Logo no final de janeiro, foi internado no IPO durante três semanas. Dessas semanas guardo muitas memórias boas. Os dias preenchidos com jogos de tabuleiro, filmes, histórias. Memórias de dormirmos aninhados na mesma cama. Nessas três semanas fizemos do Piso 7 do IPO a nossa casa. Uma casa cheia de alegria, onde o irmão o podia visitar e brincar com ele. Uma casa que recebe a família como um todo, onde o meu pai veio celebrar connosco o seu 71º aniversário. Não guardo memórias da ida ao bloco operatório ou da espera de resultados de biópsias e punções lombares, nem das quimioterapias de cores extravagantes, nem dos nossos medos. Guardo memórias de dias em que cada um era de aprendizagens, amizades, cumplicidades.

O diagnóstico do meu filho veio três meses depois de eu ter concluído tratamento de radioterapia para tratar um segundo cancro da mama. Depois do diagnóstico do meu filho, pensei para mim: Pior do que isto é impossível!”. Enganei-me. Em março de 2020 encontrávamo-nos no meio de uma pandemia mundial. Como é que iria conseguir cuidar do meu filho sem passar para ele o meu pânico e a minha impotência? Como é que iria conseguir lidar com toda esta nova realidade?

No início deste percurso era tudo mais fácil de gerir, e podíamos ainda sentir o cheiro da normalidade da vida. O meu filho mais novo N. estava na escola, num sítio seguro junto de amigos e pessoas que gostam dele. A minha rede de apoio era sólida e grande. Entre avós e amigos, havia sempre alguém pronto para o acolher. Sabia que ele estaria bem e que eu poderia focar-me no irmão e nas suas necessidades. Com a vinda da pandemia, essa rede de apoio desmoronou-se. Poderia só contar com os meus pais e o meu irmão para gerir as necessidades de duas crianças. O mais novo já não estava na escola e passámos a viver os três com os meus pais. Para além de ter que proteger o meu filho deste vírus, sentia também o peso de uma enorme responsabilidade. Se me descuidar e tiver o azar de contrair este vírus, posso infetar-me a mim, aos meus filhos e aos meus pais, que também são de risco por causa da sua idade.

Em março e nas primeiras duas semanas de abril o G. foi ao IPO quase todos os dias. Foram dias assustadores… Como ir para uma guerra no meio da escuridão. Sempre tive medo de andar de avião e por isso tive que aprender a voar sem ter constantes ataques de pânico. Aprendi duas coisas importantes que se aplicam à vida em geral. A primeira é que nós adultos, pais neste caso, temos que colocar a máscara de oxigénio em nós antes de colocarmos a máscara na criança. A segunda coisa que aprendi foi a ler as expressões faciais e corporais dos assistentes de bordo. Se eles estivessem calmos, mesmo durante muita turbulência, significava que estava tudo bem. O mesmo acontecia no IPO. Via as enfermeiras calmas, mesmo a lidar com o Covid, e isso tranquilizava-me.

Ir ao Hospital de Dia com uma criança de sete anos, num contexto de pandemia, é um grande desafio. Para além da máscara, tinha em cada bolso do casaco um desinfetante em gel e álcool em spray, sempre pronta para desinfetar, descontaminar, proteger. Uma simples ida a uma casa-de-banho tornara-se um momento de hiper vigilância, de decisões rápidas. Todo este processo com a calma necessária aliada a uma grande rapidez mental. Depois de várias horas neste registo, o cérebro apagava-se e eu já não sabia qual o procedimento certo, já não me lembrava o que já tinha desinfetado, o que já tinha feito, o que faltava fazer, o que era importante fazer, o que era excessivo.

O G. teve que fazer dois internamentos em maio. Da primeira vez senti tanto medo. Não queria tocar em nada. Desinfetava as mãos cada vez que tocava em qualquer coisa. Tinhas as mãos ásperas de tanto as esfregar. Passámos cinco noites e quatro dias confinados numa cama num quarto partilhado. Fechávamos as cortinas à volta da cama e assim criávamos o nosso espaço e refúgio. Mas todos nós parecíamos animais refugiados em cavernas, com os seus tabuleiros da refeição num canto, afastados dos outros seres humanos. Sem poder partilhar, ajudar, abraçar. Passámos horas a fio na mesma cama. Ora sentados a jogar jogos de cartas, ora deitados a ver filmes. Parecia que estávamos numa ilha só nossa.

Nestes internamentos conheci outras mães cujos filhos foram diagnosticados durante a pandemia. Não consigo imaginar a solidão e os medos que sentem. Não ser possível ter o apoio emocional (em pessoa) do seu companheiro, de um familiar ou de um amigo; não ser possível conviver com as outras mães nos corredores, no refeitório ou nos espaços de convívio. Esse convívio e essas partilhas são feitas agora pelo Whatsapp. Estes internamentos são duros, pela exigência requerida pelo tratamento, e por toda a questão de isolamento, solidão e medo. Vejo mães que estão aqui há semanas, quase meses. Há mães que têm os filhos em quartos isolados. Há crianças que são operadas. Estas realidades já são por si tremendamente desgastantes para nós mães e pais. Ter um filho com cancro, acompanhá-lo durante tratamentos agressivos e dolorosos e sentirmo-nos tão pequenos. Agora com a Covid-19 estas realidades tornam-se ainda mais cruéis, mais cansativas e injustas.

Passaram cinco meses desde o início da pandemia. Estou neste momento, enquanto escrevo, com o meu filho internado para o que deverá ser o penúltimo internamento. Sinto que esta terceira vez é muito diferente da primeira. Sinto-me mais confiante com todo o contexto. Devo estar em auto-piloto. Assim que saio da cama para ir à casa-de-banho do corredor ponho a máscara da mesma forma que coloco os chinelos nos pés. Tornou-se algo (quase) natural. Sei quando posso estar sem máscara, não desinfeto as mãos cada vez que toco na cama ou no suporte do G.

Como serão os próximos meses? Mais uma adaptação a esta realidade. Por ser demasiado arriscado o G. ir à escola, o meu filho mais novo também não poderá ir. Na realidade, estão os dois contentes com a ideia de terem escola em casa. Gostava que eles tivessem a oportunidade de estar na escola e a fortalecer os laços com os seus amigos. Estão ambos em idades que facilmente se adaptam a esta nova realidade mas também a voltarem para a escola quando for possível. Até lá vamos tirar o melhor desta situação. Vamos aprender juntos, vamos brincar, vamos explorar, vamos fazer da nossa casa a nossa escola e o nosso refúgio. Terei que abraçar este novo desafio e dedicar-me para que daqui a uns anos possamos sorrir ao recordarmos os bons momentos que vivemos.

Sofia Caessa, mãe de dois filhos


A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.

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