2022 não foi um ano simpático para o streaming. A situação da Netflix, mesmo sendo a líder do mercado, foi reflexo disso. Notícias de despedimentos, perda de subscritores, a concorrência a aumentar a olhos vistos, início de uma caça às palavras-passe partilhadas. O alarido foi tanto que se começou a contemplar se o seu reinado não tinha chegado ao fim.
No entanto, menos de dois anos depois, a julgar pelos eventos da última semana, parece que se vaticinou a sua queda demasiado cedo.
A versão resumida: a Netflix apresentou lucros superiores ao esperado por Wall Street, amealhou mais de um Portugal inteiro de subscritores (13,1 milhões), as ações subiram 40% e anunciou um acordo (aposta?) de 10 anos no valor de cinco mil milhões de dólares com a World Wrestling Entertainment (WWE), uma gigante do wrestling profissional avaliada em mais de 8,3 mil milhões de dólares.
Este acordo é um body slam (o movimento em que alguém é atirado ao tapete) no ringue do streaming porque significa que a Netflix tirou da televisão por cabo um programa (“WWE Raw”) que é líder de audiências e está no ar há 31 anos — e ainda deu uma “achega” num serviço de streaming que lhe faz concorrência (mais ou menos, vá).
Entrada no ringue com um body slam de $5B
A Netflix fez saber que o acordo vai vigorar nos próximos 10 anos e que vai ficar com os direitos de transmissão do programa Monday Night Raw a partir do início de 2025 (primeiro nos EUA, Canadá, Reino Unido e América Latina, sendo que depois "outros países e regiões" vão ser "adicionados ao longo do tempo").
O Monday Night Raw, que tirando raras exceções é transmitido em direto todas as semanas às segundas-feiras à noite, é o programa com mais audiência do canal por cabo USA Network da NBCUniversal (que detém a plataforma de streaming "Peacock").
Mas, atenção: esta é só parte do acordo, pois só contempla o território dos EUA. Fora da asa do Tio Sam, a expressão é BEM maior. Isto porque a Netflix vai ficar também com os direitos de transmissão de outros programas conhecidos da WWE como o SmackDown e o NXT, além de eventos pay-per-view como a WrestleMania e os Royal Rumble. Há pouco escrevemos que ainda havia uma "achega" à concorrência, certo? É aqui, neste ponto, pois estes eventos premium podem ser vistos na "Peacock".
Os conteúdos (novos e antigos)
É uma aposta grande! Afinal, estamos a falar de cinco mil milhões de dólares. Mas há uma razão para isso: é que é um programa que é transmitido durante as 52 semanas do ano e atrai 17,5 milhões de espectadores. Além disso, há toda uma biblioteca de documentários e outros programas da WWE que a Netflix vai ter acesso exclusivo.
Depois, é também um abrir portas a novo conteúdo. Basta pensar no sucesso de "Drive to Survive" em formato wrestling. Isto ficou ao descoberto na comunicação das contas do último trimestre do ano, quando o co-CEO da Netflix, Ted Sarandos, salientou que a Netflix estava a “ter um grande sucesso” com a programação desportiva.
No entanto, isso não quer dizer – pelo menos segundo Sarandos – que a Netflix vá entrar no mercado do livestreaming desportivo como, por exemplo, a Apple está a fazer com a MLB (liga de beisebol) e a MLS (a principal liga do soccer nos EUA), que transmite alguns jogos destas competições. Ou seja, o foco da Netflix parece estar nos “drama” dos bastidores e não nos eventos ao vivo.
A receita para domínio
A receita de sucesso até agora tem sido uma combinação de dois fatores: abundância de conteúdo original a nível global e a contínua aposta forte no conteúdo licenciado (onde se encontram as chamadas “reruns”, que não são mais do que séries mais antigas de outras estações/canais repescadas pela plataforma).
- Exemplo do sucesso das re-runs: Recentemente, a série “Suits”, exibida originalmente no canal USA Network (do grupo NBCUniversal) foi notícia por ter chegado a número 1 dos conteúdos mais vistos nos EUA.
O que distingue então a Netflix da concorrência? Se a Disney+ tem todo o espólio Star Wars+Disney+Marvel e a HBO Max as séries mais premiadas e populares como "The Last of Us" ou "Succession"? Ora, como explica a Axios, ao contrário do que acontece nessas duas plataformas, a Netflix gasta muito dinheiro para “acrescentar valor” à sua biblioteca de conteúdos licenciados (conteúdo como "Suits"). Isto é, mesmo quando as temporadas dos seus maiores hits acabam, como há muito conteúdo de outras plataformas a entrar — ainda que seja por apenas um período, não fica "para sempre" —, os subscritores não têm motivos para cancelar a subscrição porque estão constantemente a ser "saciados".
- Exemplo: À hora de escrita deste artigo, em Portugal, segundo dados do site FlixPatrol, "A Favorita", do grego Yorgos Lanthimos, é o sétimo filme mais visto no nosso país. O que é compreensível tendo em conta que estreou nas salas portuguesas na semana passada "Pobres Criaturas", do mesmo realizador, e que é o segundo filme mais nomeado da próxima edição dos Óscares.
Batalha contra a pirataria
Foi uma decisão controversa na ótica do assinante, mas pelo visto acertada. Está agora a fazer um ano que a Netflix anunciou aquilo que os sites especializados iam avisando que ia fazer: acabar com a partilha das palavras-passe. A medida ainda não iria afetar por igual os utilizadores do mundo inteiro, nomeadamente nos EUA, mas Portugal e outros países como a vizinha Espanha e o Canadá ou a Nova Zelândia iam “sofrer” com esta alteração de política.
Recuando a esse fevereiro de 2023, e fazendo um exercício de memória pelas publicações nos meandros do X/Twitter e as conversas que acompanhei por variadíssimos grupos de WhatsApp dos quais faço parte, a conclusão a que cheguei pós-análise da minha redutora bolha social era a de que a gigante dos filmes tinha dado um valente tiro nos pés. Isto porque vi muita partilha de imagens com cancelamentos de assinaturas ou de “sociedades” a “fechar portas”. Ali, no momento, sem pejo nem dolo. Assim como as notícias que vinham de Espanha davam conta de que a Netflix tinha perdido um milhão de subscritores — só ali em território dos nuestros hermanos da Península.
Um cenário pouco otimista, diria, especialmente depois de um 2022 pouco amigo dos interesses dos investidores. Todavia, foi este 2022 penoso que levou a Netflix a carregar prego a fundo no acelerador em direção à caça da partilha de passwords. E se é verdade que nos primeiros tempos houve realmente uma quebra de subscritores, a decisão parece ter compensado a longo prazo. Segundo o último relatório de contas do último trimestre, divulgado na semana passada, as receitas do último trimestre aumentaram 12,5 por cento – ligeiramente acima das previsões – para 8,8 mil milhões de dólares.
As contas e receitas
Um ano a somar subscritores: Entre março e junho, ganhou 5,9 milhões novos subscritores. Entre julho e setembro, amealhou mais 8,8 milhões. No último trimestre, juntou mais 13,1 milhões de assinantes (a maioria provenientes das regiões Ásia-Pacífico e EMEA). Isto, com a "guerra" à partilha das palavras-passe em cursos.
- Feitas as contas, o total de subscritores ronda agora os 260 milhões, liderando assim as "streaming wars" à frente da Amazon Prime (200 milhões) e da Disney+ (150 milhões – ou 198,7 milhões, se incluirmos a Hulu), de acordo com os dados da Flix Patrol.
Acabou 2023 em altas: as receitas do último trimestre aumentaram 12,5 por cento – ligeiramente acima das previsões – para 8,8 mil milhões de dólares. Ou seja, a empresa registou 937,8 milhões de lucro nos últimos três meses do ano, quase 17 vezes mais do que no quarto trimestre de 2022, quando obteve 55,3 milhões, como nota o Jornal de Negócios.
- Nota: O aumento do número de subscritores pode não ser a resposta completa para este aumento de receitas, segundo o site Statista. Isto porque a Netflix aos acionistas fez saber que 40% das novas contas optaram pelo modelo de subscrição com anúncios (em Portugal e em muitos outros territórios não existe, mas é um plano mais barato onde passam reclames de 15 a 30 segundos estilo YouTube). Isto é, recebem o valor da subscrição do cliente mais o valor dos anúncios pagos pelo anunciante.
A expectativa para 2024: O otimismo está no ar e para o próximo trimestre a empresa espera um aumento de 13% de receitas e prevê que o número de assinantes cresça em 1,8 milhões. Tanto assim é que abre portas a um aumento do preço das subscrições.
- Por todos estes motivos, que vão da caça à partilha das palavras-passe ao acordo com a WWE, a The Verge lembra que a Netflix, embora esteja diferente do que era há dois anos, continua a ser uma máquina de receitas diferente das outras plataformas — e é por isso que supera a concorrência.
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