O retrato de Portugal enquanto país em que o turismo desempenha um forte papel na economia pode fazer-se de várias formas. Com uma galeria de fotos de praças como o Terreiro do Paço em Lisboa ou a Avenida dos Aliados no Porto repletas de turistas ou com imagens das filas de autocarros que em intervalos curtos de tempo despejam dezenas de pessoas de mapas e câmaras na mão, um cenário tão real em Viana do Castelo como em Braga, Évora ou Fátima. Poderíamos mencionar os vários prémios conquistados, entre os quais os três óscares do turismo recebidos em três anos consecutivos. Poderíamos percorrer a história do aproveitamento de um recurso à mão de semear, da costa portuguesa, do património histórico e natural, mas que só após a grande crise económica e mundial se conseguiu fazer ágil e apelativo para o mundo. Ou podemos resumir tudo isto em números.

No ano passado, Portugal recebeu 27 milhões de turistas, um aumento de mais de sete por cento, face a 2018. As receitas subiram na mesma proporção e em 2019 chegavam aos 4,28 mil milhões de euros. No final desse mesmo ano, a Organização Mundial de Turismo destacava Portugal como o 17.º país mais visitado em todo o mundo.

O setor hoteleiro, naturalmente um dos que mais beneficiou com o investimento do país no turismo, hoje, com o isolamento social como medida de prevenção e contenção do novo coronavírus, é um dos mais afetados. Vindo de uma época baixa e a preparar-se para a reentré, os hotéis começaram a ver canceladas as reservas para abril e maio à medida que o SARS-CoV-2 se propagava pelo continente europeu.

Atualmente, a faturação é praticamente zero e o futuro indefinido com o regresso a uma realidade próxima da normalidade a não estar nas suas mãos, nem condicionada pelas resposta dos turistas internos, mas essencialmente pela reação além fronteiras. Para isso basta dizer que daqueles 27 milhões de turistas que Portugal recebeu em 2019, mais de 16 (o equivalente a cerca de 60%) foram estrangeiros.

A indústria hoteleira foi do céu ao inferno. Para perceber como tudo isto aconteceu, o SAPO24 falou com dois grupos hoteleiros e um hotel com apenas uma coisa em comum: todos foram premiados com os prémios Publituris Portugal Trade Awards 2020. O momento em que tal aconteceu foi completamente contrário àquele que seria normal, o da preparação para um período de reentré na época alta. Quase em 24 horas, um cronologia condensada da crise de um setor que vinha de um ano histórico e que em março começava a entrar lentamente num pesadelo.

“Um misto de sentimentos”

No dia 17 de março, o Monverde Wine Experience Hotel, do grupo Unlock Boutique Hotel, o Sublime Comporta Country Retreat & Spa e os hotéis da Savoy Signature eram distinguidos com os prémios Publituris Portugal Trade Awards 2020 num anúncio feito online, em vez da cerimónia que foi cancelada devido à propagação do novo coronavírus em território nacional. No dia seguinte, Marcelo Rebelo de Sousa decretava o estado de emergência. Em um dia, sumariza-se a queda que o setor hoteleiro viria a enfrentar perante um mundo que começava a isolar-se sobre si mesmo para tentar conter uma pandemia.

“Começámos a ficar preocupados no início de março, com mais certezas do que aí vinha na segunda semana. Reunimos a direção numa reunião de emergência e no dia 15 de março, tendo em conta o bem-estar dos clientes e colaboradores do Sublime Comporta, como medida preventiva, decidimos fechar o resort temporariamente”, explica Gonçalo Pessoa, proprietário do hotel, ao SAPO24.

Sublime Comporta Country Retreat & Spa

Na Madeira, a administração do Savoy conta-nos uma história idêntica. Os primeiros casos na Europa, no final do mês de janeiro, criaram de imediato apreensão entre o grupo, que tem presença na ilha da Madeira. Logo a partir desse momento começou a assistir a uma onda de “cancelamentos e redução de reservas” à medida que o inevitável se aproximava.

Cronologia da propagação do vírus:

31/12/19

O gabinete da Organização Mundial de Saúde da China (OMS) informa sobre mais de duas dezenas de casos de pneumonia de origem desconhecida detetados na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei.

10/01/20

As autoridades chinesas identificam o agente causador das pneumonias como um tipo novo de coronavírus, que foi isolado em sete doentes.

20/01/20

Autoridades confirmam que há transmissão entre seres humanos.

30/01/20

OMS declara surto como caso de emergência de saúde pública internacional, mas opõe-se a restrições de viagens e trocas comerciais.

11/02/20

OMS decide dar oficialmente o nome de Covid-19 à infeção provocada pelo novo coronavírus.

2/03/20

Confirmados os dois primeiros casos em Portugal.

11/03/20

OMS declara doença Covid-19 como pandemia, alertando para aumento do número de casos e mortes e apontando “níveis alarmantes de propagação e inação”.

13/03/20

Organização Mundial de Saúde declara que Europa é o centro da pandemia, com o número de mortos em todo o mundo a superar 5.300.

18/03/20

Marcelo Rebelo de Sousa decreta estado de emergência e o governo liderado por António Costa impõe várias medidas restritivas para conter a propagação do novo coronavírus.

No meio de todo este processo receber um prémio gerou “um misto de sentimentos”. “Este prémio é, acima de tudo, motivo de alegria e orgulho. Vem reforçar ainda mais a nossa motivação face a este projeto em que tanto acreditamos desde o início. É, certamente, com menos satisfação que vivemos esta fase. Os tempos são difíceis para o turismo e as consequências diretas na hotelaria são evidentes e inevitáveis: o cancelamento ou suspensão temporária de ligações aéreas, o regresso forçado a casa dos nossos hóspedes e a quarentena imposta aos que chegam à Madeira deixaram os hotéis vazios”.

Um país a dois ritmos

A Unlock Boutique Hotels conta-nos uma história ligeiramente diferente, em muito devido ao facto de terem uma presença em todo o território continental português. Miguel Velez, CEO e fundador do grupo explica que os cancelamentos e reagendamentos aconteceram a ritmos diferentes em diferentes zonas do país. O grupo possui hotéis e alojamentos locais de Viana do Castelo ao Algarve, com presenças em Lisboa e Porto. Segundo o CEO, começou a sentir-se uma grande quebra nas reservas na segunda metade do mês de março, sobretudo nas unidades nos grandes centros urbanos.

“O que nós vimos foi que começaram a existir alguns destinos que mais rapidamente começaram a ter quebras, muito embora, no nosso caso, os cancelamentos tenham vindo mais tarde do que aquilo que nós nos apercebemos sobre o que estava a acontecer no mercado. Todos os nossos hotéis são pequenos, com menos clientes. Não temos quartos para 300 ou 500 pessoas. Até muito tarde, pouco tempo antes de ser decretado o estado de emergência, nós continuámos com clientes. Tínhamos todos os cuidados, mas também tínhamos uma coisa: pessoas estrangeiras que estavam em Portugal que tinham aviões para dali a uns dias, que não estavam a conseguir mudar os voos e que tinham de estar em algum lado”, explica-nos.

Monverde Wine Experience Hotel

Numa escala temporal, os eventos empresariais foram os primeiros a serem cancelados. A seguir, reagendamentos de casamentos e batizados, depois reservas individuais. “Este último, com maior velocidade nos grandes centros urbanos e mais lentamente nas outras unidades, em zonas do país onde a concentração de pessoas não é tão grande”.

Cuidar, parar e repensar

A resposta perante o estado de saúde pública e a ausência de clientes passou pela reconfiguração de cada uma das unidades. No caso do Savoy, por exemplo, não houve um impulso imediato de encerrar as unidades, mesmo o grupo estando situado na Madeira, uma das zonas do país com uma resposta mais antecipada e rígida. A administração do grupo explica-nos que numa primeira fase foram adotadas medidas de segurança com os hóspedes e staff e higienização do espaço. Numa segunda fase, “perante o agravamento das medidas de prevenção, os hóspedes tiveram de abandonar os hotéis que foram encerrando parcial e faseadamente”.

“Nesse período, mantivemos os nossos restaurantes com disponibilização de serviço take-away. Já numa última fase, sem clientes, procedeu-se ao encerramento total dos hotéis do nosso grupo e da preparação da operação da Savoy Signature para o arranque”, sublinhou.

No caso dos hotéis do grupo Unlock, nem todas as unidades foram encerradas, muitas mantiveram-se abertas em registo de soft opening, ou seja, parcialmente abertos, tendo alguns quartos disponíveis como serviço de apoio à sociedade.

“Temos unidades encerradas e unidades meio abertas, é um conceito de hotelaria que é chamado soft open. Estamos abertos, mas com um número muito limitado de quartos. Continuamos a marcar presença em alguns destinos, continuamos a receber pessoas em trânsito ou em trabalho ou inclusivamente médicos que estão fora e têm de ir aqui e acolá, mas com um número muito limitado de quartos, para garantirmos os serviços mínimos à sociedade. Obviamente que não é para ganhar dinheiro porque ninguém está a ganhar dinheiro. Também não é o quarto que alugamos hoje ou por três dias que faz a diferença, é evidente, mas prestar o serviço à sociedade porque há pessoas que não têm onde ficar”, explica Velez, que sublinha o exemplo da unidade de Viana do Castelo onde os apartamentos disponíveis estão todos cheios devido a procura profissional, nomeadamente também de médicos.

Liquidez para responder a uma “pancada brutal”

Esta terça-feira, o presidente da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP), Raul Martins, anunciou que a maioria dos hotéis poderá começar a reabrir em julho e que está a ser preparado um selo de garantia para dar confiança aos clientes, depois de uma reunião com o primeiro-ministro que não trouxe notícias sobre novos apoios ao setor.

Gonçalo Pessoa, do Sublime Comporta Country Retreat & Spa diz que alguns dos apoios já apresentados “são muito eficazes”, como o lay-off extraordinário, mas “outros nem tanto”. “As linhas de crédito não resolvem todos os problemas, pois vão fazer com que as empresas acumulem endividamento. Aqui a Europa pode ter um papel mais além, propondo incentivos a fundo perdido a quem cumpra com determinados requisitos, como por exemplo a manutenção de todos os postos de trabalho, etc.”.

Para o fundador do grupo Unlock a necessidade de mais e melhores apoios é evidente. “Passámos de um janeiro e fevereiro em que estávamos a crescer na casa dos dois dígitos em todas as unidades, tudo a correr muito bem e, basicamente, em duas semanas e meia, passámos de um ritmo melhor do que o ano passado para zero. Não é uma quebra de 20 ou 40%... Ninguém estava preparado para isto. Isto quer dizer que as tesourarias vêm de um momento mau, de uma época baixa, e quando chega ao primeiro mês em que era suposto começarem a recuperar, levam com esta pancada brutal. As medidas do governo, por um lado, não foram sempre constantes. Ninguém tinha um livro para ir buscar, a solução foi montada ao longo do tempo e face ao que iria acontecer. Na minha perspetiva, vão ser necessárias muito mais medidas que permitem liquidez imediata às empresas”, afirma Miguel Velez.

No caso do grupo Savoy, por estar na Madeira, há uma crença grande na atuação da Região Autónoma da Madeira.

Savoy Signature

“O futuro é incerto”, mas “Portugal continuará a estar bem posicionado para receber os viajantes de outros países”

O futuro é, neste momento, um cenário incerto. É impossível dizer quando é que os governos vão levantar as restrições, permitindo entradas e saídas dos países a um ritmo normal, mas sobretudo quando é que a névoa do medo vai desaparecer ao ponto de as pessoas terem a confiança necessária para fazer turismo noutros países.

Na quinta-feira passada, na Assembleia da República, António Costa deixou um apelo à generalidade dos portugueses no sentido de que este ano passem as suas férias de verão em Portugal, de forma a atenuar o impacto da crise neste setor, que é um dos que possui maior peso no Produto Interno Bruto (PIB) do país.

É com algum positivismo que Gonçalo Pessoa acredita que o setor do turismo, “pilar fundamental da economia portuguesa”, irá ultrapassar rapidamente esta crise. “Portugal continuará a estar bem posicionado para receber os viajantes de outros países. Acreditamos numa recuperação lenta mas eficaz, podendo eventualmente no nosso segmento retomar os níveis de 2019 já em 2021”, salienta.

Já o grupo Savoy olha com maior apreensão para os próximos tempos. “É ainda mais importante neste contexto estarmos atentos ao desenrolar do comportamento dos mercados emissores, assim como, à evolução da situação das companhias aéreas. O futuro é incerto, mas a esperança em dias melhores alimenta a nossa proatividade na definição de estratégias e planos de ação para o período de recuperação. O setor do turismo vai enfrentar grandes desafios com possíveis mudanças no perfil do viajante e até dos mercados emissores. Temos que antecipar tendências e estar preparados”, salienta.