O Alabama é o Estado mais simbólico do racismo norte-americano, o autêntico “Heart of Dixie”. Durante quase duzentos anos a sua economia baseou-se nas plantações de algodão, ou seja, na escravatura. Até hoje, na capital, Montgomery, em Brimingham e em Hunstville veem-se mais bandeiras sulistas do que nacionais nas fachadas das casas. Herança da escravatura, tem a maior percentagem de população negra (25%) que a média nacional (13%), mas os negros nunca conseguiram votar em números significativos. Leis abertamente racistas e manipulação dos círculos eleitorais (gerrymandering, na gíria americana) fizeram com que o Estado sempre fosse governado pelas forças mais conservadoras do país.

Até à década de 1980, quando os democratas do Sul eram racistas (Lincoln era republicano, há que lembrar), o Alabama resistiu o mais que pode a todas as tentativas de integração de Washington. O mais tenebroso dos governadores, George Wallace, democrata, esteve no poder quase permanentemente entre 1963 e 1987. Num período em que já o seu partido se tinha tornado o defensor dos direitos dos negros (Kennedy, 1961-63), este afirmava-se publicamente a favor dum sistema de apartheid. As lutas pela integração, representadas em fotografias icónicas (como a da estudante negra a entrar na escola escoltada por agentes do FBI), fizeram o noticiário nacional durante anos. Martin Luther King fez a sua famosa marcha pelos Direitos Civis entre Selma e Montgomery, precisamente.

A partir da década de 1980, com os democratas “à esquerda” (liberais, nos Estados Unidos) e os republicanos “à direita” (conservadores), o Alabama passou a ser firmemente republicano. Desde 1986 que os republicanos ganharam seis de sete eleições para Governador, mantiveram os dois senadores e seis dos sete Representantes do Estado em Washington. Ao nível judiciário estatal, têm todos os lugares do Supremo Tribunal do Alabama e todos os lugares dos tribunais de Segunda Instância.

Um desses juízes era precisamente Roy Moore, uma figura extrovertida que ficou famoso por se ter recusado a abandonar o cargo duas vezes por decisões judiciárias. Uma delas por não querer demolir um monumento com os Dez Mandamentos que mandara construir no saguão do Tribunal Estadual (o que viola a separação entre a religião e o Estado), a segunda por ter dado ordens aos juízes do Estado que não celebrassem casamentos entre pessoas do mesmo sexo (que é uma lei federal).

Em discursos, Moore defendeu posições racistas, antissemíticas, anti-igualdade de género e anti-islâmicas. Afirmações típicas: “Os muçulmanos não devem ser parlamentares porque não podem jurar sobre a Bíblia”, e “Os tempos da escravatura não foram assim tão maus, porque havia espírito de família.”

Apesar de se apoiar nas forças religiosas mais conservadoras e de ter criado uma “Fundação para a Moralidade Legal”, Moore, que tem 70 anos, foi agora acusado de ter abusado sexualmente de três meninas menores. O escândalo dividiu os seus apoiantes religiosos e o Partido Republicano.

Moore era candidato ao lugar no Senado deixado vago com a subida de Jeff Sessions para Secretario da Justiça de Trump. Se, por um lado, fundamentalistas e republicanos não queriam perder a posição senatorial, por outro achavam que Moore já não tinha estatuto moral para o cargo.

Trump, que começou por endossar outro candidato republicano, acabou por apoiar Moore, primeiro indiretamente e, nos últimos dias, sem hesitações.

Democratas conquistam Alabama. Trump e republicanos entre a derrota e o alívio
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Quem também esteve muito empenhado na campanha de Moore foi Steve Bannon, o ex-assessor da Casa Branca e director da Breitbart News, considerado o ultra-nacionalista mais perigoso do país. Bannon foi a vários comícios de Moore e apoiou-o com fundos e propaganda na página Breitbart.

(É preciso ter em conta que Bannon é mais à direita e mais focado nos seus objetivos que o próprio Presidente. Tem um “grande plano” mundial que começa pelo domínio da política norte-americana, numa lógica nacionalista, racista e anti-globalista.)

Além da derrota moral de um republicano, o que mais preocupa o Partido e Trump é a perda da cadeira no Senado. Até ontem, os republicanos tinham uma maioria de 52 em 100; perdendo o senador do Alabama, ficam com uma maioria muito frágil, que pode não funcionar quando dois ou três senadores republicanos votarem contra o Partido. Na atual situação de confusão e desnorte que reina entre eles, divididos entre a fidelidade ao Presidente e aos seus princípios, essa hipótese é possível. Aliás, a próxima votação da Reforma Fiscal está em perigo de não ser aceite por muitos parlamentares republicanos, por razões várias.

A grande incógnita para os democratas, que apresentaram um candidato de cara limpa mas sem grande carisma, Doug Jones, era se conseguiriam contornar as normas eleitorais para que os negros votassem. Também tinham esperanças de demover alguns republicanos mais religiosos com a questão do abuso de menores, embora muitos apoiantes de Trump/Moore dissessem abertamente que era mais importante manter o lugar no Senado do que mexericar em pormenores da vida privada ainda não comprovados em tribunal – se bem que as histórias sejam altamente credíveis.

Pelos vistos, os democratas conseguiram ambas as coisas: levar muitos negros a votar e reforçar as dúvidas de alguns republicanos. É uma vitória concreta – mais um lugar no Senado – mas, muito mais do que isso, são várias vitórias morais: contra o racismo e a falsa moralidade de Moore, contra Trump e, finalmente, contra Steve Bannon.

É também a primeira vitória declarada dum Partido Democrata que ainda não encontrou o norte desde a derrota de Hilary Clinton nas presidenciais de 2016. Tem-se limitado a “conter os danos”, isto é, lutar contra a legislação republicana/trumpista, e esperar um apoio popular que até agora não se tinha materializado.

Resta saber se as já próximas eleições intercalares parlamentares reforçam esta tendência ou mostram que as agendas do Presidente e do Partido (que nem sempre são coincidentes) ainda falam mais alto ao eleitorado. O país mais liberal e, porque não admiti-lo, o mundo ocidental, esperam ardentemente que esta eleição tenha sido o sinal de que os Estados Unidos vão voltar ao que eram antes do vendaval Trump.