mistura das duas. Para a história ser bonita foram feitos alguns sacrifícios. Mas todos eles valeram a pena.
Abraçou o râguebi porque não tinha jeito para outros desportos? Quando tocou pela primeira vez numa bola oval pensava que algum dia ia atingir a marca de 100 internacionalizações? Quando é que sentiu, se é que alguma vez sentiu, que podia ficar na história da modalidade?
Antes de jogar râguebi tentei vários desportos, mas nenhum me marcou tanto como o râguebi. No primeiro treino não sabia que ia chegar tão longe, mas percebi que me identificava muito com o desporto e que valia a pena trabalhar para tentar fazer o meu caminho. Também tive sorte e entrei no [Grupo Desportivo] Direito, numa fase muito boa do clube, onde tinha uma equipa fantástica e que queria marcar uma época do râguebi português.
"Abdiquei de algumas coisas, é verdade, mas valeu a pena. Nunca olhei muito para aquilo de que estava a abdicar, mas sim para o que estava a ganhar. Conseguir conciliar vida desportiva, académica, de trabalho e familiar era o que me deixava feliz"
O que foi para si representar os “Lobos”? Sensação de dever cumprido ou um objetivo de vida dedicada a um desporto?
Representar a seleção foi sem dúvida um dos momentos mais importantes da minha vida. Era um objetivo. Para mim a sensação de dever cumprido nunca surgiu porque havia sempre algo mais a alcançar. O objetivo começou por ser fazer a primeira internacionalização, depois fazer dez. Entretanto surgiu a oportunidade do Mundial 2007, a possibilidade de chegar a 2011 depois 2015, ser Rugby Centurion (clube de elite que reúne jogadores com mais de 100 internacionalizações pelos respetivos países). Devemos sempre procurar um objetivo mais alto para atingir.
O râguebi amador permitiu conciliar carreira desportiva com vida pessoal. Jogava, estudava Direito, trabalhava. Compatibilizar essa exigência escolar e profissional com o râguebi não deve ter sido nada fácil... calculo que tenha abdicado de muito para se dedicar à modalidade?
Abdiquei de algumas coisas, é verdade, mas valeu a pena. Nunca olhei muito para aquilo de que estava a abdicar, mas sim para o que estava a ganhar. Conseguir conciliar vida desportiva, académica, de trabalho e familiar era o que me deixava feliz. Para isso contei sempre em primeiro lugar com o apoio total da minha família e depois tive a sorte de conseguir encontrar trabalhos que me permitiram continuar a conciliar.
"A lesão no jogo contra a Itália, no Mundial de 2007, tirou-me a hipótese de jogar pelo Castres Olympique em França com quem já tinha um contrato em perspetiva"
A sua mulher quanto o vê chegar a casa quase sempre “amassado” para não dizer outra coisa, alguma vez lhe disse: “deixa lá isso, ainda para mais, não recebes nada”?
A Sofia foi sempre um apoio fundamental. Sem o qual teria sido impossível ter chegado tão longe. Claro que houve ocasiões em que preferia que tivesse ficado em casa. Mas faz parte…
O seu irmão Gonçalo Uva chegou a ser profissional. Não procurou seguir o caminho ou simplesmente não agarrou a oportunidade. O que é que se passou, exatamente?
A oportunidade chegou e ainda tentei aproveitá-la ao máximo, mas não correu como estava à espera. A lesão no jogo contra a Itália, no Mundial de 2007, tirou-me a hipótese de jogar pelo Castres Olympique em França com quem já tinha um contrato em perspetiva. Só voltei a jogar em dezembro desse ano e, assim que voltei, assinei pelo Montpellier, onde já jogava o meu irmão. Mas em meia época só fiz 6 jogos. No final da época tive oportunidade para assinar por um clube da segunda divisão francesa, mas não quis arriscar ficar mais um ano a jogar pouco e decidi voltar para Portugal.
Está a cumprir a última época nos relvados. Falta disputar as meias-finais do campeonato nacional (e final se a equipa seguir em frente) e depois pendura as botas. Quando no inicio da época disse que era a última temporada, pensou que sairia com a esperança de lutar pelo título nacional? Sair em grande foi a meta?
No Direito foi-me ensinado que se entra sempre na época para ganhar todos os títulos. Esse foi o objetivo nos últimos 20 anos. Por isso, esta época apesar de ser a minha última, não podia ser diferente. No entanto, sabia que ia ser uma época difícil, porque o clube [Direito] tomou uma decisão arriscada no início do ano, de investir parte do dinheiro que normalmente seria gasto na equipa sénior, para construir um segundo campo. Quando o presidente Luís Felipe explicou os motivos, senti que, apesar de difícil, não podíamos deixar de lutar pelos mesmos objetivos de sempre. Sair em grande nunca esteve no pensamento, quero é sair quando ainda me estiver a divertir e ainda me sentir útil. A última imagem que quero ter enquanto jogador tem de ser positiva.
O momento mais alto da carreira foi o Mundial 2007, a braçadeira de capitão dos Lobos, a entrada no clube de elite dos Rugby Centurions ou os títulos conquistados com o Direito. Ou foi a soma disso tudo e mais alguma coisa?
Todos estes momentos foram importantes e inesquecíveis. Mas o Mundial de 2007 está uns furos acima dos outros.
Ao longo destes 20 anos ligados à modalidade, o que mais o marcou?
Os amigos que fiz para a vida. 90% dos meus melhores amigos jogaram ou jogam comigo.
Ao longo da sua carreira de 20 anos, qual o momento que não esquece pela negativa?
A lesão no jogo contra a Itália no Mundial, deixou-me fora do jogo contra a Roménia, que era o jogo onde, à partida, tínhamos mais hipóteses de ganhar. Tive muita pena de não jogar, porque gosto de acreditar que era capaz de ajudar a equipa a cumprir o objetivo. E, como disse, essa lesão tirou-me também a hipótese de jogar pelo Castres Olympique, em França.
Ainda se recorda da estreia com os “Lobos”, em fevereiro de 2003, com um triunfo em Lisboa diante da Geórgia (34-30)?
Como se fosse hoje. Estávamos a fazer um grande jogo e o Tomaz [Morais, selecionador nacional] antes de entrar disse-me: "diverte-te e placa". Foi isso que fiz…
Dizem que os homens não choram, mas no dia da estreia do râguebi português em Mundiais ficou demonstrado o contrário. Foi o quê? Muita coisa junta e misturada - felicidade, a emoção, o sentido de responsabilidade, a simples vontade em jogar, o orgulho de estar ali?
Foi o culminar de quatro anos de trabalho. De muitos treinos, muitos jogos, muitos sacrifícios. Mas não foi a primeira vez que chorámos no Hino [de Portugal]. Para nós, o Hino sempre foi muito importante porque sentimos verdadeiramente que estamos a representar o país. Naquele jogo apenas sentimos um pouco mais, porque foi a primeira vez que sentimos que o país estava todo connosco e a apoiar-nos.
"Quero tentar continuar a ajudar o râguebi português a estar no sítio onde merece e onde sei que pode estar"
O ensaio é o clímax do jogo. Nunca foi jogador de grandes ensaios. Tinha outro papel em campo.
Sempre gostei mais de defender. Uma placagem importante pode valer muito mais que um ensaio.
O seu irmão afirmou numa entrevista que não tem boas mãos. Mas placagens são consigo. Tem ideia de quantos jogadores placou ao longo da carreira? Consegue dizer uma ou duas placagens que tenha feito de que não se esquece?
Confirmo a teoria do meu irmão de que não tenho boas mãos. Mas sempre disse que no râguebi tão importante como as mãos são os ombros. Não faço ideia de quantas placagens fiz, espero que tenham sido muitas... contava as que falhava e isso deixava-me preocupado. No entanto, tenho umas que gosto de recordar. No primeiro jogo pela seleção contra a Geórgia, fiz uma placagem importante que evitou um ensaio georgiano. No jogo contra as Fidji em 2005 fiz uma boa placagem a um jogador que na altura era um dos mais pesados do râguebi mundial.
Já escreveu um livro – “Hoje é por Portugal”, tem filhos, falta plantar uma árvore ou o que é lhe falta fazer?
Também já plantei uma árvore. Mas ainda me falta fazer muita coisa… uma delas e ligada ao râguebi é ir à Nova Zelândia. Já prometi aos meus filhos que em 2029 vamos lá ver o British Lions. Haja saúde.
De que forma ou como pode devolver ao râguebi aquilo que a modalidade lhe deu? Pensa ficar ligado à modalidade? Foi “padrinho” do 3.º Torneio Internacional do Direito. Quer ser alguém que passa testemunhos às novas gerações, no clube, na seleção nacional, por exemplo?
Claro que sim. Quero tentar continuar a ajudar o râguebi português a estar no sítio onde merece e onde sei que pode estar. No imediato, tenho uma empresa com o meu irmão, o meu primo João e o Salvador Palha, que neste primeiro ano procura chamar equipas internacionais de râguebi a vir conhecer o nosso país e o nosso râguebi. Temos um torneio de Tens, marcado para o último fim de semana de maio e estamos também a coorganizar a vinda dos South African Legends a Portugal, em junho. Além disso, nos últimos anos tenho feito algumas apresentações em empresas sobre Motivação, Liderança e Espírito de Equipa tentando mostrar os aspetos comuns entre o râguebi e o mundo empresarial e procurando que existam mais pessoas a gostar da modalidade. Para já vou continuar por este caminho.
Sente que é um exemplo nacional e não só de um clube?
Ser capitão da seleção ajudou a que muitos jogadores de outros clubes gostassem de me ver jogar.
Depois de ter sido convidado para os Rugby Centurions, onde só entram os jogadores com mais de 100 internacionalizações, enquanto único amador, disse que é uma nova oportunidade de representar a seleção, não sendo já não é possível com a camisola, que seja de blazer e gravata. De capitão no campo a Relações Públicas fora dele, é isso?
Relações públicas parece sempre algo pouco efetivo. Se é para ajudar, que seja a fazer algo mais concreto e com objetivos a atingir.
Na longa carreira entrava em campo com alguma superstição?
Não sei se é considerado superstição, mas gosto sempre de manter a mesma rotina no dia dos jogos.
Pode partilhar alguma conversa de balneário ou a palestra que dava enquanto capitão da seleção e do Direito.
Quanto às palestras, e seguindo as palavras do Jake White, treinador campeão do mundo com a Africa do Sul em 2007, “nunca devemos subestimar o poder do coração no râguebi”. E nesse sentido, gosto de puxar ao sentimento.
Para terminar, quem é o próximo Vasco Uva?
O meu filho.
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