Não foi assim há tanto tempo, mas sempre se passaram dois anos. Mas, se recuarmos a esse não tão distante ano de 2016, é impossível não sentir que tudo isto é familiar. Por tudo isto, entenda-se as eleições deste domingo no Brasil e o seu resultado. Por tudo isto entenda-se que, apesar de tudo, se evitou o choque maior que seria a vitória de Jair Bolsonaro, o candidato da extrema direita, logo à primeira volta - ou como aprendemos a gostar de dizer em português do Brasil, no “primeiro turno”. Por tudo isto, entenda-se que também em Portugal, Bolsonaro venceu entre os 40 mil brasileiros que cá vivem e que votam para nas eleições do seu país. Por tudo isto, já devíamos estar a falar de outra coisa que não apenas que a democracia no século XXI se tornou subitamente assustadora.

"Sem grande partido, sem fundo partidário, sem tempo de TV, mas tendo a verdade e a sinceridade, desbancamos figurões que achavam que, fazendo parcerias e acordos com grandes partidos, via televisão, ganhariam a eleição." Foi isto que Jair Bolsonaro disse ao votar na Escola Municipal Rosa da Fonseca, na Vila Militar, na zona oeste do Rio de Janeiro. Foi isto que ele disse rodeado de apoiantes que o apelidam de “mito”.

É verdade que o candidato que conquistou quase 50% dos votos na eleição presidencial que ontem decorreu no Brasil foi dos que teve menor tempo de antena em TV - condição que resulta de ir a votos pelo PSL, um pequeno partido.

Não é verdade que isso signifique que estava em desvantagem - e não é verdade porque os tempos mudaram.

E, nos tempos que vivemos, países mais e menos desenvolvidos, pessoas mais ou menos aptas a ler e entender notícias, grupos políticos ou para-políticos mais ou menos bem intencionados ou obscuros - todos têm acesso à expressão, partilha e discussão das suas opiniões no fórum de todos, a internet, e muito em particular as redes sociais.

E se levarmos isso em conta, as considerações de Jair Bolsonaro têm de ser amparadas por outros dados. Como por exemplo o facto de os eleitores que declararam intenção de votar nele, segundo a sondagem da Datafolha na passada terça-feira, serem também aqueles que mais usam as redes sociais. Mais precisamente são 81% os que participam de alguma rede social versus 72% dos que disseram ir votar em em Ciro Gomes (que terminou em terceiro lugar como se antecipava) e 59% dos que afirmaram votar em Fernando Haddad (o candidato do PT que ficou em segundo lugar).

No Facebook, Bolsonaro alcançou os sete milhões de seguidores na reta final da campanha eleitoral - o seu mais direto rival, com quem irá disputar a segunda volta, não chega sequer a um milhão, apenas 670 mil seguidores. Ciro Gomes, o terceiro mais votado, tem 590 mil. É Alckmin, o quarto mais votado, que consegue chegar mais perto mas apenas com pouco mais de um milhão.

Só mais alguns dados para percebermos esta nova realidade com a qual as democracias “tradicionais” estão com dificuldade em lidar. Os eleitores de Bolsonaro são os que têm as mais altas as taxas de leitura de notícias sobre política e eleições no WhatsApp e no Facebook (respetivamente (57% e 61%), sendo estas duas redes amplamente usadas no Brasil. Aliás, o relato de zangas entre amigos de longa data via WhatsApp  - iniciado aquando do processo de destituição da Dilma, agravado com a discussão pró e contra Lula e consagrado agora nestas eleições - é bem sintomático da importância que estas duas plataformas têm no dia a dia de muitos brasileiros.

Importa dizer que estes mesmos índices entre os eleitores de Haddad são respectivamente de 38% e 40%. Os eleitores de Bolsonaro também revelam maior propensão para assistir a vídeos sobre política na internet (no estudo da Datafolha, 63% afirmaram que o faziam). O índice cai para 43% entre os que respondiam ir votar em Haddad, e 52%, nos que iam votar Ciro.

O levantamento da Datafolha foi realizado na terça-feira, dia 2 de outubro, e teve por base 3.240 entrevistas presenciais, em 225 municípios de todas as regiões. A margem de erro máxima é de 2 pontos percentuais.

Vamos depois disso recuperar a frase deste domingo de Jair Bolsonaro ao votar, em particular, a parte que se referiu ao facto que “desbancamos figurões que achavam que, fazendo parcerias e acordos com grandes partidos, via televisão, ganhariam a eleição”. É uma receita fácil, a de desbancar figurões. Quantos não gostam de tirar o tapete àqueles rostos que estão sempre na mó de cima, que aparecem em todo o lado, que supostamente se dão sempre bem? Essa é uma das armas de personagens como Bolsonaro. Explorar o forte contra o fraco, o grande versus o pequeno, assumindo que está sempre do lado do mais fraco, do mais pequeno e que, qual herói justiceiro, vai repor a ordem certa das coisas que é a de que ninguém é menos que alguém. Agora sim, os figurões vão ver.

Só que a História, aquela que vem nos livros e que pouco importa nas discussões de WhatsApp e de Facebook, está cheia de exemplos, mais recentes, mais antigos que mostram que nada é assim tão simples, linear, sincero (mesmo assumindo que alguns “justiceiros” até poderiam ter sido sinceros, categoria onde não incluo Bolsonaro).

Portanto, não, ele não foi prejudicado por não ter o tempo de TV dos “figurões” - pelo contrário, os números dizem que foi bastante beneficiado. A Folha de São Paulo relata o exemplo de Geraldo Alckmin, do PSDB, que somou mais de seis horas de exposição em cada um dos canais abertos de televisão. Resultados? Curtíssimos: passou de 6% para 9%, segundo a sondagem do Datafolha.

E Jair Bolsonaro? Com 10 minutos somadas todas as presenças em TV e passou de 26% para 36% das intenções de voto. Quem precisa de três ou quatro canais de televisão quando tem sete milhões de “antenas” online que querem acreditar - e reproduzir - o que diz? Compare-se isso com debates de ideias ou entrevistas com jornalistas a fazerem perguntas impertinentes e inoportunas. Para quê, se se pode fechar a campanha com um “live” de YouTube partilhado no Facebook com mais de 120 mil visualizações, 34 mil “gosto” e apenas 141 “não gosto”. É a isto que se chamam as bolhas - os adversários de Bolsonaro, que são certamente mais que 141, não entram nestes espaços para discutir e questionar o que diz; já os seguidores, sobretudo os mais fiéis que são também os mais passíveis de “passar a mensagem” lá estão, sem arredar pé.

Uma das mudanças da democracia na última década é essa: deixou de ser predominantemente um fenómeno televisivo e passou a ser um fenómeno social, em rede. E, não sejamos hipócritas, o primeiro sinal dessa mudança deixou as camadas mais progressistas entusiasmadas e esperançadas. 2008, eleição de Barack Obama, lembram-se? Power to the people. O poder estava de facto na rua - mas ninguém tinha sequer pensado de que forma iria ser usado.

E foi assim que chegámos a 2016, e assistimos ao Brexit e à vitória de Donald Trump. E foi assim que, quase ato contínuo, começámos a ouvir falar de fake news e de como tudo o que parece tão transparente e direto - “desintermediação”, a palavra-fetiche dos liberais da internet - se tornou uma espécie de thriller de espionagem com laivos de comicidade como convém a um bom filme.

Mais uma vez, o Brasil não foi exceção. Nos dois meses que antecederam as eleições, um site de verificação da veracidade das notícias que são postas a circular chamado Comprova realizou 106 verificações, tendo concluído que 98 eram notícias falsas. O projeto reúne uma associação de 24 meios de comunicação brasileiros e tem por objetivo identificar, verificar e combater rumores, manipulações e notícias falsas sobre as eleições. (convém dizer que a coligação que apoia Haddad / Lula, puerilmente intitulada “O Povo Feliz de Novo” também lançou o Zap do Lula, um número apresentado como passível de ser usado para enviar qualquer material com conteúdo ofensivo e mentiroso que receber nas redes sociais.).

Mas voltemos à vaca fria: como é que tudo isto aconteceu no Brasil?, como é que tudo isto pode acontecer onde menos se espera?

Uma das respostas que mais me fez pensar foi dada pelo historiador brasileiro Lincoln Secco numa entrevista à Clara Barata do Jornal Público. À pergunta “Como é que chegámos a tanta divisão entre os brasileiros, em que metade adora o Partido dos Trabalhadores (PT) e a outra metade o e apoia um homem que idolatra a ditadura?”, ele respondeu o seguinte:

“Desde 1989, quando houve as primeiras eleições após a ditadura, que o sistema político brasileiro se divide em PT e antipetismo. O PT esteve em todas as eleições no primeiro ou segundo lugar. Claro que o antipetismo assume diversas formas. Na maior parte do tempo foi representado pelo PSDB, que é um partido com uma origem de centro esquerda, ocupou o centro direita mas tinha uma certa racionalidade. Só que a partir de 2013, com essa crise que se abateu no Brasil, com a eleição muito polarizada de 2014, e depois com a campanha do impeachment, o partido perdeu a hegemonia no campo do centro-direita. Essa é a causa principal dessa polarização muito mais agressiva que vivemos hoje. O principal problema está no PSDB e não no PT.”

Tudo isto é, afinal, bem conhecido. Os ingredientes são sempre os mesmos: a ambição humana, a degeneração pela corrupção, a sede de justiça, a necessidade de encontrar sentido na nossa vida em comum. Quando aqueles que o devem fazer suportando as contradições e ultrapassando as por vezes profundas desilusões capitulam perante os discursos simplificadores da ordem do mundo - o espaço que ocupavam passa a ser ocupado por outra coisa qualquer. E segue-se outra velha verdade do mundo: o ser humano tem horror ao vazio. Quando os democratas, mesmo na sua suprema imperfeição, deixam de lutar no espaço e com as regras da democracia, outros que não eles ganham esse espaço. Na maior parte das vezes, outros bastante piores que eles que dizem ao povo que está farto de “figurões” que vão colocar tudo em ordem.

É uma péssima notícia para quem a quiser ler assim mas o mundo nunca vai estar em ordem. A boa notícia é que terá sempre muito para melhorar, corrigir, evoluir e é esse o trabalho da democracia, o trabalho em que temos de nos reencontrar nesta nova democracia também de rede social onde é demasiadas vezes mais importante ter quem odiar do que ter o que defender.

Se ao fim de todas estas eleições amargas ainda não percebemos que não basta gritar “fascista” para garantir a democracia, ainda não aprendemos. E foi por isso que me lembrei da frase do André Breton citada pelo Jaime Nogueira Pinto em entrevista ao podcast do Daniel Oliveira a propósito de populismos e outros irmos. É tudo uma questão de perspetiva. No fundo, é como pensar que a pornografia é o erotismo dos outros, sempre o dos outros.