Quando recebemos o diagnóstico de cancro de um filho a dor é imensa e deixa-nos sem acção. Não é natural. Como foi possível não proteger a nossa filha disto? E os sintomas, até estava feliz por ela andar mais calma!

A era a.c. (antes do cancro) decorria no frenesim normal de uma família de 5 pessoas: os pais e 3 filhos. Os estudos, e aqui incluímos também o pai, e as atividades extra curriculares. Não havia tempo para nada, queixava-me eu uns dias antes de tudo acontecer.

Eis que, depois de uma ida ao oftalmologista, somos encaminhados para o hospital onde nos dão o diagnóstico. “A vossa filha tem um tumor cerebral”. Qualquer pai tem uma capa protetora contra as más notícias em relação aos filhos. A minha reação, ou a falta dela, fez com que o médico enfatizasse a notícia: “A vossa filha tem um cancro maligno no cérebro, não sabemos se é um meduloblastoma ou outro.”

E aí tudo se apaga. A máquina do tempo leva-nos para outra dimensão. Não há luz, não há ruído. Um buraco tão negro de onde não queremos sair, porque a realidade é ainda mais negra.

O meu olhar esbarra com o olhar da minha filha. A cara dela “pede” que eu reaja. O médico mantém o semblante pesado. E o pai … conseguiu reagir primeiro que eu.

E agora, o que há a fazer? É preciso arregaçar as mangas. Sair da bolha escura que me retirava de uma realidade que não pedimos e não queremos.

Iniciámos a era d.c. (depois do cancro). Cirurgia, radioterapia, quimioterapia, e toda uma série de procedimentos e nomes que desconhecemos, mas que acreditamos serem ser bons. Os outros pais, que devem ter tirado um curso intensivo de medicina (no YouTube talvez), é que usam termos que ninguém os percebe!

Lembram-se da vida agitada e sem tempo para nada de que falei? Esqueçam, tudo parou. Temos todo o tempo do mundo. A partir de agora tudo irá decorrer a um ritmo ditado pelos internamentos, pelos tratamentos.

E as outras pessoas da família? Fizemos um “reset” e reiniciámos tudo. O pai manteve-se a trabalhar e a estudar. Os irmãos continuaram o seu percurso académico (e muito bem sucedidos). Os avós seguraram as pontas das lidas domésticas e ao final da tarde mudavam-se para nossa casa até o pai regressar das aulas. Como qualquer família, fomos usando estratagemas para criar uma nova realidade e manter os laços que nos uniam. Os irmãos trocavam bilhetinhos e desenhos. A irmã mais velha “educava” o mais novo.

Com o verão chegou a colónia de férias que os mais novos frequentavam, esse ano só um pôde ir. Não há problema, se a irmã não vai à praia, vem a praia até ela. Todos os dias a saquinha do lanche trazia areia para despejar nos pés da irmã. Sentada, pés numa bacia e era vê-los deliciados com este ritual mágico. Por momentos éramos transportados para uma qualquer praia paradisíaca.

Deparamo-nos com uma realidade desconhecida, mas muito enriquecedora. Não saímos só da bolha escura e feia, saímos também de uma vida stressada e, muitas vezes, com preocupações fúteis.

Viver com mães e pais que estavam na mesma condição que nós, ver a forma como se reerguiam. Ver os voluntários a brincar com os nossos filhos e a fazê-los sorrir, o “obrigarem-nos” a sair do quarto…

A minha filha tinha visão dupla provocada pela pressão exercida pelo tumor. Um belo dia, saí por uns instantes do quarto e quando chego estava a fazer pulseiras de missangas. Está tudo louco! Fiz ver aos voluntários que a acompanhavam a condição dela. Ninguém me ligou nenhuma! Continuaram nos seus afazeres. Não fez uma, nem duas, nem três, mas pulseiras para a família toda. São as pulseiras que eu uso em momentos especiais, são os meus diamantes.

Um certo dia obrigaram-me a sair do quarto, a ir tomar um café, qualquer coisa… mas que saísse. Muito a custo, vou à máquina de cafés ao virar da esquina no fundo corredor, tiro o café, tento tomá-lo, queimo a língua, venho a correr para o quarto e eis que sou recebida com: “A sério mãe, já chegaste?”. O segundo café demorou muito mais a ser tomado. O terceiro já foi no bar do hospital e foi saboreado. Muitas vezes nem era preciso tomar café, bastava respirar o ar exterior, apanhar chuva, porque sabia que a minha filha estava bem entregue.

Ver pessoas a dar o seu tempo para estar com crianças doentes, muitas vezes a serem tratadas da forma menos própria (quer por pais, quer pelos miúdos), mas que insistem em estar connosco, é engrandecedor. As crianças estão doentes, sofrem com os tratamentos e com o isolamento do mundo exterior. Os pais assistem ao sofrimento dos seus filhos e vivem na incerteza do dia-a-dia dos tratamentos. Somos todos bombas relógio prontas a explodir, e os voluntários continuam a brincar com os nossos filhos e a ouvir-nos. Quanto lhes estou agradecida? Confiei-lhes a minha filha no pior momento das nossas vidas. O sorriso dela quando os voluntários entravam dizia tudo. A minha gratidão é eterna.

Ao viver com outras famílias o cancro dos nossos filhos criamos laços para a vida. Num momento tão intenso, e quando algumas pessoas se afastam, amigos e familiares criaram não uma rede, mas uma trama tão apertada que não nos deixaram cair.

A nossa vida era uma montanha russa, altos e muitos baixos (baixinhos mesmo, lá no fundo). Eu passava a minha vida entre o hospital e alguns bocadinhos em casa com os outros filhos.

O pai fazia esticar o tempo e vivia a ansiedade de não estar sempre presente e querer saber como as coisas estavam a correr. Trabalho, faculdade, hospital, casa, apoiar os três filhos e ser o suporte da mãe. Alguém tinha de tentar manter uma certa normalidade. Quanta força deve ser precisa!

Passaram 10 anos e 7 meses, e pode parecer um contrassenso, mas valeu a pena.

Pelas pessoas que conhecemos: crianças, jovens, pais, profissionais e voluntários. Pelos amigos e familiares que estiveram sempre connosco.

Pelo novo rumo que a nossa vida tomou. Somos mais fortes, mais unidos. Acreditamos.

Tornamo-nos voluntários. Festejamos as mais pequenas conquistas. Rimo-nos das nossas imperfeições.

Aproveitamos a companhia das pessoas que nos fazem felizes. Vivemos juntos momentos loucos. Criamos memórias.

A vida deu-nos este prolongamento, temos que aproveitar.


A Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio a todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional e social. Com a experiência de quem passou pelo mesmo, enfrenta com profissionalismo os desafios que o cancro infantil impõe a toda a família. Momentos difíceis tornam-se possíveis de viver quando nos unimos.