Pela primeira vez assistimos ao funeral de um Papa por outro Papa (a última vez que tal aconteceu, embora não com um Papa emérito, foi em 1802): Francisco, que chegou em cadeira de rodas, presidiu às exéquias de Bento XVI, o pontífice não muito amado em vida, que apareceu bastante como o mau da fita, o guardião da ortodoxia, e que, ao renunciar, entrou para a História da Igreja Católica.
A coabitação entre o Papa reinante e o Papa emérito durou quase 10 anos, teve muitas ambiguidades e muito “fair play”, embora represente uma total rutura na liderança da igreja de Roma.
A sucessão corresponde ao que Bento XVI planeou: um reformista carinhoso, com algum perfil progressista, vindo da Argentina, a suceder ao tímido e reservado académico conservador que se mudou da Baviera para o Vaticano.
Há que reconhecer que o alemão Ratzinger foi na igreja uma espécie de avô monge sábio. Promoveu na cultura contemporânea, como pensador e investigador, a procura da harmonização entre Fé e Razão. Acrescentou saber teológico, profundo. Foi um baluarte para os tradicionalistas da Igreja.
Bento XVI escolheu seguir a divisa do antecessor São Bento “Nada preferir ao amor de Cristo”. Ele tinha dirigido no Vaticano a Congregação para a Doutrina da Fé e quis, como Papa ideólogo, com muito estudo, renovar a fé, a esperança e o amor na Igreja católica.
Ainda como cardeal, Ratzinger mostrou-se adverso ao diálogo inter-religioso promovido pelo antecessor João Paulo II no primeiro encontro ecuménico em Assis em 1986. O motivo desta reserva é esclarecedor sobre a personalidade do monge que veio a ser Papa: prudência. Ratzinger temia que se instalasse desorientação entre os fiéis. O cardeal alemão tinha pronunciado posições muito hostis ao Islão ao evocar, em 12 de setembro de 2006, uma religião “desumana” que “difunde a fé com a espada”.
Como Papa, Ratzinger veio a dialogar com as diferentes crenças. Mas sempre cauteloso, em contraste com os braços abertos do antecessor e do que viria a ser sucessor.
Bento XVI veio a perder a liderança no Vaticano ao sentir-se incapaz para enfrentar a tragédia de agressões sexuais a menores praticadas por padres, freiras e outra gente do clero católico. Ele quis abolir a prescrição, no seio da Igreja, dos crimes de pedofilia, começou a pedir perdão às vítimas, mas, em profundo conflito interior, sentiu-se impotente perante a enxurrada de casos graves. Bento XVI soube ter força para aceitar a fraqueza dele – e promover a procura de soluções ao favorecer a escolha do argentino reformista como sucessor.
Agora, desaparece a sombra silenciosa de Bento XVI. Ninguém no topo da Igreja dirá que estão em curso as manobras para alinhamento de forças para o conclave que algum dia, distante ou não, há-de escolher o sucessor de Francisco.
Os “bergoglianos” entrarão em maioria na reunião secreta na Capela Sistina. Neste momento, há 132 cardeais eleitores. Destes 132, 83 foram nomeados pelo atual pontífice (do português Tolentino ao italiano Zuppi, fazedor de pazes em Moçambique e ativista da Comunidade de Sant’Egidio), 38 por Bento XVI e 11 por João Paulo II.
Jorge Mario Bergoglio, o atual Papa Francisco, tem 86 anos feitos a meio de dezembro, enfrentou com coragem a tragédia dos abusos criminosos praticados por gente de diferentes níveis da Igreja Católica. Francisco aproximou a Igreja das pessoas, em especial as mais sofredoras.
O antigo arcebispo de Buenos Aires, que o conclave elegeu como Papa no conclave em 13 de março de 2013, transformou a Igreja Católica, incluiu mais mundo. É um Papa que vemos a movimentar-se às vezes em cadeira de rodas, outras vezes apoiado no bastão, por problemas dolorosos nos ligamentos de um joelho que causam infeção que se estende à anca. Há quatro anos, quis ser operado a cataratas para “poder continuar a ver bem a realidade”. Quem trabalha com ele garante que o Papa Francisco mantém toda a agilidade mental. É esperado em Lisboa em agosto próximo.
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