Donald Trump chegou ao poder há um ano e ainda não mudou o mundo, muito embora as suas ideias e decisões políticas estejam a fazer o mundo mudar mais depressa. Também há um ano, mais de 4 milhões de pessoas saíram à rua em protesto, em 50 Estados da América e em sete continentes, naquela que ficou para a história como a Marcha das Mulheres. Por cá, no maior evento mundial de tecnologia, também se verifica um esforço para equilibrar o género dos participantes, motivando as mulheres à participação. Por isso, nesta última edição do evento Web Summit fui procurar, de forma aleatória, mulheres na tecnologia. A pergunta era simples: trabalhas em tecnologia? Se sim, o que fazes?

Conheci várias mulheres, todas com histórias para contar. Portuguesas e estrangeiras com traços comuns no seu percurso. A imprevisibilidade da aleatoriedade não me fez cruzar com nenhuma engenheira ou programadora porque, apesar de encontrarmos cada vez mais mulheres em cada Web Summit, a verdade é que ainda estão muito mais ligadas às áreas complementares do que à tecnologia em si, ou seja, há mais designers, profissionais do marketing e das vendas, pesquisa e investigação. Também estão, muitas vezes, em funções que combinam a ciências humanas com a engenharia, como é o caso de Ivanna Gladysh-Mirkovska, que combina diferentes conhecimentos para desenvolver o seu trabalho na área de marketing, relacionando a sua formação de base em psicologia com técnicas elaboradas de análise semântica do discurso.

Sobre as funções das mulheres nas empresas, a portuguesa Joana Peixoto afirma que esta é uma indústria tradicionalmente mais representada por homens, admitindo, no entanto, que hoje há uma abertura diferente. No caso da empresa na qual trabalha, 30% dos colaboradores são mulheres e a empresa tem mulheres não só na área de Marketing e Comunicação, como é o caso de Joana, como também a nível do desenvolvimento e gestão de projetos. “Na Opensoft há muitas mulheres engenheiras. As coisas estão a mudar. Acho que as últimas contratações foram só de mulheres, porque as mulheres são tão aptas para trabalhar em tecnologia como os homens e isso já é reconhecido. Se olharmos para as estatísticas globais obviamente ainda não há um equilíbrio mas, creio, estamos no bom caminho”, concluiu.

Este será um exemplo de excepção porque a maior parte das mulheres com quem conversei neste evento não admite ser vítima mas reconhece, sem excepção, que o sexismo ainda existe.

Andreia Ferreira, fundadora da bia.pt, tem vivido na Holanda onde “o preconceito é menor”, como afirmou. Não recorda nenhum momento que possa enquadrar-se nesta lógica de sexismo na indústria e, na sua aproximação aos investidores, reforça que eram todos homens ou seja, “não tiveram um comportamento sexista” mas, também reconhece, “ainda há mais homens neste sector”. Talvez por isso as mulheres não sejam “levadas muito a sério”, explicou Carla Patrícia Costa, da Guidesquare, afirmando ainda que o papel das mulheres é fundamental para mudar o panorama. Como revelou, “estamos aqui para lutar por isso”.

Ina Danova, da República Checa, defende que que o sexismo existe. Contudo, sente-se uma verdadeira sortuda porque nunca o sentiu na pele. Ao contrário, a designer italiana Piccia Neri, actualmente a viver em Espanha, depois de vinte anos em Londres, não desarma: “há sexismo na indústria, de tal forma que nós, mulheres, até já nos habituámos a isso”. É a mais experiente deste grupo e afirma que tem sentido o sexismo durante toda a sua vida. “Tenho 50 anos, estou no mercado de trabalho há 25 e o sexismo tem sido sempre evidente e enfurecedor ou, então, muito subtil. O que eu acho é que nós estamos tão habituadas que já nem notamos, o que também revela a cadeia de poder na sociedade”. E continua, num tom mais incomodado, afirmando que “mesmo aqui na Web Summit já me apercebi de diversos exemplos da própria organização, e seguramente que a Web Summit tem as melhores intenções”, concluiu. Na verdade, Piccia considera que ainda há muito a fazer e que não podemos enveredar por uma lógica de confrontação ou vingança pois, como defende, a ideia é “colaborar para mudar”.

Carla Costa reforça esta ideia quando afirma que “as maiores dificuldades são sempre o género e a idade, na tecnologia e na vida”. Apesar de ser bastante crítica em relação aos comportamentos masculinos nesta indústria, Piccia Neri admite que as coisas melhoraram bastante, mesmo quando afirma que “aceitamos demasiadas vezes um certo sexismo inconsequente” que, na verdade, não é assim tão inconsequente: “na indústria da impressão, tenho de ser honesta… eles tentavam sempre! Essa era a primeira coisa que acontecia se houvesse uma rapariga nova, e isso não significa que fosse desagradável ou que existisse alguma má intenção, mas o flirt era garantido. Há pessoas que acham que não há problema, que o sexismo casual é aceitável porque ‘é assim’, e há ainda aquelas que dizem que devias estar agradecida por isso acontecer. Isso tem de mudar”.

Efectivamente, mais de metade dos profissionais da indústria da tecnologia são homens. Ao longo da história, prevaleceu a ideia de que as mulheres não são tão boas com números e que, geneticamente, não estão tão bem preparadas para lidar com a tecnologia. Ina Danova, da Bulgária, explica que “nas empresas mais pequenas já não é tanto assim embora as grandes empresas sejam ainda dominadas pelo sexo masculino. Não existem muitas mulheres, especialmente em cargos de decisão. Na área do marketing sim, existem, mas não em áreas mais técnicas”.

Mesmo que consigamos ignorar tantas ideias preconcebidas que circulam na nossa sociedade, o paradigma não deixa de nos afectar, tornando-se mais difícil para as mulheres ultrapassar os limites invisíveis que ainda existem, especialmente nas grandes empresas, como avança Ina Danova: “no mundo das tecnologias de informação e áreas mais técnicas há algumas engenheiras mas estas não chegam a alcançar cargos relevantes e de tomada de decisão. É um sector muito conservador”. Talvez por isso, mesmo que a sociedade tenha permitido a emancipação feminina, o seu estatuto social mantém-se enraizado num modelo antiquado e as assimetrias entre sexos, ainda que esbatidas, continuam a existir. Como explica Ivanna da República Checa, hoje temos mais oportunidades mas, ao mesmo tempo, “exigem-nos mais e temos de estar constantemente a provar que somos capazes. Parece que o mundo está a testar-nos. Algumas pessoas pensam que, por sermos mulheres, não conseguimos gerir equipas. Acho que somos muito melhores a desempenhar várias tarefas simultaneamente”.

Os programas de mentoring e os grupos de empreendedorismo destinados a mulheres têm ajudado ao desenvolvimento profissional e à criação de novas empresas. A irlandesa Noelle Dally, fundadora da Mobility Mojo, explica isso mesmo, uma vez que desenvolveu o seu projecto com o apoio de uma organização desta natureza, que tem ainda um grupo WhatsApp no qual as conversas geram, muitas vezes, novas ideias e soluções para problemas: “tive a sorte de integrar um programa de mulheres patrocinado pela Enterprise Ireland. É o melhor programa em que já estive (e já estive em alguns) para começar uma empresa. Como era um núcleo de mulheres fundadoras, tínhamos um grupo de WhatsApp para apoio e discussão com regras simples: não sermos más umas para as outras, não desistirmos e respondermos com ideias e soluções. É fenomenal. E não, estar numa cadeira de rodas não me impediu de nada. Na verdade, até gosto mais porque nos negócios somos aceites por conseguirmos fazer o trabalho. As pessoas não vêem a cadeira de rodas, vêem-te a ti e o que és capaz de fazer. E se provares que és capaz, és aceite”. Noelle criou uma startup cujo objectivo é compilar informação sobre a acessibilidade no espaço público. Uma espécie de TripAdvisor para pessoas com mobilidade reduzida. Pelo facto de sermos mulheres, refere, “podemos ser tratadas de forma diferente e precisamos aprender a usar isso de forma inteligente. Às vezes os homens lidam melhor com outros homens porque há um tom ou uma força nas suas vozes que as fazem ser ouvidas de forma diferente. Enquanto que, para as mulheres alcançarem isso, são frequentemente vistas como autoritárias”.

No mesmo sentido, Ivanna, da República Checa, explica que estes grupos de entre-ajuda garantem mais confiança às mulheres e as ajudam a tornarem-se empreendedoras, abandonando os seus empregos mais tradicionais, embarcando nesta aventura de serem empresárias. Ivanna criou um grupo de “mães que trabalham”, juntando muitas mulheres diferentes, e explica que “muitas têm receios e empregos com horários que não permitem que tenham tempo com a sua família. Nós estamos a encorajá-las para que tenham uma atitude mais empreendedora, para abandonarem as suas dúvidas, para serem mais independentes e para terem a certeza que conseguem fazer o que têm em mente, com todo o apoio das pessoas ao seu redor”.

Na verdade, não há nada na nossa biologia que determine maior ou menor capacidade para lidar com os números. A questão é meramente cultural. Como também é cultural essa ideia sexista de que somos menos capazes do que eles e que temos de fazer mais e melhor a cada momento. E, por isso, tantas vezes fazemos.

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