As batatas têm duas vidas. Não no sentido das sete vidas que os gatos têm — pelo contrário, a batata tem-se até tornado mais sensível ao longo dos anos. Mais na ideia cartoonesca do super-herói que tem uma vida dupla. Neste caso, a batata que conhecemos — quando a compramos, cozinhamos e trincamos — e aquela que passa ao lado de muitos de nós — e que começa longe de Portugal, antes sequer de entrar na terra.
Não é uma vida simples, a da batata. Filha de imigrantes, muitas vezes começa num laboratório nos Países Baixos, onde é desenvolvida a semente “perfeita”. Ainda assim, quando brota da terra não deixa de ser tantas vezes descartada pelo peso ou pela forma — mesmo que esteja boa para comer. Antes queria-se suja, agora leva um banho, o que lhe dá um ‘golpe’ no prazo de validade — “as senhoras vivem em apartamentos, pintam as unhas e não querem sujá-las a descascar”, o comentário, com um riso de ironia no canto da boca, é de Henrique Simões, um empresário que transformou um pinhal numa carrinha para transportar batatas; já o vamos conhecer.
Portugal e a batata não têm uma relação fácil. Apenas temos grande produção entre abril e agosto, o que não nos chega. Consumimos 900 a 950 mil toneladas por ano e produzimos entre 400 e 450 mil toneladas, dados da Porbatata, a Associação da Batata de Portugal. E não conseguimos armazenar em grande quantidade depois do chamado período de campanha, explica ao SAPO24 o presidente da associação, Sérgio Ferreira. Por isso, muitas vezes, nas prateleiras dos supermercados, é batata estrangeira que encontramos, proveniente principalmente dos campos de Espanha e França.
Desde 2000 que o consumo médio por pessoa tem vindo a diminuir no nosso país. Era de 100 quilos por ano, hoje é de 93,6 quilos, longe da Irlanda, o principal consumidor na Europa, com um consumo per capita de 143 quilos do tubérculo. Em 20 anos, as áreas dedicadas ao cultivo da batata em Portugal caíram de 84 mil hectares para 20 mil. No entanto, devido à modernização do setor, a produtividade manteve-se.
Nem na língua portuguesa a batata encontra descanso, com expressões como “vai plantar batatas” ou “passar a batata quente” a não terem um significado reconfortante. Ainda assim, não a dispensamos no prato. No verão, frita, junto aos grelhados, no Natal, cozida, a acompanhar o bacalhau.
A batata e Portugal são um amor de verão. Sem nunca se esquecerem um do outro, ora se encontram, ora se desencontram. E ela, sobretudo, à espera que o país invista mais na relação.
O país sabe e reconhece-o, não fosse a agricultura ter um papel importante no Plano de Recuperação Económica desenhado por António Costa Silva, a convite do Governo, para a próxima década. “O país não pode prescindir de um setor agrícola moderno, sustentável, capaz de aumentar a capacidade produtiva nacional e tender a superar a condição deficitária da nossa balança alimentar”, lê-se no documento, que sugere algumas linhas estratégicas gerais para a agricultura.
Depois, há o preço batata. Um valor que é discutido ao cêntimo, do produtor ao distribuidor, passando em muitos casos por intermediários. Números controversos, que se tornam virais nas redes sociais quando uma imagem com os cêntimos pagos ao produtor são colocados ao lado do valor, muito superior, das batatas à venda no supermercado. Mas os verdadeiros valores a que a batata é negociada, do campo até ao prato, parecem guardados no segredo dos deuses.
Afinal quanto custa produzir uma batata? Compensa ser produtor de batatas em Portugal? Que segredos conta o ciclo de vida deste tubérculo?
O princípio da lógica da batata
Henrique Simões entrou no mundo da batata quando tudo parecia um pouco mais simples. Cansado de ser empregado do pai, saiu de casa aos 21 anos para ir trabalhar para um primo, “gerente da maior panificadora que havia em Lisboa, a Sociedade de Panificação Beira Tejo”. Durante cinco anos, acumulou dois turnos em 24 horas: à noite fazia o pão, de dia distribuía-o. Numa rara semana de férias, foi desafiado por um familiar a ajudar a carregar umas toneladas de batatas.
“Ele disse-me que íamos comer um leitão e eu, na paródia, fui com ele e vi-o ganhar, naquele tempo, 39 contos [39 mil escudos; 195 euros, em conversão direta; o equivalente a cerca de 10.300 euros a preços de hoje] em seis toneladas de batatas”, recorda ao SAPO24.
Pegou num papel e meteu-se a fazer as contas. Aos 39 contos tirou o preço a que foram pagas as batatas e o gasóleo do transporte. “Espera aí, eu ando errado!”, exclamou. O resultado final fazia parecer pequenos os 8,9 contos [cerca de 1.300 euros a preços de hoje] que retirava por mês de 16 horas de trabalho diárias na panificadora. “Pensei, vou comprar uma camioneta”.
Despediu-se, e no primeiro carregamento fez cinco ordenados de uma só vez. No segundo, ganhou um pouco menos. No terceiro, nada. “A fiscalização levou-me a camioneta, as batatas, tudo. Estava ilegal, já naquele tempo para se vender batatas era preciso estar-se inscrito na Junta Nacional das Frutas, mas eu não conhecia nada disso, por isso ia carregado e ia vender para o mercado”, conta. Mas não perdeu dinheiro: “Um senhor que estava lá, um batateiro que ainda hoje é vivo, falou com a intendência, arrumou-me ali a situação. Como as batatas foram para o consumidor direto ficou tudo tratado. O senhor ficou um grande amigo, deu-me cinco contos [cerca de 700 euros a preços de hoje], explicou-me tudo o que tinha de fazer e pude continuar a carregar batatas sem medo”.
Em 1980, o irmão António entrou no negócio. Era hora de expandir. Mas os fundos eram poucos. Para comprarem um camioneta Fuso, Henrique teve de voltar a casa do pai e pedir 600 contos [aproximadamente 33 mil euros a preços de hoje] emprestados para dar o sinal. Em troca, o pai não só lhes emprestou o dinheiro, como lhes deu um pinhal. Henrique, que na sua juventude em Oliveira do Hospital, tinha trabalhado muito na madeira, não se fez rogado. Com o irmão a sul a vender batatas, meteu mãos à obra e ‘desfez’ o pinhal num mês. Com a madeira cortada e vendida, devolveu o dinheiro ao pai e continuou a fazer crescer o negócio. Hoje, a Bacefrut, sediada em Samora Correia, distrito de Santarém, é um dos maiores distribuidores e armazenistas de batatas do país.
Henrique jamais se esquece de uma vez em que lhe pediram o pagamento antes de carregar as batatas, porque a filha do agricultor ia casar no domingo seguinte e havia uma grande festa para pagar. Só que em dois dias o preço da batata aumentou 20 escudos/quilo, e Henrique teve de recorrer às autoridades porque o homem se recusava a deixá-lo carregar as batatas.
Agora o mundo é diferente. É tudo pensado e desenhado para ser de determinada maneira — os mercados condicionam a oferta àquilo que o consumidor procura, o consumidor habitua-se àquilo que os mercados querem dar.
“Está tudo moderno. Vendi milhares e milhares de toneladas de batata suja. Hoje, as pessoas só querem batatas lavadas, o que dá muitos problemas. A água entra nos poros, elas apodrecem com facilidade. Agora as senhoras vivem em apartamentos, pintam as unhas e não querem sujá-las a descascar as batatas. Elas têm de ir lavadas, que é o que está aqui”, explica Henrique enquanto aponta para um monte de sacos prontos para sair para as lojas de uma das maiores cadeias de supermercados do país.
Conta que é na grande distribuição que está o lucro, que o tempo de vender sacas pelo país acabou e que isso agora se reduz à “meia dúzia de sacos” que vende no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL).
Os irmãos Simões aguentaram-se, cederam à ‘moda’ da batata lavada e foram ficando.
“Parte dos meus colegas dessa altura, quando se começou a lavar batatas, desistiram porque nas batatas lavadas vêm-se os defeitos todos. Isto sai carradas de batatas de refugo para os animais. Eles desistiram todos. E nós, que tínhamos aqui este terreno, fizemos este armazém e estas instalações, há 21 anos”, conta Henrique.
Henrique e António fazem parte do processo cartoonesco, aquela segunda vida da batata, em que o tubérculo veste uma capa e nos foge da vista. São eles — e muitos outros armazenistas pelo país — que compram a batata aos agricultores e a transformam na batata que depois compramos nas lojas, lavada e embalada.
Os grandes armazenistas muitas vezes compram a batata-semente — a maioria dela importada dos Países Baixos — e entregam-na aos agricultores com que trabalham habitualmente. Desta forma, garantem as quantidades e a variedade de batata que calculam conseguir vender — existem dezenas de variedades de batata em Portugal. Os agricultores ou pagam logo a semente ou o valor é-lhes depois descontado quando vendem a batata.
Mas estamos a saltar etapas. Antes disso… de onde vêm as batatas?
“As batatas vêm do supermercado”
A resposta parece tirada de uma piada popular, galvanizada nas zonas rurais do país aquando do encontro com as pessoas das cidades. Podia ser quase um “queres ir caçar gambuzinos?”. Fora dos centros urbanos, brinca-se às vezes dizendo que os citadinos acham que as frutas e os legumes nascem nas prateleiras do supermercado.
Nada disso. A batata nasce de muito estudo nos Países Baixos. Este país é um dos grandes produtores e exportadores da chamada “batata-semente”. Depois de muita investigação, a batata-semente é plantada em grande terrenos naqueles países, até se descobrir “a fórmula mágica”: a que mais batatas produz, afinada em função do clima, do terreno, da variedade.
A semente da batata não é mais do que uma batata. Sabe-o bem quem se dedica ao seu cultivo numa pequena escala. Corta-se uma batata a meio ou em quartos, semeia-se, e uns meses depois apanham-se mais umas poucas batatas. À escala industrial, põem-se na terra grandes quantidades de batata-semente e no final apanham-se as dezenas em que cada uma se multiplicou. Na colheita, dizem-nos que cerca de 10% da produção é desperdício, ou porque a batata está estragada, com alguma doença, ou porque não cumpre os requisitos estéticos para perfilar num mercado ou supermercado.
Em Portugal, grande parte da batata é semeada em finais de dezembro, início de janeiro para ser colhida quatro meses depois — este é o período forte, mas produzimos durante o resto do ano também. Na Europa, o nosso país inaugura o chamado período da campanha, somos os primeiros a ter batata.
No início de abril, aproximadamente, abre-se a nossa janela de oportunidade: para dentro e para fora. Este é o período em que se encontra mais batata nacional no mercado e em que o país mais consegue exportar o tubérculo. Dos pequenos aos grandes produtores, é chegada a hora de fazer valer os meses anteriores de trabalho. Mas este ano, com a pandemia, a exportação ficou afetada (ver caixa ao lado).
Jorge Martins trabalha no negócio da família na Lourinhã, região do Oeste. Tem 30 anos. Dos 20 hectares que tem, dedica cerca de seis à produção de batata. Por ano, a família tira cerca de 200 toneladas do tubérculo. Vende sobretudo para um armazém de batatas em Coimbra.
Conta ao SAPO24 que começa a lavrar o terreno em setembro e outubro, trata de encomendar as sementes em novembro, para ficar preparado para a sementeira em dezembro. Ao longo dos meses da cultura, quando a batata começa a nascer, faz tratamentos todas as semanas.
Já José Francisco da Silva, também pequeno produtor, desta vez no Algarve, cultiva, por ano, cerca de um hectare do tubérculo e vende para a cadeia de supermercados Auchan na região e para pequenos mercados.
Também compra a semente ao saco, mas diz que não consegue bem contabilizar quanto lhe custa a produção total. Ali é tudo manual: “Uma máquina, por exemplo, num dia semeia duas ou três toneladas de batatas, e um homem semeia 40 ou 50 quilos de batatas. É muito diferente uma coisa da outra”.
Trabalha por conta própria. Nasceu no campo e sempre ali foi criado — é, aliás, uma realidade comum por todo o país a produção de batata ser passada de mão em mão na família. Mas “há muita gente nova hoje que não sabe como é que se faz a produção da batata”. “Vêm do supermercado…”, diz num tom brincalhão.
Afonso Vinagre, um grande produtor de Santarém, dedica cerca de 80% da sua produção de batata à indústria, outra das vias de escoamento do produto — paralelamente à pequena e grande distribuição ao consumidor, e ao chamado canal HORECA (dedicado aos hotéis, restaurantes e cafés). A batata para indústria não é mais do que aquela que segue para as fábricas que a transformam, por exemplo, em batata frita e pré-frita. Afonso conta que tudo o que faz é contratualizado, preços previamente definidos, datas de sementeira e de colheita detalhadas. Diz que, no ramo, é a forma mais segura de se trabalhar.
Preço certo? Uma batata quente
Perguntamos se a batata dá dinheiro, se é um negócio que ainda compensa como no tempo em que o senhor Henrique ganhou cinco ordenados numa tarde. Afinal de contas, como é que tudo acontece, quem define os valores a que a batata é negociada?
As respostas são quase sempre esquivas. Com cada um, naturalmente, a defender o seu quintal.
“Somos nós que fazemos o produto e acabamos por perder dinheiro na cultura”, afirma Jorge Martins, pequeno produtor do Oeste.
“A história do preço da batata é muito complicada. Se isto fosse um negócio rico, já estava em casa, de banho tomado e sentado a ver televisão [já passava das 20h quando saímos do armazém]. Mas para isto funcionar bem eu tenho de estar aqui...”, explica Henrique Simões. Ele e o irmão, enquanto armazenistas, trabalham muitas vezes 12 ou mais horas por dia. Gostam do que fazem e admitem ter uma vida confortável, casas e carros, fruto do trabalho de 40 anos.
Do lado da distribuição, Gonçalo Lobo Xavier, presidente da APED - Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, defende que "há uma procura constante de uma maior eficiência e de comprar bem para poder apresentar os produtos com um preço equilibrado ao consumidor". "O que posso dizer é que as margens na distribuição estão na ordem dos 2%-3% em média, pelo que fico sempre um bocadinho surpreso quando dizem que há uma grande diferença entre o valor a que nós [distribuição] compramos e o valor a que vendemos”, acrescenta.
Sabendo que o preço "varia muito em termos do que é a oferta e a procura", o secretário de Estado da Agricultura, Nuno Russo, lembra que "há aí um limiar que não pode ser ultrapassado, que é a venda abaixo do custo de produção”. O governante acrescenta: “Seria muito interessante ter informação transparente desde a produção, durante o processo de comercialização e até a sua disponibilização na distribuição para tentar perceber onde é que há aumentos ou abaixamentos do preço”.
A verdade é que reconstituir o percurso do valor da batata desde a terra até ao prato não é tarefa fácil. Entre segredos do negócio, diferentes variedades de batata, pequena e grande produção, vários canais de escoamento, distribuição local ou de grande escala, é muito difícil dizer “esta batata, plantada neste local, custou X euros a ser produzida e foi vendida ao consumidor final a Y euros”.
Mas cansámo-nos do jogo da batata quente e decidimos passar ao “unir os pontos”.
Um quilo de batatas custa aproximadamente 0,17€ a ser produzido, dependendo do tipo de produção. Estes são valores reportados por vários intervenientes com quem falámos. Sempre que o quilo de batata é comprado ao agricultor por menos de 20 cêntimos, a cultura pouco ou nada lhe terá compensado.
Dizem-nos que produzir um hectare de batatas (a área de um campo de futebol, mais ou menos) custa cerca de cinco mil euros e dá à volta de 30 toneladas de batatas, contas feitas por alto às despesas com batata-semente, água, máquinas, tratamentos, mão de obra, etc.
Este ano, por exemplo, há muitos casos em que a batata foi comprada ao produtor a aproximadamente 10 ou 15 cêntimos/quilo. São alguns relatos no campo e no mercado. Portanto, um agricultor que venda a 10 cêntimos fará três mil euros num hectare, e um que venda a 15 cêntimos, 4.500 euros.
Isto significará que a cultura não compensou. Quando questionamos os agricultores como se sobrevive quando isto acontece, quase todos respondem o mesmo: “Muitas vezes tem de dar de outros anos para estes” e de umas culturas para as outras, explica Jorge Martins, que tem plantação de batatas, abóboras e couves.
O valor mais baixo que nos foi reportado por um agricultor foi o de cinco cêntimos/quilo, denunciado por Jorge Martins. Outros intervenientes confirmaram que já tinham visto batata a ser vendida a oito cêntimos/quilo este ano, mas dizem que não é comum. O valor mais alto reportado foi cerca de um euro/quilo, por José Francisco da Silva, explicando-nos ele, no entanto, que é um produtor com características muito específicas, uma cultura pequena e uma variedade de batata mais cara.
O preço reportado por alguns intermediários ou armazenistas rondava os 10-20 cêntimos/quilo. “Foi uma campanha para os agricultores muito má”, admitem.
De acordo com o Boletim Mensal de Estatística de Junho deste ano, o preço da batata no consumidor, entre março e abril, estava nos 28 e 30 cêntimos, respetivamente.
Os valores acima podem ficar completamente desatualizados amanhã. Aliás, podem já ser outros no momento em que o leitor se encontra com este texto. O valor a que a batata é negociada varia de semana para a semana.
O preço reflete a quantidade de batata produzida, a oferta que vem de fora (a batata estrangeira é tendencialmente mais barata e faz baixar o valor da portuguesa), a capacidade de escoamento do mercado, a qualidade do produto, as condições climatéricas, que influenciam diretamente a produção.
Voltando aos pontos que estávamos a tentar unir, passamos aos intermediários. A partir daqui começa a ficar cada vez mais difícil acompanhar os valores. Os custos desta fase do negócio incluem armazém, energia (em particular para as câmaras frigoríficas), linhas de produção, lavagem, pesagem, embalamento, mão de obra.
Depois de passar por todo este processo, a que preço é vendido o quilo de batata? Não conseguimos obter resposta por parte dos intermediários.
Já as distribuidoras, em julho deste ano, afirmavam estar a pagar entre 30 e 50 cêntimos pelo quilo de batata. Estes são intervalos aproximados referidos pelo Auchan e pelo Clube de Produtores do Continente. A Jerónimo Martins (Pingo Doce) e o Lidl optaram por não responder à pergunta. A maioria do produto é comprado em grandes quantidades a armazenistas, como a Bacefrut, dos irmãos Simões, mas há também algumas compras feitas diretamente aos agricultores.
Finalmente, a que preço chega o quilo de batata às mãos do consumidor final? Basta olhar para a secção dos frescos num supermercado para perceber que também esta não é uma pergunta de resposta linear. Batata para fritar, batata para assar, batata a granel, ensacada, embalada, batata de produção nacional, estrangeira… Arrendondamentos à parte, a média de um euro por quilo é uma realidade comum.
Regulação da batata: para uns PARCA, para outros suficiente
"Eu percebo pouco do mercado financeiro e tenho poucos estudos, como costumo dizer, mas segundo o que consta, se eu comprar este armário a 20 euros e o vender por 15 é crime. Ou seja, se uma batata me custou 15 cêntimos a fazer, não a podia vender por 10. Ou seja, o preço da batata devia estar tabelado e não se devia vender, por exemplo, a menos de 15 cêntimos. Acho que isso já devia estar definido há muitos anos. A gente acaba por cometer um crime ao agricultor sem dar por ela. Ele não tem outra solução, tem de vender àquele preço. Ainda assim, se isso custou 20, eu não posso estar a vender por 15", desabafa Emanuel Neto, 30 anos, sócio-gerente das Batatas Neto, Lda., no negócio da batata desde que nasceu — “aos cinco anos já andava de empilhadora”.
A pergunta é inevitável: faz ou não sentido que haja uma entidade reguladora que salvaguarde situações de abuso? Mais uma vez, as respostas não são consensuais.
O secretário de Estado da Agricultura, Nuno Russo, assumiu que "efetivamente o Ministério da Agricultura não tem uma entidade reguladora", mas que há outras formas de fazer o acompanhamento do setor.
"Existe uma Plataforma de Acompanhamento das Relações na Cadeia Alimentar, que se chama PARCA. Foi criada pelo Ministério da Economia e o Ministério da Agricultura e o objetivo da sua criação é fomentar a equidade e o equilíbrio da cadeia alimentar, promovendo o diálogo, para permitir o aumento da transparência do mercado, de um equilíbrio na distribuição de valor, entre os diferentes setores da produção, da transformação e da distribuição de produtos agrícolas e agroalimentares”, descreve. A PARCA “conseguiu aprovar em 2018 um código de boas práticas comerciais na cadeia agroalimentar. Esse código está em funcionamento", diz o governante.
O código existe, mas nem todos o veem da mesma maneira. Em 2018, numa audição de avaliação da PARCA no parlamento, o representante da Confederação Nacional da Agricultura, João Dinis, dizia que a plataforma servia “para pouco face aos seus próprios objetivos e perante o interesse nacional", e considerava que continuava a “ditadura” dos grandes hipermercados, que “esmagam” os preços à produção.
Para Gonçalo Lobo Xavier, da APED, a atividade “já é altamente regulada e autorregulada”. “Não estou a ver que mais mecanismos seriam precisos”, acrescenta.
"Este código de boas práticas é muito claro relativamente ao que se pode e que não se deve fazer. Da distribuição nacional, a grande maioria assinou este código e tem cumprido religiosamente as orientações. Pelo que, no imediato, estamos muito confortáveis com o que temos feito. Temos plena consciência de que apoiar a produção nacional é um desígnio nacional”, explica.
Ondina Afonso, presidente do Clube de Produtores do Continente, diz ser a favor de "tudo o que defenda a produção nacional", salientando que, "quando os produtores perdem, nós todos perdemos". Ainda assim, afirma que, “eventualmente não é preciso criar-se mais organismos”. "Em Portugal já há tantas associações, tantas entidades. As associações que representam o setor podem dedicar-se a essa parte de juntarem os produtores e conseguirem estabilizar aquilo que é o valor justo para a produção ao longo do ano, dando maior capacitação aos próprios produtores de responderem aos desafios da grande distribuição. Temos todos a ganhar com isso".
Jorge Vaz, responsável da oferta e compra das hortícolas no Auchan, diz que não sente a necessidade da criação de uma entidade reguladora, embora confesse que não lhe "faz confusão nenhuma que exista" e admita que "até pode vir a ser benéfica".
Já a Porbatata considera que a regulação do mercado, visível em outras atividades, tem "as suas questões boas e as suas questões más". "Nós defendemos que o mercado livre deve trabalhar. Precisamos, no nosso entender, de uma maior fiscalização do mercado", sublinha o presidente, Sérgio Ferreira.
Fonte oficial do Pingo Doce respondeu por escrito que, “a 2 de Julho de 2019, o Pingo Doce assinou o Código de Boas Práticas Comerciais na Cadeia Agroalimentar — um instrumento de autorregulação intersectorial que definiu um conjunto de princípios e práticas para a cadeia de abastecimento agroalimentar".
O Lidl afirma que "os preços de compra têm de ser sustentáveis para toda a cadeia envolvida, desde a produção ao embalamento, ao fornecimento, à logística envolvida. De que forma é que se chega lá, existem inúmeras variantes".
É à ASAE que cabe a fiscalização dos valores a que a batata é negociada, nomeadamente para detetar as situações em que esta é vendida abaixo do preço de custo de produção. O SAPO24 questionou esta entidade acerca das situações de incumprimento e suas consequências, no entanto não obtivemos resposta até à publicação do artigo.
A pergunta para um milhão de euros: afinal, compensa ou não ser agricultor em Portugal?
“Está a fazer a pergunta ao Ministério da Agricultura. A resposta que eu lhe posso dar é: claro que sim. Agora, deixe-me que lhe diga: é um grande desafio”, responde o secretário de Estado.
Ainda assim, afirma: “É um setor que tem dado sinais muito positivos. Tem sido dos poucos que têm contribuído positivamente para os resultados positivos da economia portuguesa”. “Todos aqueles que querem ingressar no setor hoje em dia já não têm tantas dificuldades e tantos constrangimentos como no passado. Um jovem agricultor que queira apostar não tem tantos problemas de acesso à terra, de acesso ao crédito, já não tem tantos problemas para se tentar associar a uma associação de produtores que lhe possa permitir escoar a sua produção e garantir a viabilidade da sua exploração”, considera.
Não é assim que se sente Jorge Martins. O jovem agricultor diz que tem “pensado cada vez mais” sobre continuar a dedicar-se ou não ao negócio. “Normalmente trabalho das oito da manhã até às nove e dez da noite, conforme os dias. Nesta altura do ano é assim. Começo a pensar se, somando as minhas horas todas, não valia mais estar empregado ou noutra atividade”.
“Temos de fazer alguma coisa da vida. E há pessoas que adoram aquilo que fazem como agricultores. São resistentes por isso. Ou porque também há uma estrutura familiar que sempre esteve ligada”, começa por dizer Sérgio Ferreira, da Porbatata.
“Agora, não há um incentivo aos mais novos em virem produzir batata. Veem que a rentabilidade cada vez está mais reduzida e com vários anos como este não conseguem ganhar para comer. Não conseguem pagar as contas. Temos tido alguns anos menos maus. Se não fossem esses anos era impossível as empresas sobreviverem. Mas com anos como este isto é complicado”, continua.
Ainda assim, Sérgio Ferreira sublinha que os produtores têm procurado encontrar respostas para as necessidades de modernização, que lhes poderão dar maior competitividade: “É importante percebermos que os produtores não têm estado parados à espera de apoios para resolver os problemas. Só que as adversidades são grandes e depois para a parte do armazenamento não dá. Se conseguimos investir numa área, já não conseguimos ir investir na outra porque não fica rentabilidade suficiente para o fazer”.
Chegados aqui, não temos uma resposta linear para a complicada vida do tubérculo. É irresistível falar da lógica da batata. Não no absurdo que a expressão propõe, mas na teia complexa de uma produção nacional que vive num mercado livre, onde ora ganha ora perde, à espera de uma modernização que todos defendem, mas que parece demorar a chegar.
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