O coração de D. Pedro partiu este fim-de-semana para o Brasil, para marcar presença nas comemorações dos 200 anos da independência daquele país, naquele que é um exigente projeto de diplomacia cardiológica. Se tudo correr bem, voltará intacto - porém, não seria o primeiro coração português a voltar do Brasil partido. Ainda assim, acredito que tenhamos órgãos diplomáticos que tratam bem de órgãos musculares. É que o coração do rei que se divorciou de Portugal costuma estar guardado no Porto, fechado a cinco chaves - como, aliás, é habitual em pessoas que sobreviveram a uma relação tóxica. A questão é que a possibilidade do Brasil não devolver o coração de D. Pedro pode reforçar o centralismo. É que Rui Moreira já tem razões de queixa no que toca à falta de entidades sediadas no Porto, pelo que a cidade não pode correr o risco de ficar sem mais um órgão importante.
Há pessoas que foram ver o coração este fim-de-semana, numa exposição aberta ao público. Calculo que tenha sido frequentada por gente que falhou por décimas a entrada no curso de Medicina. O que é certo é que o coração está em surpreendente bom estado. Aparentemente, o Rei D. Pedro - que, como acontece variadíssimas vezes com cônjuges, é o primeiro para uns e o quarto para outros - faleceu em grande forma física. Apesar de ter morrido com tuberculose e de se ter enervado ao ponto de gritar no Ipiranga, é improvável que sofresse de tensão alta. Com aquela idade, é obra ainda hoje ter coração para andar para trás e para diante no oceano Atlântico. Uma pessoa até se sente mal: um monarca com mais de duzentos anos fez mais cardio neste fim-de-semana do que eu no último ano. Conheço pessoas de sessenta anos que correm ultramaratonas, mas é notável que este senhor com dois séculos de idade tenha percorrido 7500 quilómetros num só dia.
Quem teve a ideia de embalsamar o coração está de parabéns. É que, depois das sardinhas, isto permitiu a Portugal voltar a apostar na exportação de conservas. Em todo o caso, devíamos oferecer o coração em definitivo, uma vez que claramente D. Pedro gosta mais do Brasil do que de nós. Talvez fosse suficiente ficarmos com, sei lá, o intestino delgado de D. Pedro IV, que permaneceria também no Porto - cidade onde há o hábito de fazer das tripas coração. Sobretudo, foi um gesto que estreitou a relação entre os dois países - no âmbito da qual não convém ter o coração perto da boca. As comemorações do bicentenário do Brasil podem funcionar como oxigénio para Bolsonaro, pelo que foi simpático da nossa parte enviar-lhe um órgão cuja função é bombeá-lo.
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