A COP-26 agradeceria se os governos de Paris e de Londres fossem capazes de algum compromisso que evitasse a escalada, já nesta primeira terça-feira de novembro, para uma guerra das traineiras que é a mais recente tensão entre a França e o Reino Unido. A emergência climática precisa do ativismo destes dois países principais na busca de entendimentos para estancar a subida da temperatura, dispensam-se os conflitos colaterais.
Mas o que está a acontecer entre os dois lados do Canal da Mancha vai muito além da longa rivalidade entre os dois orgulhosos vizinhos. O Brexit está a espalhar veneno entre as duas partes e, apenas 15 dias depois da grande fúria francesa por o pacto AUKUS ter desviado para o Reino Unido o fabuloso contrato de construção de submarinos que a França tinha negociado e assinado com a Austrália, agora é a pesca quem faz levantar ameaçadoras ondas político-diplomáticas.
Em causa estão os direitos de pesca em águas britânicas neste tempo post-Brexit. O Acordo de Comércio e de Cooperação, assinado pelo Reino Unido e pela União Europeia em 30 de dezembro de 2020, contempla a concessão de licenças para captura de peixe a pescadores de um lado e do outro.
Na aplicação prática, o acesso à licença britânica está a desesperar os pescadores franceses. Londres introduziu a posteriori ao acordo uma cláusula que leva a que só sejam emitidas licenças para embarcações que provem ter historial de pesca em águas britânicas no período anterior à saída britânica da União Europeia.
Esta é uma exigência difícil de satisfazer. É facto que as traineiras de agora devem ter registo de atividade. Mas embarcações francesas mais antigas não têm a tecnologia sofisticada para esse registo. Outro problema vem de os pescadores franceses que operaram sempre nessas férteis águas britânicas mas que entretanto passaram a ter novos barcos que por isso não podem ter memória de atividade
Acresce que Londres está a demorar a concessão de licença de pesca até mesmo às embarcações que satisfazem o exigido: só entregou metade das 48 primeiras licenças solicitadas.
O governo francês, sob alta pressão de pescadores e armadores (só um deles, em Calais, investiu milhões para renovar a frota e está sem acesso aos melhores bancos de pesca), está a reagir com fúria. E passou às represálias.
A meio da semana passada, foi apresado um arrastão inglês que pescava sem licença nas imediações do porto francês Le Havre. Foi o começo da escalada do que começa a ser chamado guerra das traineiras entre o Reino Unido e a França com tendência para ampliação a outros países europeus com pesca naquelas águas do Norte. Está em causa o trabalho de milhares de pescadores em várias comunidades piscatórias.
O contencioso acrescentou tensão às relações franco-britânicas que desde o divórcio Brexit no começo deste ano estão à deriva com sucessivos incidentes, seja sobre a circulação de migrantes, o comércio, os submarinos do AUKUS e, agora, as pescas.
O capítulo seguinte nesta guerra franco-britânica das traineiras está apontado para esta terça-feira, 2 de novembro. O governo francês anuncia um pacote de medidas que incluem a proibição de desembarque em todos os portos de França de produtos pesqueiros britânicos, reforço de controlos alfandegários e sanitários em todas as fronteiras em especial sobre os camiões em direção ou procedentes do Reino Unido. Medidas que poderão perturbar ainda mais o já condicionado abastecimento britânico.
O governo francês já sugeriu que pode ir ainda mais longe e numa segunda vaga de represálias “repensar o abastecimento de energia às ilhas anglo-normandas” (Guernsey, Jersey e outras menores também no canal da Mancha).
O secretário de Estado para Assuntos Europeus do governo francês, Clément Beaune já justificou: “Agora há que utilizar o idioma da força porque, temo, desgraçadamente, este governo britânico não entende outra linguagem”.
Perante esta altíssima tensão Boris Johnson e Emmanuel Macron, juntos em Roma no fim de semana para a cimeira G20, decidiram reunir-se a dois em modo frente a frente. Foi o que um comentador da BFM-TV francesa ironizou como “Napoleão frente a Nelson”. Reuniram-se por 30 minutos mas não chegaram a acordo nem sequer sobre o relato do encontro bilateral: Macron disse que se os britânicos não derem resposta positiva, as medidas de retaliação “entram mesmo em vigor nesta terça-feira”, enquanto o porta-voz de Boris Johnson afirmou que o passo seguinte tem de ser “a retirada de ameaças por parte do governo francês”.
Este clima promete borrasca com as águas habitualmente gélidas daqueles mares do norte a fervilharem. Em primeiras páginas de jornais franceses e britânicos fica documentado o estado de costas voltadas entre Macron e Johnson. Há anúncio de novas diligências para, nas próximas horas, ser tentado o apaziguamento, mas a crise pode tornar-se coisa muito mais séria porque, entretanto há por tratar a questão ultra-complexa da fronteira da Irlanda do Norte – tão delicada que ameaça o acordo de paz para o território.
Esta guerra entre Macron e Johnson cresce no momento em que com a COP-26 a decorrer seria essencial que eles unissem esforços para conter o aquecimento do planeta. Os poderosos do mundo, na cimeira G20, assumiram compromissos, mas vagos sem explicarem como poderão concretizá-los.
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