A exposição “A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão”, que João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira apresentam na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa, até sábado, dia 15, leva-nos a isto.
Debruçados, desde há muito, sobre temas homoeróticos, Vale e Ferreira actuam um tanto à margem de um sistema onde se cozinha o que é bom e o que é vendável. Só que Portugal não tem ouvidos para muitas vozes.
Do grupo homossexual (e não é bem um grupo, porque não é uniforme, nem sequer no desejo) chega hoje ao espaço público uma só verdade. Isso explicará, por exemplo, que aquando da discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal, por volta de 2009-2010, se tenha instalado a ideia de que não apoiar a proposta corresponderia a um posicionamento anti-gay. Argumentos diferentes teriam complicado a narrativa única e por isso foram ignorados.
Ora, se há coisa que Vale e Ferreira têm feito, e nesta exposição novamente, é complicar a narrativa “gay”, adensá-la e questioná-la, mesmo pondo em risco a projecção da obra, porque uma visão marginal mais dificilmente é tida por verídica, ou seja, como existente.
As quatro ou cinco peças agora propostas podem constituir uma crítica irónica à célebre norma legal, tão adornada com figuras de estilo, que a Câmara de Lisboa criou em 1953 para multar “pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de actos que atentem contra a moral e os bons costumes”. Pode também ser uma reflexão sobre os anos da sida — que nos EUA e em França atingiram o auge nos anos 80 e em Portugal se situam na segunda metade da década de 90. Raras vezes as artes portuguesas têm chegado ao tema.
A peça “Vadios”, cuja fotografia encima este texto — ferro, tinta e nitrato de amila —, abre a exposição como fogo de artifício. Mictório público recriado, mural político com poemas, dizeres, “slogans”, nomes e outras inscrições rabiscadas, está tão próxima da “vida gay” de Lisboa quanto de cenas eróticas do filme “Johan”, assinado pelo francês Philippe Vallois em 1976 (ano do nascimento de João Pedro Vale; Nuno Alexandre Ferreira é de 1973).
A peça “Daddies”, que encerra a mostra, lembra troncos de árvores decepadas e uma caixa ao fundo, na parede, pede-nos “silêncio”. Não é só a evocação da Praia 19 e da Costa da Caparica, da tensão e dos aventureiros de Vénus, é um discurso fúnebre sobre a doença do século em Portugal, o adensar de uma história que nos chegou na versão americana e que integrámos, mesmo que nunca tenha sido verdadeira para nós. Ou então foi.
Dizia alguém que esta é “a exposição do ‘cruising’”. E pode ser. A busca erótica em espaços públicos, o “flirt”, o “voyeurismo” e o recôndito — o “engate”, na palavra portuguesa —, sobrevoam as obras de Vale e Ferreira, nas quais vemos contada uma sexualidade masculina. Versão da realidade, é claro, fundamental para acrescentar parágrafos à muito afunilada narrativa LGBT portuguesa que hoje passa por verdadeira.
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