Toda a gente se lembra de Jim Carrey como um actor bem-disposto: palhaço, para quem não gosta, humorista genial para os que lhe acham graça. Mas o tempo passa, talvez mais depressa para as figuras mediáticas do que para quem fica sentado a vê-las passar. Lembrando a sua carreira, os grandes sucessos são todos da década de 1990: “Ace Ventura, o detective animal” e “A Máscara”, em 94, “Batman para sempre” e o inesquecível “A vida em directo”, em 95, e “O mentiroso compulsivo”, em 98.
Nascido no Canadá e naturalizado norte-americano em 2004, Carrey ganhou rios de dinheiro e teve uma série de namoradas, algumas famosas, como Linda Rondstadt e Renée Zellweger. Nesse período glorioso, comprou um jacto Gulfstream V, uma colecção de carros especiais e dedicava-se à excentricidade. Era um original dentro da comédia: cativante e leve, porém inteligente na sua interpretação expressionista de certos tipos humanos.
Era o cromo simpático que fazia rir toda a gente. E “A vida em directo” era até uma consideração sobre o que é real e irreal na nossa cultura e uma crítica aos “reality shows” que dão uma versão manipulada da vida.
Mas a faceta pública divertida de Carrey escondia um lado negro, que começou a notar-se à medida que os filmes começaram a ser menos populares, e as suas famosas caretas menos apreciadas. Em 2004, o ano em que protagonizou “Lemony Snicket - Uma Série de Desgraças” reconheceu numa entrevista que atravessava uma longa depressão. Aquelas expressões faciais em constante movimento e os olhos saltitantes afinal escondiam melancolia e incerteza. Apesar de ter ganho 20 milhões de dólares pelo seu papel em “O melga”, vivia numa espécie de mal-estar que definiu numa entrevista posterior ao seu amigo Conan O’Brien:
“Sou uma pessoa difícil de conviver. Pareço um animal enjaulado. À noite levanto-me e começo a andar pelo quarto. Não consigo descer das nuvens e desligar-me do que eu faço. Sou como um astronauta; vivo na Lua o dia inteiro mas, ao chegar em casa à noite, tenho que pôr o saco do lixo para fora.”
Recomeçou a pintar, uma mania de criança, e a aparecer menos. Em 2015 a desgraça caiu-lhe em cima: a namorada Cathriona White morreu de overdose e os pais e o marido acusaram-no de vários abusos, inclusive de lhe comprar drogas e incentivá-la a consumir. Ainda fez alguns filmes, mas praticamente tornou-se um recluso. E continuou a pintar.
Essas pinturas revelam uma faceta completamente diferente. São intensamente coloridas, de traços brutalistas e mostram uma raiva muito grande. E, desde Novembro do ano passado, passaram a ser dirigidas a Donald Trump e à sua entourage. A primeira mostrava Steve Bannon, na época estratega principal do Presidente, com a palavra “fool” (“doido”) escrevinhada por cima.
Não é nenhum segredo que a grande maioria de Hollywood é liberal, detesta o Presidente e não perde ocasião de o mostrar nas várias celebrações cinematográficas que lança ao mundo todos os anos. Alguns, como George Clooney ou Merryl Streep, tomam mesmo posições individuais assertivas, explicando em pormenor as suas razões contra as políticas anti-imigração, o racismo, sexismo e outras “qualidades” do “homem cor de laranja”.
Jim Carrey usa poucas palavras, as suas imagens horripilantes são mais um grito de nojo do que uma afirmação substantiva. Lança-as no Twitter, onde tem dezoito milhões de seguidores. Numa entrevista no programa Jimmy Kimmel Live diz que os desenhos o fazem sentir como quando era um miúdo de oito anos e “aliviam o stress”.
E não é só o Presidente que é vítima deste humor agressivo. Bret Cavanaugh, o novo Conselheiro do Supremo Tribunal nomeado por Trump, o senador republicano Lindsey Graham, o apresentador da Fox News Sean Hannity e outros personagens envolvidos com Trump também são alvos habituais. Um desenho de Sarah Huckabee Sanders, a porta-voz da Casa Branca, com o rótulo “monstruosa” provocou reacções violentas das contas sociais de direita.
Entretanto, em Setembro. Carrey voltou à televisão com “Kidding”, uma comédia trágica no Showtime (pode ver o primeiro episódio aqui). Embora escrita por Dave Holstein e não por Carrey, parece feita em cima da vida do comediante: uma faceta pública alegre, uma vida privada triste. Há muito menos caretas por minuto do que era habitual. Tem até um lado pungente. Está a ser bem recebida pelo público e será talvez a volta do seu sucesso, numa persona menos borbulhante.
Mas o trabalho na série não interrompeu a fúria ilustrada de Carrey; a última postagem no Twitter, sobre o depoimento de Christine Blasey Ford, a vítima de Cavanaugh, é de dois de Outubro.
O que levará um actor cómico a tomar uma posição política tão séria? Nas guerras culturais que grassam pelos Estados Unidos (e não só) os protagonistas mediáticos também representam a contradição entre a sociedade cordata e civilizada com que todos sonhávamos e o clima crispado e sectário em que vivemos. Não há meias tintas, nem na vida nem na Arte que a reflecte.
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