“O fim das quotas trouxe um aumento da produção em países que estão muito vocacionados para a exportação. Portugal não tem essa vocação […], mas temos uma região [Açores] que tem um regime de ultraperiferia que apoia fortemente a produção de leite. Logo em 2015, os Açores aumentaram em cerca de 11% a sua produção, não para exportar, mas para ficar no mercado interno”, disse à Lusa o secretário-geral da Federação Nacional das Cooperativas de Produtores de Leite (Fenalac).

Para Fernando Cardoso, o fim das quotas provocou a desregulação do mercado, criando situações de volatilidade.

“Temos momentos em que, realmente, há excesso de leite e temos outros momentos em que o mercado está em alta e há até alguma falta de leite”, apontou.

Por sua vez, o diretor-geral da Associação Nacional de Industriais de Laticínios (ANIL) disse que o fim do regime de quotas tornou o país “mais frágil”, ao beneficiar os operadores do norte e do centro da Europa.

“[A nível nacional], a única exceção que existe são os Açores, porque têm um regime especial, o POSEI, aplicável às regiões ultraperiféricas e, dentro desse regime, têm um nível superior à produção […], que pode criar, pontualmente, situações de concorrência desleal”, acrescentou Paulo Leite.

Fernando Cardoso referiu ainda que, atualmente, há um sistema que “tenta” substituir as quotas leiteiras, no entanto, a gestão do mesmo é feita de forma arbitrária.

“Temos um mecanismo de auto responsabilização dos operadores que tenta, de alguma forma, substituir os efeitos positivos das quotas. Neste momento, todos os produtores de leite têm um contrato de fornecimento com a sua cooperativa para garantir alguma segurança, porque têm alguém que lhe recolha o leite naquela quantidade e naquele preço e para garantir também uma limitação da oferta”, afirmou.

Fernando Cardoso acrescentou que se trata de um “mecanismo previsto a nível comunitário e que cada um dos países pode aplicar ou não”.

“É um mecanismo importante e que tem resultado, mas, mais uma vez, há um conjunto de operadores que não limitam a produção dos seus associados”, disse.

Por sua vez, o presidente da Associação dos Produtores de Leite de Portugal (Aprolep), Jorge Oliveira, afirmou que o fim do sistema de quotas levou a que o preço pago ao produtor recuasse.

“Os contratos que temos firmado não permitem uma regularização do mercado. […] Não estipulam o preço que nos vão pagar, só estipulam as quantidades que podemos entregar à indústria”, afirmou.

Segundo o dirigente da Aprolep, esta realidade provoca um défice face ao custo do litro do leite.

“É um preço que não interessa a ninguém da produção, porque está um bocado abaixo do preço de custo do litro de leite, que anda à volta dos 34,7 cêntimos. Há aqui um défice de quase quatro cêntimos por litro de leite”, vincou.

Já Fernando Cardoso diz que esta não é uma consequência do fim do regime de quotas, mas do peso que a distribuição exerce sobre o preço.

“Portugal é neste momento, sem sombra de dúvidas, um dos países da União Europeia onde, principalmente o preço do leite, mas também de todos os produtos lácteos, é dos mais baixos. Não porque em Portugal é mais barato produzir leite, mas porque há uma distribuição mais aguerrida”, considerou.

Três anos depois, o balanço é negativo

Governo, produtores e indústria nos Açores são unânimes em afirmar, três anos após o fim das quotas leiteiras, que o cenário é negro, sendo que mais de 60% dos 2.132 produtores de leite da região estão falidos.

O titular da pasta da Agricultura do Governo dos Açores, João Ponte, em declarações à agência Lusa, considerou que o balanço do desmantelamento das quotas “não é positivo” face à desregulação dos mercados, associada ao embargo russo e à redução do consumo de produtos lácteos.

O regime de quotas foi introduzido em 1984, numa época em que a produção excedia muito a procura, tendo as sucessivas reformas da Política Agrícola Comum (PAC) orientado o mercado do setor para a liberalização.

Em 2003 foi fixada a data para o final do regime, confirmada em 2008, para possibilitar uma adaptação pelos produtores à liberalização da produção.

Referindo que os impactos negativos da medida “foram acrescidos” no arquipélago, o secretário regional da Agricultura e Florestas afirmou que, face à redução do preço do leite no mercado, as medidas e ajudas dos governos regional e nacional “foram importantes para compensar os agricultores”.

João Ponte declarou que, “não sendo expectável” o regresso do regime de quotas, “será fundamental” que a Comissão Europeia introduza “equilíbrio nos rendimentos”, devendo a revisão da PAC “dar um contributo para a regulação das boas práticas entre os diferentes operadores da cadeia alimentar”, por forma a que haja uma “distribuição equitativa do valor acrescentando”.

Para o governante açoriano, deve haver ainda apoios específicos de Bruxelas para compensar as oscilações em baixa do preço do leite, visando compensar os produtores.

Já o presidente da Federação Agrícola dos Açores (FAA), organismo representativo da produção, diz que com a liberalização do regime de quotas as “perspetivas de catástrofe” materializaram-se, com os países e regiões mais periféricas, como os Açores, a “sofrerem mais”.

Além da desregulação do mercado do leite, do embargo à Rússia e da diminuição do consumo por parte da China, que foram fatores importantes, Jorge Rita sublinha que os agricultores estão hoje “muito mais frágeis” face a uma concorrência forte do norte da Europa que, por norma, coloca os seus excedentes nos países periféricos com base em “concorrência desleal, em termos de preços, muitas vezes vendendo-se abaixo dos custos de produção”.

O dirigente reconhece que “houve alguma retoma dos mercados do leite”, mas salvaguarda que se está “muito aquém da expectativa em termos de rendimento dos produtores”.

Jorge Rita disse ainda à Lusa que mais de 60% dos 2.132 produtores de leite da região estão falidos.

Para Eduardo Vasconcelos, diretor de compras do grupo BEL, que possui uma unidade fabril na ilha de São Miguel, o balanço do fim do regime de quotas é negativo, uma vez que a produção registou um “grande aumento”, assistindo-se em 2015 e 2016, a nível nacional, a um excedente de leite a “preços muito baixos”.

Apesar de algumas medidas recentes por parte de Bruxelas terem “conseguido recompor alguma coisa”, Eduardo Vasconcelos refere que se assiste, de novo, a uma produção elevada na Europa que “pode vir a afetar novamente o mercado nacional”, perspetivando-se uma “grande incerteza” sobre o futuro do setor.

O responsável ressalvou que as condições climatéricas “não foram ideais” na Europa, podendo-se “deduzir que a produção europeia não vai aumentar assim tanto”, mas “a ilação que se retira é que sempre que se for capaz de produzir muito no espaço comunitário haverá nos Açores dificuldades de escoamento do produto, que ficará muito barato”, o que afetará a atividade.

Os Açores são responsáveis por 30% da produção de leite a nível nacional.

Governo e produtores dos Açores refutam acusações de concorrência desleal

João Ponte declarou à agência Lusa que “é falso e não faz qualquer sentido” que o programa específico POSEI esteja a provocar esta reação no mercado do leite.

O governante recordou, a este propósito, que até 2007 todo o país beneficiava de um prémio aos produtores de leite, tendo posteriormente, no continente, com o desligamento, sido todas as ajudas incluídas no regime de pagamento único.

João Ponte explicou que no caso específico dos Açores, que foram excluídos destas ajudas, as mesmas foram integradas no POSEI, a partir de 2010, o que levou o responsável político a frisar que “dizer-se que na região há um benefício ou um estatuto especial não corresponde à verdade”.

O governante recordou que o arquipélago constitui uma região ultraperiférica penalizada por custos acrescidos, como a dispersão geográfica e pequena dimensão das explorações, acrescentando que “produzir um litro de leite nos Açores custa mais do que no continente ou no centro da Europa”.

O regulamento n.º 228/2013 da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, de 13 de março de 2013, estabelece medidas específicas no domínio agrícola a favor das regiões ultraperiféricas da União Europeia, entre as quais os Açores, para “compensar o afastamento, a insularidade, a ultraperifericidade, a superfície reduzida, o relevo e o clima”.

Pretende-se ainda combater a “dependência de um pequeno número de produtos que, em conjunto, constituem condicionalismos importantes à atividade agrícola destas regiões”, estando as medidas enquadras em dois grupos: regime específico de abastecimento e medidas a favor das produções agrícolas locais.

Também o presidente da Federação Agrícola dos Açores, Jorge Rita, refuta que o POSEI possa criar situações de concorrência desleal, destacando que esta é uma “medida de compensação por se viver numa região ultraperiférica” que é “penalizada por custos acrescidos”, como custos de transportes e dispersão geográfica, por exemplo.