A Guerra Fria entre os Estados Unidos da América e a China está a deixar de ser apenas económica ou comercial, começa a ter um fundo de ameaça militar que faz evocar o confronto do século passado entre americanos e soviéticos. Agora, com a Austrália na linha da frente, a União Europeia marginalizada, a NATO excluída e a França em fúria.
Já havia a perceção de que o epicentro geoestratégico do mundo estava a deslocar-se para a região Indo-Pacífico. Agora, com o anúncio por Biden do Pacto AUKUS (acrónimo dos três parceiros, Austrália, Reino Unido e Estados Unidos) fica formalizado que a localização desse epicentro é o Mar do Sul da China, com os EUA a escolherem a Austrália para sua linha avançada para o controlo da região e “gendarme” daquele mar que a China quer que seja cada vez mais chinês.
O Pacto AUKUS tem o objetivo anunciado de “defender a paz e a estabilidade em toda a região do Indo-Pacífico” (fica implícito que frente aos apetites da China) e deve permitir “impulsionar a cooperação em vários novos domínios” como a Inteligência Artificial.
Esta nova parceria inclui o fornecimento à Austrália de pelo menos oito sofisticados submarinos com propulsão (mas não armamento) nuclear.
Com estes oito submarinos com a mais avançada tecnologia a Austrália renuncia ao contrato que tinha assinado em 2016 com o Estado francês para fornecimento de 12 submarinos convencionais, fabricados pelos estaleiros franceses Naval Group. Este contrato envolve o pagamento pela Austrália de 56 mil milhões de euros.
Numa reunião, no final de agosto, entre ministros dos Estrangeiros e da Defesa da França e da Austrália, apareceram críticas australianas ao desenvolvimento da encomenda, mas sem que o contrato ficasse em causa.
Duas semanas depois, em 15 de setembro, a França é surpreendida pelo facto consumado: por um lado, uma nova aliança militar para o Pacífico e, por outro, o cancelamento de um mega-contrato que representa fôlego económico e milhares de postos de trabalho.
A fúria francesa disparou contra os Estados Unidos da América em níveis nunca antes atingidos: o ministro francês dos Negócios Estrangeiros começou por denunciar uma “facada nas costas da França”, espetada pelo aliado americano. Depois, concretizou que Washington mentia (ao sugerir que a França tinha sido consultada sobre o Pacto AUKUS), agiu com desprezo por um aliado e usou duplicidade, o que desencadeou grave quebra de confiança. Jean-Yves le Drien concluiu que “as coisas não estão bem e a crise é séria”. Pela primeira vez na história diplomática francesa, Paris usou uma arma de alto calibre no limite diplomático do protesto: chamou à capital francesa o embaixador em Washington.
A França está em fúria por motivos económicos e comerciais, geopolíticos e diplomáticos.
Os motivos económicos e comerciais são os que resultam do cancelamento do que era considerado como “contrato do século” para a indústria militar naval francesa – obviamente, a França vai tratar de ativar todas as penalizações pelo rompimento do contrato, mas elas nunca compensarão a perda.
Os motivos geopolíticos e diplomáticos passam pelo facto de dois aliados na NATO terem negociado em segredo uma nova aliança, focada no Pacífico. Essa negociação avançou em total desprezo pela NATO, aliança atlântica que assim parece atirada pela administração Biden para um ferro-velho da Guerra Fria terminada em 1989.
As queixas de Paris são avolumadas pelo facto de dois aliados, Estados Unidos e Reino Unido, ao avançarem com este Pacto AUKUS, terem ignorado a “continuada e relevante” presença francesa da França no Indo-Pacífico onde tem soberania sobre vários territórios.
Esta afronta à França acontece a sete meses das eleições presidenciais que se antevê serem muito difíceis para Macron. É de antecipar que Marine le Pen e outras figuras nacionalistas abram fogo sobre o presidente que deixou a França ser humilhada até por aliados.
Para a França ainda há uma outra questão: a União Europeia que, uma semana depois, permanece em quase silêncio, apenas cortado por breves declarações de mal-estar com o que está a acontecer (o anúncio do AUKUS aconteceu no mesmo dia em que a Comissão Europeia reforçou no Parlamento Europeu o desejo de cooperar com a China).
É estranho que a União Europeia não levante a voz a protestar pela atitude dos EUA com o conjunto dos velhos aliados na Europa, ignorando-os na discussão da geoestratégia da região do Indo-Pacífico que é cada vez mais o palco para o confronto com a China, no equilíbrio entre as potências do século XXI.
Fica urgente no atual quadro de evolução geoestratégica global que os 27 parceiros na União Europeia encontrem resposta para uma questão essencial: há vontade comum de exercer soberania? A definição de uma estratégia europeia, autónoma, de defesa, deve ser prioridade? A Europa deixa-se ficar de braços cruzados perante a evolução que parece tratá-la como irrelevante?
É de prever que o fortalecimento da Austrália com o Pacto AUKUS leve outros países da região, como o Japão e a Coreia do Sul a não quererem ficar para trás. Assim, é provável que fique aberta uma corrida armamentista.
No meio de tudo isto há que olhar para a China. Pequim, por agora, parece apostar sobretudo nos negócios. Está a comprar ou já comprou uma parte do planeta. É assim que está desencadeada a guerra comercial de que tanto se fala. Enquanto a China avança para a hegemonia comercial, os EUA voltam-se para a supremacia militar. Tudo isto faz cada vez mais lembrar a atmosfera da Guerra Fria que terminou com o fim da URSS, mas agora com os chineses no lugar dos soviéticos.
Nada disto é de bom augúrio. O Pacto do Pacífico não é nada pacífico. O silêncio europeu é inquietante. O ministro francês dos Estrangeiros deve ter razão: esta questão é séria.
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