“O guarda-redes é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.”

Permitam-me a adaptação, já que uma das grandes falhas da poética de Fernando Pessoa é a ausência da temática da demora na reposição de bola. Nos últimos dias, a definição de antijogo tornou-se motivo de exegese nos grémios literários modernos que são as caixas de comentários do Facebook e levanta uma questão: queremos mesmo que o futebol seja nobre ou estaremos satisfeitos e confortáveis com o circo?

O antijogo, daquelas palavras que evitamos escrever para que não se infira injustamente uma qualquer posição política em relação ao Acordo Ortográfico, é ostensivamente utilizado como uma estratégia para não sofrer golos. Alguma vez viram um guarda-redes ser expulso por acumulação de amarelos por atrasar o jogo? Não me lembro de nenhuma. O que é comum é aquele inofensivo amarelo da praxe, em que aliás se perde mais tempo. Parece que há uma solidariedade condescendente com o pequeno que quer segurar o resultado. Não há coragem para expulsar – e nisto os árbitros têm a difícil tarefa de usufruir de um poder interpretativo digno de um jurisconsulto do Império Romano no século II e do prestígio social de um leproso da mesma época. Os jogadores sabem brincar com isto.

Ser matreiro é ser batoteiro? Dentro do campo pouco importa. Ou se castiga através de regras pesadas ou se admite que faz parte da incerteza narrativa de um jogo de futebol. No campo, não há debates sobre a ética. Nenhum jogador que, sem maleitas, solicite assistência médica se deixa abalar se lhe disserem “vossa senhoria está a notoriamente exagerar na manifestação de sofrimento, como se permite a tamanha desonestidade intelectual?”. Dê por onde der, na cabeça de qualquer profissional, o que interessa é ganhar.

E ganhar no futebol é mais importante do que jogar. O futebol não raro recorre ao engano – é um desporto para além da performance. Alguns americanos, pouco avisados, costumam acusar o nosso futebol de ser para pussies – em virtude do recurso à simulação, à manha, ao ludibrio. No atletismo chora-se quando se ganha, não quando se quer evitar perder. O ténis e o rugby, enfim, são desportos betos - já se sabe que quem faz exercício vestindo polos Lacoste não se pode dar ao luxo de verter lágrimas de crocodilo. Contudo, no futebol, não se trata de choraminguice, antes de pragmatismo: uma noção de que não bastam os atributos físicos para se superar uma prova desportiva, que se quer vencer por todos os meios possíveis.

Os guarda-redes mandam-se para o chão para perder tempo, e no que uns veem uma atitude antidesportiva, outros justificam como um recurso legítimo de equipas com menos meios, uma manifestação da luta de classes dos conjuntos mais modestos para combater a diferença de orçamentos, agarrando-se a uma oportunidade única de trazer pontos para a equipa de David contra Golias, no contexto de uma ideologia a que se convencionou chamar marxismo-Jaime-Pachequismo.

Se as regras e seus intérpretes permitem as manhas, ou as aceitamos ou tornamos a letra de lei mais rígida. Todos gostamos de dizer que somos verdadeiros adeptos de futebol, entusiastas do futebol ofensivo, com muitos golos de cada lado. No entanto, é sabido que não há nada que desespere mais um treinador do que ter um jogo partido que permita essa lotaria no resultado. A imprensa desportiva é profícua em elogios aos técnicos que, mesmo orientando uma equipa com um orçamento mais controlado do que um estudante em Erasmus, praticam o chamado “futebol positivo”. A verdade é que quando um Tondela aparece na Luz para jogar “olhos-nos-olhos” a probabilidade é a de que aos 15 minutos já padeça de astigmatismo. Nenhum treinador quererá ser lembrado como “aquele que impunha um futebol positivo, tão positivo que acabava positivamente a levar 4 ou 5 na pá”.

E, patologicamente, é preciso estar mesmo a doer-nos alguma coisa para nos deitarmos em posição fetal aguardando auxílio médico? Será que um Marafona – jogador que ficou a uma consoante da glória eterna – não pode justificar a demora no pontapé de baliza com uma dor psicológica, um trauma com alguidares, a saudade do primeiro amor, a frustração pela decadência da fotografia analógica ou a ansiedade provocada pela emergência da alt-right? E quem somos nós para pôr em causa o recurso à velhacaria? Nunca faltaram às aulas de manhã? Quem se coloca numa posição moral superior ao antijogo, nunca deve ter estado a ganhar por um golo frente a um colosso, nem subido o passeio para estacionar, nem esperado a dez metros da porta de casa para evitar um vizinho. Ficando aqui a sugestão para uma obra conjunta de Luís Freitas Lobo e Gustavo Santos, não seremos todos, de tempos a tempos, estrategas do “antijogo da vida”?

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