Tal como um dos seus ídolos, Estaline, Vladimir Putin gosta de fazer sofrer e matar os desafectos.

A lista já vai longa e não tenho a certeza se consigo contabilizá-los todos:

- Em Agosto do ano passado, Yevgeny Prigozhin, o líder dos mercenários Wagner, morreu quando explodiu o avião em que os principais chefes se dirigiam a Moscovo.

- Em abril de 2003, Sergei Yushenkov, um político famoso, líder do partido Rússia Liberal, foi morto a tiro em frente da sua casa em Moscovo.

- Em Outubro de 2006, a jornalista Anna Politkovskaya, investigadora incessante dos abusos cometidos pelos russos na Chechénia, foi executada no prédio onde morava, também em Moscovo.

- Em Novembro de 2006, Aleksandr Litvinenko, foi envenenado com polónio radioactivo, em Londres. Litvinenko tinha fugido para a Grã-Bretanha depois de acusar os serviços secretos russos, FSB, de matar os oligarcas que inicialmente apoiaram Putin e depois não aceitaram as suas ordens. Os ingleses descobriram o nome dos dois homens que lhe colocaram o polónio no chá, mas a Rússia recusou-se a extraditá-los.

- Em Março de 2013, Boris Berezovsky, um desses oligarcas, que entretanto também tinha fugido para Londres, foi encontrado enforcado em casa.

- Em Julho de 2009, Natalya Estemirova, activista de direitos humanos, morta a tiro em Ingushetia, horas depois de ser raptada em Grozny, a capita da Chechénia.

- Em Novembro de 2009, o advogado Sergei Madnitsky, que tinha implicado o Governo numa fraude fiscal de 215 milhões de euros. Sofria do pâncreas e foi-lhe recusado tratamento enquanto estava detido. Foi julgado e condenado pós-mortem, um procedimento invulgar. Por causa dele os Estados Unidos promulgaram a Lei Madnitsky, que criminaliza especificamente os abusos de direitos humanos cometidos pela Federação Russa.

- Em 2012, o oligarca Alexander Perepilichnyy, refugiado em Surrey, no Reino Unido, foi envenenado com uma substânia rara altamente tóxica, gelsemium.

- Em Fevereiro de 2015, Boris Nemtsov, governador regional, primeiro-ministro adjunto e depois adversário de Putin, foi abatido a tiro numa ponte perto do Kremlin.

- Em Março de 2018, o agente duplo Serguei Scripal e a filha Yulia, foram envenenados com novichok em Salysbury, Reino Unido.

Alexei Navalny já tinha sido envenenado pelo tradicional novichok em 2020 — impregnaram-lhe as cuecas, descobriu-se depois — mas voou para a Alemanha, onde o conseguiram curar. Demonstrando uma coragem insana, voltou para Moscovo e foi detido logo no aeroporto por violação de liberdade condicional; tinha sido condenado em 2014 por fraude, estava em prisão domiciliar, e as autoridades consideraram que ele não as tinha notificado que ia à Alemanha.

Desde que foi preso pela primeira vez, tinha sido sentenciado a várias penas; de vez em quando lá vinha mais uma, sob os pretextos mais surreais. Houve uma de três anos e meio, depois outra de 19 anos, e mais outra de quatro anos. O facto é que nunca mais foi libertado e, entretanto, passou pelas piores prisões e colónias penais soviéticas (perdão: russas), com períodos de isolamento, falta de assistência médica e outras delicadezas ao sabor dos directores dos estabelecimentos, que queriam agradar a Putin. Durante todos estes anos, a mulher, Yulia Navalnaya, e o Estado maior da sua organização (já lá vamos), mudaram-se para Vilnius, na Lituânia, e tentavam seguir o melhor que podiam as suas transferências e tormentas.

Quando se soube da sua morte, Yulia estava como convidada numa reunião de líderes ocidentais, em Munique, e fez um discurso comovente em que disse que a Fundação Anti-Corrupção vai continuar o seu trabalho de denúncia da hierarquia da Rússia. (A Fundação é a actual forma legal do grupo liderado por Navalny, uma vez que o partido que ele tentou fundar, ”Rússia pelo Futuro” foi logo proibido por “fomentar a ideologia nazista”. Yulia tem-se recusado a tomar o lugar do marido, pelo que a Fundação tem uma direcção colectiva).

Nascido em 1976, filho de militar, Navalny formou-se primeiro em direito — pela “Universidade Russa da Amizade entre os Povos”, onde deve ter estudado o José Eduardo dos Santos, digo eu... — e depois em Finanças. Trabalhou em várias empresas, mas dedicou-se sobretudo a denunciar a corrupção do Governo da Federação Russa. Ainda concorreu a presidente da Câmara de Moscovo, sem sucesso, estranhamente…

Entrou em incontáveis manifestações anti-corrupção, o que lhe valeu várias prisões por fraude fiscal e desvio de fundos numa empresa de exploração florestal.

Aquele cujo nome Putin nunca disse

Convém dizer, em abono da verdade, que Navalny não é um social democrata, ou mesmo democrata; a sua ideologia é nacionalista e anti-imigração. Mas tem uma fixação especial na corrupção da nomenclatura, especialmente Putin. Arranjou um expediente interessante para descobrir as ligações entre os oligarcas e os políticos; comprava um pequeno lote de acções das grandes empresas estatais e pseudo-privadas, o que lhe dava acesso a informação privilegiada.

O seu grande “furo” foi um vídeo de duas horas a mostrar o palácio imperial que Putin mandou construir, e que foi visto por 130 milhões de russos. A partir desta apresentação, muitos sectores da sociedade começaram a pensar em Navalny como um possível concorrente às próximas eleições presidenciais. O Governo desmentiu o vídeo, evidentemente, e aqui é curioso notar que tanto Putin como os seus próximos nunca disseram publicamente o nome dele, o que originou a piada de que Navalny seria o Voldemort do Kremlin.

Eis aqui algumas expressões usadas: Putin: “o suspeito mencionado” e “o cavalheiro”; Medvedev: “aquela pessoa com objectivos políticos bem sabidos” e “o perdedor político”; Peskov: “o cidadão acima citado” e “um cidadão condenado”.

Contudo, tal como Mefistófeles (ou Voldemort) cujo nome não se pode dizer, mas que deve ser combatido de todas as maneiras, Navalny foi acossado — uma vez atiraram-lhe tinta indelével verde à cara —, humilhado, insultado, envenenado e, finalmente, preso.

No sistema político da Federação Russa é evidente que nunca teria hipóteses de sequer concorrer a uma eleição nacional. Veja-se o que acaba de acontecer com Vladislav Davankov e Boris Nadezhdin, ambos concorrentes a candidatos às presidenciais deste ano, desclassificados por razões “técnicas”. Apenas Nikolay Kharitonov terá hipóteses de ser o candidato com os expectáveis 0,1% dos votos. Kharitonov é deputado do Partido Comunista, com 57 deputados na Duma, que votam sempre em sintonia com os 324 do “Russia Unida” de Putin.

A morte de Navalny era um prognóstico infalível. Porque tardou tanto? Talvez Putin quisesse primeiro fazê-lo pagar um ano de prisão por cada dez minutos do vídeo do palácio imperial...