A falência do Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimento dos Estados Unidos, foi há dez anos e simboliza a maior crise financeira desde o ‘crash’ de 1930. Na primeira hora do dia 15 de setembro de 2008, um tribunal federal norte-americano recebeu a formalização da falência do gigante da indústria financeira, uma decisão que mudaria a história económico-financeira mundial.

Entre a sexta-feira e o domingo anteriores, no edifício da Reserva Federal (Fed) de Nova Iorque, líderes financeiros e políticos tentaram evitar uma catástrofe, depois de o banco ter apresentado prejuízos na ordem dos 3,9 mil milhões de dólares no terceiro trimestre fiscal dos Estados Unidos, em 10 de setembro, e de se ter percebido a ‘bolha’ dos seus ativos avaliados em 600 mil milhões de dólares.

A solução tentada foi vender o Lehman Brothers a outro banco, mas acabaria por falhar, após o Barclays se ter retirado do negócio, e às 01:00 do dia 15 de setembro os advogados do banco entoaram o pedido de falência num tribunal federal.

Para o imaginário ficam as imagens de milhares de pessoas a saírem das instalações do banco com os seus objetos pessoais em caixas de cartão, cabisbaixas, transmitidas em direto por televisões do mundo inteiro.

créditos: Chris Hondros/Getty Images/AFP

A empresa nascida em 1850, que sobreviveu a duas guerras mundiais, à guerra civil dos Estados Unidos, à Grande Depressão, entre outras crises, não resistiu e marcou uma nova era. Há um pré e um pós-Lehman Brothers.

O início do fim

A queda do Lehman Brothers é sobretudo um símbolo, porque tudo começou muito antes, e já se tornava patente desde o verão de 2007.

Desregulação financeira, derivados financeiros sobrevalorizados (apoiados pelas agências de 'rating'), créditos hipotecários de alto risco ('subprime') foram os ingredientes de uma crise que, segundo muitos economistas, tem as origens na crise de 2001 com o rebentar da bolha da Internet, que levou a Fed (o banco central dos Estados Unidos) a adotar juros baixos e a incentivar investimentos no setor imobiliário.

No início de 2008, já bancos tinham sido intervencionados em resultado da crise que se evidenciava. Em fevereiro foi nacionalizado o britânico Northern Rock pelo Governo do Reino Unido e em março foi resgatado pelas autoridades dos Estados Unidos o banco de investimento Bear Stearns, que acabou engolido pela JP Morgan.

Contudo, à medida que os meses avançavam alguns acreditavam que a crise estava a amainar, mas setembro haveria de mostrar que o pior estava para vir.

As agências de financiamento imobiliário dos Estados Unidos Fannie Mae e Freddie Mac foram resgatadas pelo Governo americano no início de setembro, em 15 de setembro é pedida a falência do Lehman Brothers e no dia 16 a seguradora AIG recebe um regate milionário da Fed no valor de 85 mil milhões de dólares.

Ainda no mesmo dia em que o Lehman Brothers caiu é conhecido que o Bank of America (que também esteve em negociações para comprar o Lehman) comprou a corretora Merryll Lynch e pouco depois que os bancos de investimento Goldman Sachs e Morgan Stanley se convertem numa ‘holding’. Em outubro é a vez de bancos norte-americanos Wells Fargo e Wachovia se fundirem, concentrações feitas com o objetivo de sobreviver à turbulência.

créditos: AFP PHOTO / STAN HONDA

Era já certo que o mundo estava perante uma grave crise financeira, apesar de os Estados Unidos terem aprovado rapidamente um resgate aos ativos 'tóxicos' da sua banca de 700 mil milhões de dólares e depois um plano de estímulo de 790 mil milhões de dólares.

Mas a avalanche estava imparável e atingiu sobretudo a Europa, evidenciando a debilidade bancária do Velho Continente e os desequilíbrios das finanças públicas, com os Estados, famílias e empresas muito endividados.

A travessia do Atlântico

Aquilo que era uma crise financeira transformou-se numa crise económica e, a partir de 2010, a crise das dívida soberanas levou mesmo a resgates à Grécia, Portugal, Irlanda e Chipre, enquanto Espanha recebeu apoios para o setor financeiro, num total de quase 500 mil milhões de euros.

Em contrapartida, foram aplicadas políticas de austeridade, reformas do mercado laboral e reduzidos gastos com educação, saúde, pensões, criando descontentamento na população.

Em Portugal, após a queda do Lehman Brothers, seriam precisos alguns anos para a crise bancária vir ao de cima.

Em 2008, os analistas eram da opinião de que as ondas de choque ao sistema financeiro mundial poupariam os bancos portugueses, perante a menor exposição a derivados 'tóxicos' e o apoio das autoridades europeias ao setor financeiro, com injeções de dinheiro do Banco Central Europeu (BCE) no mercado monetário e emissão de garantias de Estado pelos Governos para que os bancos conseguissem liquidez.

Ainda em 2008 pareciam apenas episódicos os casos da nacionalização do Banco Português de Negócios (BPN), a primeira desde o período revolucionário, e da intervenção do Banco de Portugal no Banco Privado Português (BPP).

Aliás, os cinco maiores bancos que em 2008 operavam em Portugal - Caixa Geral de Depósitos (CGD), BCP, BES, Santander Totta e BPI - obtiveram lucros de 1,73 mil milhões de euros nesse ano.

Contudo, os anos mostrariam problemas. E graves.

Em junho de 2012, já com a intervenção da ‘troika’, os bancos são obrigados a recapitalizarem-se e têm de recorrer à ajuda do Estado. O BCP pediu emprestados 3.000 milhões de euros ao Tesouro e o BPI 1.500 milhões de euros. Já a CGD recebeu 1.650 milhões de euros, 750 milhões de euros em ações e 900 milhões de euros de emprestados.

Meio ano depois, em início de 2013, o Estado pôs mais 1.100 milhões de euros no Banif (700 milhões em ações e 400 milhões em dívida) e tornou-se seu acionista maioritário.

Já Banco Espírito Santo (BES), por seu lado, reforçou capital junto de privados, evitando o recurso ao apoio estatal.

Contudo, o estrondo chegou em 03 de agosto de 2014. Nesse domingo à noite, quatro dias depois de o BES ter apresentado um prejuízo semestral histórico de 3,6 mil milhões de euros, o governador do Banco de Portugal fala ao país para anunciar o fim da instituição centenária.

créditos: TIAGO PETINGA/LUSA

Em dezembro de 2015, seria o Banif a ser resgatado, sendo vendida parte da sua atividade ao Santander Totta.

Nos últimos anos, a banca portuguesa tem vivido em transformação, e não está concluída.

A CGD está em profundo processo de reestruturação, o BCP continua a sua reorganização, agora com o grupo chinês Fosun como maior acionista, o Novo Banco – o banco nascido na resolução do BES – pertence ao fundo norte-americano Lone Star e também tem uma reestruturação em curso e o BPI passou a ser controlado quase na totalidade pelo pelo grupo espanhol CaixaBank.

O Santader Totta, que benificia do apoio da casa-mãe, o espanhol Santander, aproveitou para consolidar a sua posição no mercado (sobretudo após ter ficado com parte do Banif e com o Banco Popular Portugal) e aumentar lucros.

Também o setor segurador português sofreu mudanças significativas nos últimos anos e é hoje dominado por empresas estrangeiras.

Dez anos depois, há ainda muito por fazer

Dez anos depois da queda do Lehman Brothers houve melhorias no sistema financeiro mas ainda insuficientes e a Europa e Portugal vivem uma recuperação incerta e com problemas, que servem de combustível a populismos.

Uma década passada, economistas e académicos consideram que houve evoluções significativas, a maior solidez dos bancos (que foram obrigados a recapitalizar-se), a melhor regulação, a supervisão de nível comunitário, e o facto de se ter conseguido que a recessão económica fosse menos desastrosa do que se perspetivava. Contudo, avisam, há muito por fazer.

Para João César das Neves, economista e professor da Universidade Católica de Lisboa, foi “espantoso o que se conseguiu dado o que se passou”, mas é ao mesmo tempo “assustador” o que ainda falta, nomeadamente na União Bancária europeia.

José Manuel Quelhas, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, destaca a mudança de pensamento que considera que "a estabilidade financeira pode ser vista como um bem público, de que não interessa só aos operadores financeiros”.

O surgimento do Comité Europeu do Risco Sistémico e do Sistema Europeu de Supervisão são alguns dos aspetos positivos apontados pelo também juiz conselheiro do Tribunal de Contas. Mas avisa: “Fica muito aquém das expectativas, até porque a União Bancária está por concluir”.

Para já, dos três pilares da União Bancária está em funcionamento o Mecanismo Único de Supervisão, com o BCE a supervisionar os bancos mais significativos da Europa, e o Mecanismo Único de Resolução, ainda que falte concretizar o fundo que financiará as intervenções nos bancos.

O problema, contudo, é o terceiro pilar, o Fundo comum de Garantia de Depósitos, que motiva entraves nomeadamente da Alemanha.

Nicolas Veron, economista do ‘think thank’ europeu Bruegel e do Peterson Institute for International Economics, concorda que o facto de a União Bancária estar “muito incompleta” prejudica a estabilidade do sistema financeiro, desde logo porque não permite que seja rompida a ligação entre a dívida do Estado (risco do soberano) e o setor financeiro.

A crise que eclodiu em 2007/2008 teve como reação uma resposta concertada dos bancos centrais para estabilizarem os mercados e fazer o dinheiro regressar às economias. As taxas de juro de referência foram reduzidas para mínimos históricos e os bancos centrais lançaram operações de compra de ativos.

Para César das Neves, foi a intervenção dos bancos centrais e a criação de liquidez que “salvou a economia mundial da catástrofe”, de uma recessão prolongada e profunda, evitando um colapso como o de 1929.

Contudo, afirma, “o excesso de liquidez criado em 2008 e 2009 ainda está a ser criado em 2018”, quando ninguém esperaria que dez anos depois ainda houvesse a necessidade de sustentar a economia por essa via, pelo que considera que isto pode ser também um problema já que, perante a ação dos bancos centrais, "os governos sentiram-se dispensados de fazer sua parte, em termos orçamentais, reformais e estruturais".

"A liquidez evita a dor, mas é preciso a intervenção cirúrgica”, avisa.

O professor Paulo Viegas de Carvalho, do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, destaca ainda que a economia se continua a debater com o “extremamente elevado peso do endividamento público e privado”. Nos bancos, diz, continua o problema do crédito malparado, com impacto na economia e na rentabilidade das instituições.

Além disso, lembra, as grandes agências de 'rating' (Moody's, Fitch, Standard & Poor's), a que tanto se apontou o dedo por darem notas muito boas a produtos que afinal eram 'tóxicos', "têm hoje ainda mais peso do que tinham".

Nicolas Veron considera que não ter sido criado mecanismos para limpar os balanços dos excessivos ativos 'tóxicos' foi uma “oportunidade perdida” pela qual “Portugal paga um alto preço”.

“Não temos ainda a banca a fazer a sua função económica, o crédito a empresas não anima. Esses problemas são muito evidentes e ninguém está a olhar”, afirma, por seu lado César das Neves.

O professor da Católica considera que se vive na “ilusão” de crescimento económico, que é baixo, esquecendo-se que os riscos que há no mundo – como a incerteza geopolítica e guerra comercial promovida pelo presidente dos Estados Unidos – “a qualquer momento podem precipitar coisas graves”.

Paulo Viegas de Carvalho afirma que um dos passos seguintes é ver como evoluirá a política monetária, referindo que os bancos centrais irão começar a subir taxas de juro ainda que de forma muito gradual, para avaliar os efeitos nos ativos, que estão muito sobrevalorizados, como ações e imobiliário, pois os aforradores aplicaram dinheiro aí fugindo de investimentos pouco rentáveis, como depósitos.

Os economistas contactados pela Lusa consideram ainda que os mais recentes movimentos políticos, com ressurgimento dos populismos e nacionalismos, têm origem na crise, nos problemas que subsistem, nas famílias insatisfeitas com as condições de vida, no desemprego, nas desigualdades.

"O facto de boa parte da população sentir insatisfação com as respostas à crise, com as medidas austeridade, os resultados são aqueles que se esperavam: populismos", considera Paulo Viegas de Carvalho.

Apesar de ter passado o medo de colapso da moeda única, a economia europeia ainda continua a recuperar, tal como a portuguesa, entre incertezas, e com uma limitada ação orçamental dos Governos a braços com elevada dívida pública (em Portugal era em junho de 125,8% do PIB - Produto Interno Bruto).

"A crise de 2008 é bancária e essa resolve-se rápido, o que está a apodrecer é a crise das finanças públicas, essa crise orçamental é muito difícil de resolver", diz César das Neves.

Dez anos depois da queda do Lehman Brother e quatro anos depois do fim do resgate da ‘troika’ (2011-2014), só este ano a produção de riqueza em Portugal (medida pelo PIB) deverá atingir os níveis pré-crise, segundo o Banco de Portugal. E o rendimento médios das famílias ainda era em 2016, último ano disponível, inferior ao de 2008.