Para chegar à confusão atual é preciso rever rapidamente o que aconteceu e tentar descortinar o que andaria pela cabeça do presidente francês.
Tudo começou com as eleições para o Parlamento Europeu, em 9 de junho, em que a França é representada por 81 deputados (num total de 720). Concorreram 38 listas e os resultados deram 30 lugares ao partido Reunião Nacional (31,37%), muito à frente das outras coligações e partidos. O partido do presidente, “Renascimento”, integrado na coligação “Necessidade da Europa”, conseguiu apenas 13 deputados.
Ora o “Reunião Nacional” é o famigerado “Rassemblement National” de Marine Le Pen, que já teve vários nomes e agora é oficialmente chefiado pelo seu jovem delfim Jordan Bardella.
As eleições europeias não têm, por lei, qualquer efeito no quadro político nacional, mas a estrondosa derrota de Macron, apenas dois anos depois de ser eleito, deixou o presidente numa posição muito frágil. Obviamente que houve muitas sugestões para que se demitisse, o que ele disse imediatamente que não faria — mas tinha de fazer alguma coisa. E o que fez foi surpreendente: marcou eleições legislativas antecipadas, para vinte dias depois, sabendo — toda a gente sabia — que iriam com certeza reforçar a posição do “Rassemblement”.
Talvez esperasse melhorar as posições dos partidos que apoiam o seu “Renascimento” — especialmente os “Republicanos” — e levar as esquerdas a unirem-se para derrotar o “Rassemblement”, como tinha acontecido, precisamente, quando da eleição dele, Macron. É a única explicação lógica.
O tiro saiu pela culatra, como diz o lugar comum. As esquerdas realmente reuniram-se, mas os aliados de Macron não, e o resultado foi uma divisão tripartida da Assembleia, com o “Rassemblement” nitidamente vencedor: 37,5% na segunda volta, contra 25,68% da “Nova Frente Popular” (Mélenchon, verdes, socialistas, etc.) e 23,15% para a direita não-macronista, dirigida por Gabriel Attal.
Então e agora? Mélenchon claro que disse que queria governar — ou alguém por ele, contando com apoio dos macronistas para segurar o Rassemblement. Jordan Bardella, evidentemente, disse que devia ser ele o primeiro-ministro, uma vez que o seu partido ganhara. Ganhou, de facto, mas sem maioria absoluta, o que garante que não conseguirá governar. Mas Mélenchon e companhia também não conseguirão governar se os macronistas não os apoiarem, o que é certo, uma vez que são centro-direita. Mais depressa apoiariam Bardella.
Ora aí está: todos ganharam alguma coisa, mas ninguém ganhou o suficiente para governar. Pelo meio meteram-se os Jogos Olímpicos, que deram uma ótima desculpa a Macron para adiar a sua decisão. Não sei se percebem: o primeiro-ministro é escolhido por ele, mas depois tem de ter uma maioria parlamentar para funcionar. Arrisca-se a cair e Macron, se bem que legalmente não tenha de se demitir, fica numa posição ainda mais fraca do que em 28 de junho.
Os Jogos Olímpicos foram uma glória, muito bem, seguiram-se os Paralímpicos que foram uma festa, melhor ainda, mas acabou o Carnaval e estava na altura de pensar na vida.
Quem escolheu Macron? Michel Barnier, um republicano, portanto do partido que teve menos votos. (Michel Barnier todos conhecemos, porque foi quem representou a Europa nas negociações do Brexit. No quadro político português seria PSD, de direita).
Já formou um governo com uma no cravo — macronistas —, outra na ferradura (lepenistas) e mais outra no martelo (melenchonistas). É, por assim dizer, um “governo de salvação nacional”, que permitiria a Macron um mínimo de movimentação. Agora o seu governo terá de ir a aprovação na Assembleia Nacional, e aqui é que está o busílis; a esquerda não está disposta a aceitá-lo de maneira nenhuma — considera-se “traída” e pouco lhe interessam contemporizações. Quem poderá dar-lhe a mão é o Rassemblement, a troco, com certeza, de diversas contrapartidas — leia-se na imigração e menos ajuda à Ucrânia. Ou seja, Macron chegou ao resultado que menos queria: a “king maker” é a senhora Le Pen.
Podemos ler esta situação de duas maneiras: ou que Le Pen realmente ganhou, pois a vida do governo depende dos votos dela, ou que Macron foi um espertalhão, porque evitou o inevitável, um governo do partido que efetivamente ganhou as eleições.
Nem queremos ouvir a gritaria que vai agitar aquela Assembleia Nacional — como também nunca viremos a saber os acordos e cedências que ocorrerão nos bastidores para que Barnier não caia e arraste Macron.
Na verdade, verdadinha, todos são contra Macron (menos os macronistas, claro) mas ninguém (além da Le Pen) quer que ele caia. Porque se Macron se demitir e houver eleições presidenciais antecipadas (dois anos antes das estatutárias) é certo que Bardella ganha e um Bardella presidente não precisa de maioria parlamentar para começar a lançar os imigrantes borda fora e solidarizar-se com a Rússia.
Portanto, dadas as cartas, voltamos à mesma: um presidente frágil, pendurado na direita, e uma esquerda enfurecida a querer partir tudo, literalmente.
Pode dizer-se que isto é alta política, ou seja, o sistema democrático parlamentarista no seu melhor. Mas também se pode pensar que um país não consegue ser governado assim, com as hienas todas a disputar o cadáver.
É que a situação em França não interessa só aos franceses; a França é, juntamente com a Alemanha e a Itália, a coluna dorsal da União Europeia. A Alemanha está por uma unha negra para virar à direita (se bem que acreditemos que a AfD não irá ganhar), a Itália já está à direita (embora a Meloni, benza-a Deus, não goste de Putin). Tem-se como certo que a direita vai ganhar na Austria e na Hungria já lá está há anos.) O que acontece, no caso da Alemanha, como em outros países da UE, e possivelmente com a França, é que a direita não vence declaradamente (não ganhou as eleições para o Parlamento Europeu), mas torna-se uma tal força de pressão que obriga o centro a desviar-se para o seu lado.
Uma UE mais à direita significa mais rejeição dos imigrantes, menos justiça fiscal, e menos vontade de ajudar a Ucrânia.
Valha-nos Santa Úrsula! (Que por acaso também já escolheu um executivo europeu mais direitista quanto aos imigrantes, mas ainda inimigo das incursões putinescas…)
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