Caro leitor,

Apesar da situação pandémica que vivemos actualmente, 2021 trouxe-me, a mim e a muitos sobreviventes de cancro pediátrico, um motivo para celebrar. A 11 de Novembro de 2021, o Presidente da República promulgou o decreto-lei que consagra o direito ao esquecimento. É um direito que vai proporcionar-nos o acesso a vários produtos financeiros, como seguros de vida ou créditos bancários e que não nos obriga a declarar que tivemos uma doença com risco agravado de saúde no nosso passado, até então motivo de recusa ou aumento dos prémios de alguns seguros. 

Esta lei (Lei n.º 75/2021 de 18 de Novembro) prevê que os sobreviventes que tiveram cancro até aos 21 anos não tenham de declarar essa informação depois de decorridos cinco anos do término do protocolo terapêutico e, para quem teve o diagnóstico depois dos 21 anos, o tempo é de 10 anos. A lei entrou em vigor no passado dia 1 de Janeiro de 2022 e abrange também pessoas que tenham mitigado situações de risco agravado de saúde ou de deficiência, que prevê doenças crónicas como o HIV, hepatite C e diabetes.

Esta é uma vitória de todos os sobreviventes que, ao lado da Acreditar, se dedicaram a esta causa, tornando Portugal o quinto país europeu a consagrar este direito.

Mas não podemos ficar por aqui. Apesar de a maioria das preocupações estarem contempladas na lei, faltam ser regulamentados alguns aspectos crucias. Falamos, por exemplo, do facto de a lei prever tabelas de referência, actualizadas a cada dois anos, com patologias ou incapacidades que poderão ter menores prazos para não serem declaradas. No entanto, não é determinada a entidade responsável por produzir e actualizar as mesmas e não está previsto o que acontecerá caso isto não aconteça. Esta lei remete-nos ainda para um acordo entre o Estado e as entidades financeiras, não estabelecendo prazo para tal. E um futuro passo será trabalhar para a inclusão dos seguros de saúde.  

Em 2022, continuaremos a trabalhar este tema, nomeadamente na sensibilização para a regulamentação das questões referidas anteriormente e no acompanhamento de novas situações de discriminação financeira de jovens sobreviventes de cancro, que surjam já com a lei em vigor.

Venho também alertá-lo para outra situação preocupante, o facto de não termos um registo oncológico pediátrico nacional actualizado. É essencial que se possa avaliar a caracterização da incidência e epidemiologia da população oncológica pediátrica e jovem até aos 25 anos, de forma que se possam tomar melhores decisões e definir melhores políticas públicas nesta área, o que nunca acontecerá se não tivermos dados actualizados. É igualmente importante para que Portugal possa estar a par de outros países europeus na investigação e participação em protocolos internacionais em oncologia pediátrica. 

De igual modo, quero alertar para que exista um maior cuidado e qualidade na transição de doentes dos serviços de pediatria para os de adultos. Não podemos ficar indiferentes a algumas situações de pacientes que, após os 18 anos, vêem-se perdidos em terra de ninguém. 

Uma transição adequada deve ser um processo planeado e organizado que aborda as necessidades médicas, psicossociais e educacionais destes adolescentes e jovens adultos com cancro, uma vez que passam de um sistema centrado na criança para os serviços de adultos.

Tal como na oncologia pediátrica, a falta de dados relativamente à população dos jovens adultos é uma das nossas preocupações. Precisamos saber onde são tratados e que necessidades têm, sendo esta uma população que, mesmo sem doença, está sujeita a diversas mudanças sociais e transições.  

Por último, volto a relembrar que todos os jovens sobreviventes devem ter acesso a uma consulta de acompanhamento médico, de forma a poderem estar informados das possíveis sequelas, assim como dos efeitos de longo termo consequentes da doença e dos tratamentos que realizaram. 

Deve ser feita uma reflexão sobre o actual acompanhamento de sobreviventes de cancro pediátrico e jovem em Portugal, garantindo uma melhor gestão de recursos humanos e a implementação de uma consulta de acompanhamento em todos os centros de referência em Portugal. 

A situação pandémica actual trouxe-nos alguns bons exemplos na área da saúde que podem ser replicados neste acompanhamento de sobreviventes e que podem colmatar a falta de recursos humanos actual. Falo do recurso ao vídeo e teleconsulta e do uso de aplicações móveis. Estas tecnologias podem facilitar o contacto e melhorar a eficácia no acompanhamento, mantendo-se assim a relação de proximidade entre estes e os profissionais especialistas em oncologia.

Estes são alguns dos desafios dos doentes e sobreviventes de cancro pediátrico e jovem. 

Questões que não podem deixar ninguém indiferente e a que a Acreditar se dedica ao informar, sensibilizar e pressionar os decisores políticos que escutam as vozes de quem se depara com os múltiplos desafios da oncologia pediátrica. 

O caminho é longo, mas vale sempre a pena continuar a acreditar.

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Tiago Pinto da Costa é um Barnabé. Na Acreditar, os Barnabés são todos aqueles que já viveram ou vivem uma doença oncológica na sua infância ou juventude. É dos Barnabés, e dos seus desafios, que Tiago fala, agora também enquanto Patient Advocate e Gestor de projecto na Acreditar.

A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 27 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos pandemia.

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